• Nenhum resultado encontrado

A Evolução do Direito Internacional de Águas

No documento A AFIRMAÇÃO DO DIREITO DE ÁGUAS (páginas 155-159)

CAPÍTULO II O Direito Internacional de Águas na Enciclopédia Jurídica 2 O Direito Internacional

2.3. O Direito Internacional de Águas como um Direito de confluência de normas

2.3.1. A Evolução do Direito Internacional de Águas

O Direito de Águas surgiu há cerca de dois mil anos207. Durante séculos,

várias civilizações geriram as questões ligadas à água, incluindo os aspectos legais. O surgimento e a queda de grandes civilizações hidráulicas, como as civilizações Egípcia, Mesopotâmica, Hindu, Hebraica e Mesoamericana, estiveram ligados ao desenvolvimento, manutenção e controlo de sistemas hídricos.

Durante o período de apogeu do império Romano (que durou de 753 a.C. até 476 d.C.) várias leis sobre águas foram produzidas. A compilação do Direito Romano levada a cabo pelo imperador Justiniano (527-565 d.C.) - o

Corpus Iuris Civilis – contém tanto normas clássicas assim como pós-clássicas

do Direito Romano de águas208. Na compilação de Justiniano, é possível

descortinar princípios de Direito Romano que distinguiam a propriedade pública da propriedade privada das águas (determinadas pelo status legal da terra); as regras sobre o fornecimento público de água; os direitos de usar a água por particulares; o direito de transferir a água; o direito de retirar a água dos rios e ou de ter acesso à ela; a distinção entre usos de água para consumo humano e outros fins domésticos; água para o abeberamento do

207 DANTE A. CAPONERA, Principles of Water Law and Administration: National and international, A.A. Balkema: Rotterdam, 1992, p. 41.

208 Para uma análise histórica, vide DANTE A. CAPONERA, Principles of Water Law and Administration: National and international, A.A. Balkema: Rotterdam, 1992, p. 41.

124

gado; pesca; transporte; indústria; irrigação, navegação etc. O Direito Romano continha ainda regras claras que previam a proibição do uso da água pelo titular do respectivo direito para causar danos a seus vizinhos ou outros utentes; e ainda regras que visavam proteger os utentes de jusante209.

O Direito Romano influencia, até hoje, o Direito Europeu, que por via do Direito continental Europeu expandiu-se, através da colonização para África, América, Ásia e Austrália, sendo essa a razão pela qual se encontram resquícios do Direito Romano pelos quatro cantos do mundo210. Outras fontes

históricas do Direito de Águas são o Direito Muçulmano, o Direito Hindu e o Direito Budista, cuja origem encontra-se em textos religiosos211.

Ao longo da história, houve um desenvolvimento das leis em resposta às novas necessidades das diferentes regiões do mundo, nos vários sectores em que a regulação do uso, acesso e protecção à água eram chamados. Uma das primeiras questões a ser regulada a nível do Direito Internacional de Águas foi a questão da navegação, em relação à qual se defendia uma liberdade de navegação, baseada na ideia do interesse comum, estabelecida na Europa em 1815 pelo acto final do Congresso de Viena, que teve os seus momentos mais altos em 1920, após o Tratado de Versalhes de 1919, e da assinatura do Estatuto de Barcelona Sobre o Regime de Cursos de Água Navegáveis de Interesse Internacional, de 1921. Neste período, o Direito de Águas desenvolveu-se de forma tal que assistiu-se ao surgimento de uma das primeiras instituições de regulação de cursos de água internacionais, a

209 Vide DANTE A. CAPONERA, Principles of Water Law and Administration: National and

international, A.A. Balkema: Rotterdam, 1992, p. 37.

210 As colónias britânicas herdaram o sistema de common law, enquanto as colónias dos

países da Europa continental estiveram sujeitos ao sistema Romano-Germânico. Vide DANTE A. CAPONERA, Principles of Water Law and Administration: National and international, A.A. Balkema: Rotterdam, 1992, p. 38.

211 JOYEETA GUPTA, (Inter) national Water Law and Governance: Paradigm lost or gained?,

125

Comissão Central do Rio Reno, estabelecida em 1831, cujo objectivo central era regular a questão da navegabilidade 212.

A partir deste momento, no que diz respeito ao acesso e uso dos cursos de água internacionais, a questão é discutida sob duas perspectivas: a dos usos navegacionais e dos usos não navegacionais. Historicamente, devido ao precoce desenvolvimento da navegação como factor de desenvolvimento das nações, houve sempre a preocupação pioneira ligada à determinação dos direitos de navegação sobre os cursos de água. De facto, os rios tiveram um importante papel no desenvolvimento das civilizações, desde os tempos imemoriais.

A pujança das economias das primeiras civilizações humanas dependia fortemente do acesso a cursos de água, tendo sido o caso dos Rios Nilo, Tigre e Eufrates, Indus, Amarelo e Yangtse, nos quais se desenvolveram grandes civilizações, que graças ao controlo da água que detinham, desenvolveram as suas economias agrícolas, e consolidaram impérios graças ao desenvolvimento fluvial, que permitia trocas comerciais.

Este facto reflectiu-se no elevado número de acordos e tratados celebrados entre os séculos XVIII e XX, que tratavam somente das questões sobre a liberdade de navegação em cursos de água internacionais213.

Esta tendência surgiu como um efeito natural das disputas entre as potências Europeias, no xadrez das disputas coloniais e na prossecução dos diversos interesses comerciais da época, que levou à aceitação de um regime liberal favorável à livre circulação214, e como consequência da qual os direitos

212 Vide DANTE A. CAPONERA, Principles of Water Law and Administration: National and international, A.A. Balkema: Rotterdam, 1992, p.230.

213 Vide LUCAS CAFLISCH, Règles générales du droit des cours d’eau internationaux.Recueil

des cours. The Hague, Hague Academy of International Law, vol. 219, 1989, p. 124.

214 O princípio da liberdade de navegação foi de importância vital para as potências Europeias

126

e obrigações dos Estado ribeirinhos foram sempre analisados, no início, numa perspectiva da navegação.

Por outro lado, são apontadas algumas diferenças fundamentais entre o fim e carácter dos diversos usos como justificativa para um desenvolvimento acelerado das regras aplicáveis à navegação em detrimento das regras aplicáveis aos usos diversos da navegação215. Primeiro, porque é fácil detectar

um navio de bandeira estrangeira que esteja a navegar em certo Estado, que leva a que de forma urgente surja a necessidade de ultrapassar as questões jurídicas imediatas que tal situação cria, o que é feito por via de tratados ou de costumes existentes. Em contraste, tratando-se de usos diversos da navegação, muitas vezes os usos não são óbvios, ou mesmo perceptíveis, não chegando nalguns casos a afectar outro Estado. E, quando acontece, é porque verificou-se uma acumulação de efeitos perniciosos e ou negativos que se fazem sentir noutro Estado muito tardiamente, o que leva a que, naturalmente, a reacção seja mais tardia.

Em segundo lugar, a navegação é vista como sendo um uso benigno, porquanto a mesma é não consumptiva, e desde que não polua e nem ponha em causa o direito de navegação de outros navios, acaba sendo uma actividade não-danosa, pelo que um Estado que permita a navegação de outros navios nas suas águas não tem muito a perder. Tratando-se de usos diversos da navegação, acontece exactamente o contrário: estes têm sempre uma grande probabilidade de causar efeitos negativos noutros Estados. Sendo o uso das águas de um curso de água internacional feito de forma menos correcta, tal situação pode mostrar-se difícil de solucionar quando tal uso é feito dentro dos limites territoriais de um Estado, mas com os efeitos a fazerem-se sentir noutro. Há aqui duas questões distintas, cada uma mais

215 Vide STEPHEN C. MACCAFFREY, The Law of International Watercourse. Non- Navigational uses , Oxford University Press, 2003, p. 65.

127

delicada que a outra: a primeira, relacionada com o direito soberano que um Estado tem de livremente usar os seus recursos naturais, e a outra o facto de com tal uso o mesmo Estado pôr em causa os direitos de outro Estado. A delicadeza de tais questões é, naturalmente, uma das razões que dificultaram o surgimento do Direito relativo aos usos diversos da navegação dos cursos de água internacionais.

No documento A AFIRMAÇÃO DO DIREITO DE ÁGUAS (páginas 155-159)