• Nenhum resultado encontrado

A relação entre os usos navegacionais e os usos não navegacionais

No documento A AFIRMAÇÃO DO DIREITO DE ÁGUAS (páginas 166-175)

CAPÍTULO II O Direito Internacional de Águas na Enciclopédia Jurídica 2 O Direito Internacional

2.3. O Direito Internacional de Águas como um Direito de confluência de normas

2.3.4. A relação entre os usos navegacionais e os usos não navegacionais

Não há, objectivamente, nenhum tipo de conflito e ou concorrência entre um regime e outro, porque cada um tem o seu objecto claramente identificado e as áreas de incidência não são, muitas das vezes, convergentes. Os usos não navegacionais mais comuns são o doméstico (que inclui água para o consumo, confecção de alimentos, banho, recreio etc), para fins agrícolas e criação de gado; para a produção de energia eléctrica, incluindo a construção de barragens; para fins industriais; para a pesca e caça; etc.

Todavia, eles relacionam-se, na medida em que os usos relativos à navegação podem afectar os usos não-navegacionais, e vice-versa, como acontece por exemplo às actividades piscatórias ou de construção de barragens, que podem influenciar ou afectar a navegabilidade de um curso de água ou ainda os índices de produtividade do mesmo, o que leva a questionar a forma como podem ser resolvidos os conflitos que podem surgir entre os usos navegacionais e os não navegacionais, em que se discute se há alguma prioridade ou preferência entre os mesmos.

135

A doutrina dominante, que aponta para a priorização dos usos navegacionais dos cursos de água, deixou de ser justificável228, sendo a

solução para esta questão a que se encontra prevista no artigo 10.° da Convenção de Nova Iorque, que contém a seguinte previsão:

Na falta de acordo ou costume contrário, nenhum uso de um curso de água internacional goza de prioridade em relação a outros usos. No caso de conflito de usos de um curso de água internacional, o mesmo será resolvido nos termos dos artigos 5.° a 7.°, sendo dada especial atenção `as necessidades vitais humanas229.

Assim, sendo certo que nenhum uso da água goza de prioridade sobre todos os demais, a norma acima determina, todavia, prioridade em relação às necessidades vitais humanas, que devem aqui ser entendidas como o direito humano à água.

Tal como está redigido o citado artigo, duas ilações devem ser retiradas da sua interpretação. A primeira tem a ver com o facto de, ao não determinar nenhum uso como tendo primazia em relação a todos os outros, isso significa que para cada caso é necessário analisar, pelas partes envolvidas, a melhor forma de determinar casuisticamente como é que as prioridades serão colocadas em relação aos interesses individuais dos Estados ou entidades envolvidas. Segundo, com esta previsão a norma visa garantir que os cursos de água estejam disponíveis para utilizações múltiplas, devendo em cada

228 Nesta perspectiva, e com uma discussão detalhada do assunto, vide STEPHEN C.

MACCAFFREY, The Law of International Watercourses. Non-Navigational Uses, Oxford University Press,2003, p. 47.

229 Os artigos 5.° a 7.° aqui referidos dizem respeito ao Uso Razoável e Equitativo e à

Participação; aos Factores relevantes para o Uso Razoável e Equitativo; E à Obrigação de Não Causar Dano, respectivamente.

136

situação, de acordo com a conveniência e vontade das partes, determinar-se os modos de uso.

Uma questão que merece também análise é a de saber se os Estados ribeirinhos podem, de comum acordo, afastar a regra do Artigo 10.° da Convenção de Nova Iorque, determinando quais os usos que do seu ponto de vista são considerados prioritários, tendo em conta as suas necessidades. Não nos parece, todavia, que tal seja possível, na medida em que o que está em causa não é somente a vontade dos Estados como potenciais utentes dos cursos de água, mas sim toda uma vasta gama de sujeitos. Por outro lado, a aceitação de tais normas poderia pôr em causa a igualdade que se quer atribuir aos diversos usos, sejam navegacionais ou não navegacionais.

Questão diferente é a de saber se os Estados ribeirinhos podem discutir a forma de uso ou ainda condicionar os usos dos cursos de água. Esta é a questão que se discute, por exemplo, entre Moçambique e Malawi, em relação à navegabilidade do Rio Chire, um afluente do Rio Zambeze, em que as autoridades Moçambicanas condicionam a navegabilidade do mesmo, por uma questão de sustentabilidade, à realização de uma avaliação de impacto ambiental, pelos receios colocados pela actividade de navegação ao ambiente aquático.

Entretanto, seria sempre possível proceder à celebração de um acordo no qual para além da partilha de benefícios as partes poderiam sempre estabelecer regras claras sobre compensação por danos no ambiente e danos ambientais. Porque há uma diferença grande entre os usos navegacionais e os não navegacionais. A navegação, para começar, implica o acesso de navios estrangeiros a outro país, muitas vezes, com todas as implicações que daí podem advir.

Todavia, sendo certo que os usos não-navegacionais num Estado podem afectar outros Estados, os cenários são diferentes. Daí que a questão da navegação careça de acordos, e do respeito de outras normas, porque,

137

como afirma Stephen McCaffrey, é muito menos óbvio que um uso não navegacional num Estado afecte outro Estado, porque tais efeitos podem não ser imediatamente visíveis, o que torna difícil a identificação de danos230. Por

outro lado, a navegação é geralmente considerada um uso benigno, que a não ser que interfira com os interesses de navegação de outro Estado, ou polua as águas, é sempre uma actividade não danosa, por ser não consumptiva, a não ser que interfira com os planos de desenvolvimento ou actividades de navegação de outros Estados231.

Pelo que um Estado que permite a navegação nas suas águas não tem muito a perder, em princípio, sendo na verdade o que pode explicar a reacção negativa dos Estados o facto de o seu território estar a ser usado, na senda da “doutrina Harmon”, que em breve analisaremos. Entretanto, surge sempre a questão de saber quando é que as águas são de um Estado, isto é dentro do seu território. A resposta óbvia seria a de recorrer à delimitação territorial, sendo consideradas como próprias todas as águas que se encontrem dentro dos limites de um Estado.

Todavia, o mesmo não acontece aos usos não-navegacionais, porque estes podem pôr em causa não só a quantidade mas também a qualidade da água, sendo por isso menos pacífico este tipo de uso.

Importa por último referir que a crescente importância dos usos diversos da navegação em relação aos usos para fins de navegação não deixa margem para dúvidas em como a navegação já não goza do estatuto de principal actividade, sendo prova o facto de haver uma crescente tendência de regulação das águas para fins diversos da navegação.

230 STEPHEN C. MACCAFFREY, The Law of International Watercourse. Non- Navigational uses , Oxford University Press, 2003, p. 65.

231 STEPHEN C. MACCAFFREY, The Law of International Watercourse. Non- Navigational uses , Oxford University Press, 2003, p. 66.

139

II - Síntese Conclusiva do Capítulo II II.I. O Direito Internacional de Águas

II.1. O Direito Internacional de Águas é o termo usado para identificar as regras que regulam o uso de águas partilhadas por dois ou mais Estados, sendo composto por normas substantivas, que atribuem direitos e deveres aos Estados de bacia, bem como por regras adjectivas ou procedimentais, que estabelecem requisitos e modalidades de uso e acesso dos recursos hídricos internacionais. O termo Direito Internacional de Águas é usado em contraposição ao conceito de Direito de Águas, entendido como o conjunto de princípios e normas jurídicas que disciplinam o domínio, uso, aproveitamento e a preservação das águas a nível interno.

II.2. O Direito Internacional de Águas regula o acesso, uso e gestão de águas, por três razões principais: primeiro, pelo carácter inter-estatal das bacias hidrográficas internacionais; segundo, porque os direitos humanos e outros princípios do direito internacional são afectados pelo nível de acesso à água; terceiro, nos casos em que o ciclo hidrológico internacionaliza os recursos hídricos nacionais, causa-se um efeito internacional ao qual descortinaram-se as necessárias respostas, que são deste ramo do Direito.

II.3. O Direito Internacional de Águas teve uma evolução que se confunde com a evolução do Direito Internacional de geral, mas é um ramo do Direito autónomo, porquanto desenvolveu princípios e normas que visam regular a conduta dos Estados no que diz respeito à utilização de cursos de água partilhadas, por via do costume internacional, de tratados internacionais, decisões de tribunais internacionais, de resoluções e recomendações de organizações internacionais. Por este motivo o Direito Internacional de Águas é tido como sendo uma mistura de hard law e soft law.

140

II.II. Sobre a confluência de normas que corporizam o Direito Internacional de Águas

II.4. O Direito Internacional de Águas é um Direito de confluência de normas aprovadas quer por organizações internacionais ou ainda por via de acordos entre os Estados aplicadas tendo sempre em conta normas regionais aplicáveis para cada caso, mormente as posições e interesses dos diversos actores, nomeadamente os Estados de bacia.

II.5. A confluência de normas, que se manifesta pela pluralidade normativa constituída por normas internas, regionais e internacionais obriga a descortinar qual o limite do poder de jurisdição local, regional e internacional na aplicação do Direito de Águas, tanto no plano instrumental, no plano substantivo, assim como no plano subjectivo.

II.6. O uso dos cursos de água internacionais é destinado para diversos fins que competem entre si: consumo humano (água potável, para uso doméstico, etc.), irrigação, pesca, navegação, geração de energia eléctrica, gestão de cheias, recreação, turismo entre outros. Para melhor estudo e aplicação das normas, o Direito Internacional de Águas é divido em Direito de Águas para fins navegacionais, e por outro lado o Direito de Águas para fins não navegacionais. É neste último que se desenvolveu a autonomia dogmática do Direito de Águas.

II.7. Nos cursos de água partilhados, os Estados ribeirinhos gozam de uma soberania limitada. Isto significa que o acesso e uso à água, em tratando- se de um curso de água internacional, não dependem somente da livre e espontânea vontade do Estado, mas também dos interesses dos demais Estados com os quais partilha os recursos hídricos internacionais.

II.8. O Direito Internacional de Águas visa regular a administração da água, da terra e de outros recursos associados, a maximização dos benefícios económicos, sociais e ambientais de forma equitativa, para que todos os que

141

dependam de recursos hídricos partilhados possam ter um acesso inclusivo, designada gestão integrada de recursos hídricos, que pressupõe uma união de esforços entre os Estados, instituições e indivíduos, que devem harmonizar suas legislações e atitudes para com os recursos, mormente a água, de forma a garantir um acesso equitativo à mesma, seu uso sustentável, e evitar conflitos.

II.9. O quadro normativo para a governação dos cursos de água internacionais foi inicialmente desenvolvido a nível de organizações não- governamentais ligadas ao estudo e investigação do Direito Internacional, nomeadamente a International Law Association (ILA), o Institut du Droit International (IDI) e a Comissão do Direito Internacional das Nações Unidas (ILC). Entretanto, o esforço de codificação encontra-se actualmente num movimento global, que inclui codificações regionais e de bacias hidrográficas específicas que ocorrem de forma simultânea, que fazem confluir as regras e princípios internacionais que constituem princípios gerais de Direito Internacional de Águas aplicáveis a nível global com as normas regionais, de bacia hidrográfica e até locais.

II.III. Relação entre Direito de Águas para fins diversos da navegação e o Direito de Águas para fins navegacionais

II.10. Não há nenhum tipo de conflito e ou concorrência entre o regime dos usos não navegacionais e o regime dos usos navegacionais, porque cada um tem o seu objecto claramente identificado e as áreas de incidência não são, muitas das vezes, convergentes, porquanto eles relacionam-se, podendo os usos relativos à navegação afectar os usos não-navegacionais, e vice- versa.

II.11. Os conflitos que podem surgir entre os usos navegacionais e os não navegacionais encontram solução no artigo 10.° da Convenção de Nova

142

Iorque, que define e recomenda o uso equitativo e razoável como critério de acesso, uso, gestão e resolução de conflitos relacionados com a água.

143

CAPÍTULO III - A Codificação do Direito de Águas

No documento A AFIRMAÇÃO DO DIREITO DE ÁGUAS (páginas 166-175)