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Mário Henrique Simonsen

No documento Tributação no Brasil e o Imposto Único (páginas 31-34)

Revista Exame, 26/6/91

A superioridade do imposto de renda sobre outros tributos resulta de uma observação simples, segundo a qual a renda de um agente econômico é uma medida objetiva de sua capacidade contributiva. Originalmente, a idéia era a de um imposto proporcional: todos pagariam, digamos, 15% de sua renda. Posteriormente, introduziu-se a noção de tributação progressiva, com o objetivo de diminuir as desigualdades econômicas individuais. Quanto maior a renda, maior seria a percentagem do imposto. O socialismo democrático europeu levou a idéia de progressividade tributária às últimas conseqüências nas décadas de 60 e 70. Hoje, os méritos da progressividade são fortemente contestados. Boa parte dos países desenvolvidos reduziu consideravelmente o número de alíquotas progressivas, assim como a alíquota máxima. E a tendência parece ser a volta ao imposto proporcional, com uma única exceção, o limite de isenção, abaixo do qual o contribuinte é dispensado de qualquer imposto.

A queda do mito da progressividade se deve a vários fatores. Primeiro, a distribuição de riqueza promovida pelo governo não é função apenas de um único imposto, mas depende do conjunto dos tributos e sobretudo da composição da despesa pública. Que adianta ter um imposto de renda fortemente progressivo se com ele convivem outros impostos fortemente regressivos? O melhor seria fundi-los num único imposto proporcional ou medianamente progressivo. Por outro lado, para que serve um sistema tributário progressivo se a despesa pública beneficia os ricos muito mais que os pobres? Melhor seria, no caso, que o orçamento encolhesse e que o mercado cuidasse dos conflitos de interesses dos ricos. Na realidade, a grande tarefa distributiva do governo deve ser operacionalizada pela despesa pública, oferecendo educação, saúde e assistência aos mais carentes. Diante disso, desfaz-se, pelo menos em grande parte, o encanto da progressividade.

Em segundo lugar, o excesso de progressividade simplesmente desinteressa o contribuinte pelo trabalho e pela assunção de riscos, o que explica a estagnação produzida pelo Welfare State do partido trabalhista inglês, em boa hora desmontado pela ex-primeira- ministra Margaret Thatcher. Para que trabalhar mais e correr mais riscos se o governo se apropria de 80% dos resultados quando positivos? Na década de 70 descobriu-se o óbvio: impostos altamente progressivos geram preguiça.

Em terceiro lugar, a progressividade cria o incentivo para a transferência de renda fictícia de um contribuinte de alíquota marginal mais alta para outro de alíquota marginal mais baixa. Suponhamos que um indivíduo X, cuja alíquota marginal é de 50%, seja cliente do médico Y, com alíquota marginal de 30%, e admitamos que as despesas médicas, como de costume, sejam dedutíveis da renda tributável. Um cruzeiro a mais de recibo vale 50 centavos para o cliente e custa apenas 30 centavos para o médico. O incentivo natural é um recibo frio do médico para o cliente. Em se tratando de contribuintes cautelosos, o recibo

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frio será emitido com as devidas precauções. O cliente entregará ao médico um cheque nominativo, e este lhe devolverá cruzeiros em moeda sonante. Esse exemplo de transferência fictícia de renda é apenas um entre milhares num sistema progressivo de impostos - e não há malha fina que seja capaz de evitá-los.

Suponhamos agora que o imposto de renda fosse proporcional à alíquota de 25% sobre a renda líquida. Nesse caso, para o Fisco seria absolutamente irrelevante o médico fornecer ou não recibo ao contribuinte, no exato valor, sub ou superavaliado. Um recibo no valor X simplesmente significaria uma economia fiscal de 0,25 X para o cliente e um ônus adicional no mesmo montante para o médico. Como o mercado funciona, é de presumir que o médico, em troca do recibo, aumentasse o preço da consulta em 0,25 X, prática bastante difundida entre nós. Do ponto de vista da burocracia, a melhor solução seria o médico nada pagar e o cliente nada deduzir de imposto, ou seja, a consulta sem recibo.

Essa observação serve para desfazer um equívoco muito difundido entre nós, que resulta da confusão entre o contribuinte de fato e o responsável pelo recolhimento do imposto. Se o não-recolhimento do imposto pelo contribuinte A obriga o contribuinte B a pagar a mais o que A deixa de recolher, A não está sonegando. Está simplesmente delegando a B a função de contribuinte substituto. No caso do imposto de renda sobre salários pagos por empresas, esse princípio é bem entendido, pois vem explicitado nos contracheques: o contribuinte efetivo é o assalariado com imposto descontado na fonte. Mas o responsável pelo recolhimento é a empresa. No caso dos médicos a situação é semelhante, embora não haja Darf nem contracheques. Na medida em que as despesas médicas sejam dedutíveis, o não-fornecimento de recibo transforma o cliente em contribuinte substituto. O Fisco só perde se a alíquota marginal do imposto devido pelo médico for superior à do cliente, o que pode ser verdade ou não no imposto progressivo, e é certamente falso no imposto proporcional.

O não-entendimento da diferença entre o contribuinte efetivo e o responsável pelo recolhimento dos tributos é a origem da crença generalizada no Brasil de que médico praticamente não paga imposto de renda. De fato, muitos médicos pouco recolhem desse imposto. Mas, ao diferenciar o preço da consulta com ou sem recibo, tornam-se contribuintes de fato, na medida em que as despesas médicas sejam dedutíveis. Diga-se de passagem, a maioria dos assalariados também não recolhe imposto de renda, pois é descontada na fonte.

Outro problema pouco entendido é a tributação dos juros e rendimentos de capital em geral. A alegação de que capitalista também não paga imposto de renda se sustenta numa falácia baseada no esquecimento de que o imposto de renda sobre a pessoa jurídica nada mais é que a tributação de seus sócios ou acionistas. Mais uma vez, a diferença está apenas entre quem é o contribuinte e quem é o responsável pelo recolhimento dos tributos. No caso dos juros, não se costuma perceber que sua tributação nada rende ao Fisco, a menos de diferenças de alíquotas marginais, pois só há credor se houver devedor. Se os juros recebidos são tributáveis, e os pagos, dedutíveis como despesas, o que o governo embolsa de um lado perde de outro. No caso brasileiro, o balanço provavelmente não favorece o Fisco, pois os juros ativos são tributados a taxas relativamente módicas, enquanto os passivos são deduzidos do lucro das empresas, que hoje pagam alíquotas de 52% a 62%. Quanto aos títulos públicos, a tributação consiste na transferência do bolso esquerdo para o direito, já que o governo, para colocar esses títulos, paga de juros adicionais o que recolhe

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de impostos. Muito mais simples seria esquecer os juros como meras transferências financeiras, não os considerando nem como rendi- mento tributável nem como despesa dedutível. Trata-se, mais uma vez, de aceitar apenas a substituição de contribuintes.

O que interessa, no imposto de renda, é alargar o universo dos contribuintes de fato, e não o de responsáveis pelo recolhimento. Quanto menor o número desses responsáveis, mais fácil se torna a fiscalização efetiva do imposto. Além disso, é preciso abandonar preciosismos teóricos que não se tem como fiscalizar, como o imposto de ganhos de capital em bolsa e o imposto sobre grandes fortunas, ambos de arrecadação inexpressiva. Um imposto nunca é justo se não puder ser efetivamente cobrado. E, para que a cobrança efetiva se torne possível, é preciso que o imposto seja simples.

No caso do imposto sobre a pessoa física, a redução do número de alíquota a apenas três - zero, 10% e 25% - foi um progresso notável em direção à simplificação. A etapa complementar seria eliminar a alíquota intermediária e alargar o limite de isenção, de modo a ter apenas duas alíquotas: zero e 25%. Isso permitiria ao contribuinte que recebesse renda de várias pessoas jurídicas se desonerasse do mensalão ou da declaração de ajuste. A fonte principal, indicada pelo contribuinte, descontaria o imposto, levando em conta o limite de isenção e a única dedução permitida, a dos dependentes. As demais descontariam, automaticamente, 25% do rendimento pago. Isto posto, a declaração de ajuste seria necessária apenas para os contribuintes que percebessem rendimentos pagos por outras pessoas físicas ou por fontes no exterior e para justificar a variação patrimonial. Eventualmente, seria o caso de questionar a própria necessidade da declaração de ajuste, desde que os rendimentos pagos por outras pessoas físicas e fontes externas fossem recolhidos no atual carnê-leão.

Na pessoa jurídica, a principal revolução seria adicionar ao atual lucro tributável os juros pagos e subtrair os recebidos, como base de cálculo do imposto, lembrando que juros nada mais são que transferências de capital, o que, em particular, resolveria uma charada nacional- a correção monetária do balanço para fins fiscais. Essa correção, enfim, é necessária para que não se tributem juros nominais como se fossem reais. No momento em que se suprime a tributação dos juros, esse problema desaparece. A correção monetária do balanço continuaria a ser praticada para fins societários. Mas, aí, poderia ser desregulamentada, por não mais ter efeitos fiscais.

A Constituição de 1967 incorporou à economia um sistema tributário funcional e moderno, que serviu de modelo para outros países mais avançados. Nos últimos anos o sistema decaiu por três fatores: o romantismo da Constituição de 1988, o preciosismo que esquece que tributo justo é o que se consegue cobrar, e não o que vai nos sonhos dos cientistas sociais, e a aceleração da inflação, com o conseqüente efeito Tanzi. O resultado foi uma incrível complicação do sistema tributário, cujo exemplo mais psicodélico está na declaração de ajuste de pessoa física no exercício de 1990, ano-base 1989. A tributação dos lucros de pessoa jurídica hoje é escorchante. Só que nunca foi tão fácil sonegar quanto hoje. É hora de simplificar os impostos e cobrá-los efetivamente.

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A REFORMA

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