CAPÍTULO II O Direito Internacional de Águas na Enciclopédia Jurídica 2 O Direito Internacional
2.3. O Direito Internacional de Águas como um Direito de confluência de normas
2.3.2. Direito Internacional de Águas para fins navegacionais
Historicamente, o Estado quase sempre exerceu poder sobre os recursos naturais, apesar de, na prática, as comunidades que viviam à beira dos cursos de água serem quem de facto controlava a navegação e o comércio.216 Desde o período romano, as leis e costumes tornaram-se os
mecanismos de gestão de águas, tendo as práticas costumeiras sido o factor decisivo para a determinação de direitos sobre a água.217
Regra geral, o uso dos cursos de água é analisado sob duas perspectivas: na perspectiva do uso navegacional e na perspectiva dos usos não-navigacionais. Todavia, por vezes torna-se impraticável seguir esta abordagem, sendo mais fácil procurar soluções práticas olhando para o problema tal como ele se apresenta. É esta a razão pela qual avançou-se com a doutrina do fluxo mínimo: a nível internacional, numerosos tratados contém normas reguladoras do fluxo dos rios internacionais, para vários propósitos
216 AARON T. WOLF, Summury: The History and Future of International River Basins, Water for Peace: A Cultural Strategy, UNESCO-IHP, 2003, p. 152.
217 AARON T. WOLF, Summury: The History and Future of International River Basins, Water for Peace: A Cultural Strategy, UNESCO-IHP, 2003, p. 154.
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tais como a produção de energia, a protecção dos recursos pesqueiros e flutuações de toros218.
Entretanto, a mais usual das classificações dos usos multi-dimensionais dos cursos de água internacionais, para fins legais, é a que seguimos, e que se baseia em usos navegacionais e usos não-navegacionais. Até ao século XVIII, os Estados em cujo território atravessam rios internacionais consideravam a parte dos rios navegáveis dentro dos seus territórios como sua propriedade, e impunham taxas e restrições aos navios e actividades comerciais como entendessem e sem critérios, e reclamavam o direito de prevenir os outros Estados, mesmo ribeirinhos, de usar a parte do rio que estivesse dentro dos seus limites de fronteira, mesmo para fins de navegação.
Por outro lado, os usos não navegacionais dos rios, tais como a irrigação, a produção de energia, etc., não constituíam concorrência aos usos navegacionais, o que fez com que a partir do início do século XIX a navegação se tenha tornado a principal actividade económica nos rios, o que os transformou em verdadeiras auto-estradas. E esta crescente procura dos rios para fins navegacionais é que levou a que os Estados celebrassem tratados, tendo sido o Acto do Congresso de Viena de 1815, que estabeleceu o princípio da liberdade de navegação, e a prioridade deste fim em relação a todos os outros, um dos primeiros a ser celebrado219.
Depois da Revolução Francesa, a França, com as suas ideias mais liberais, promoveu a teoria de que um rio internacional é um bem comum dos
218 ALBERT UTTON and JOHN UTTON, The International Law of Minimum Stream Flows 10
Colo. J. Int'l Envtl. L. & Pol'y, 7, 1999, p. 5.
219 SALMAN M.A. SALMAN, The Helsinki Rules, the UN Watercourses Convention and the Berlin Rules: Perspectives on International Water Law, Water Resources Development, Vol. 23, No. 4,
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países pelos quais o rio corre220 221. Consequentemente, foi necessário
descortinar regras que regulassem os diversos usos dos cursos de água. Por isso, os acordos referentes ao acesso, uso, gestão e protecção de recursos hídricos podem ter dois fins: por um lado, podem destinar-se a reger situações atinentes à navegação; por outro lado, os acordos relativos ao acesso, uso, gestão e protecção de recursos hídricos internacionais (e por isso relativos a fins diversos da navegação, ou não navegacionais).
Não é dada, muitas vezes, a devida importância à navegação nas águas interiores, mas ela continua a ter uma importância grande importância como actividade económica, que nalguns casos chega a ser tão importante quanto os usos não navegacionais, tais como a pesca, a irrigação ou a produção de energia. Obviamente que o movimento de bens, pessoas e navios não tem hoje a mesma importância vital como teve nos séculos XIX e parte do século XX, não só por questões comerciais mas também como forma de penetração no continente africano, através do rio Congo, que se tornou possível graças à liberdade de navegação estabelecida em 1885 pela Conferência de Berlim222,
tanto mais que como veremos, a questão navegacional tem sido a causa de um diferendo entre Moçambique e Malawi.
No que à navegação diz respeito, os factos indicam que a liberdade de navegação foi inicialmente discutida na Europa, após a Revolução Francesa e as guerras napoleónicas. O Acto Final do Congresso de Viena de 1815, que
220 SALAH EL-DIN AMER, The Law of Water-Historical Record, Options Méditerranéennes,
Sér. A /n031, 1997, p. 381.
221 Refere ainda o mesmo autor que Brasil e Argentina, na América do Sul, abriram os rios
Amazonas e Del Plata para a navegação em 1866.
222 Lucius Caflisch, Regulation of the Uses of International Watercourses, in SALMAN M. A.
SALMAN e LAURENCE BOISSON DE CHAZOURNES (eds), International Watercourses. Enhancing
Cooperation and Managing Conflict. Proceedings of a World Bank Seminar, The International Bank for
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cessou com tais guerras, continha normas sobre a abertura dos rios internacionais para os navios de bandeira que celebravam contratos de transporte de mercadorias com países subscritores do referido acto. E para além dos referidos, obviamente que a navegação estava também aberta para os Estados ribeirinhos, com a fundamentação legal baseada na ideia de que as águas em questão eram de interesse comum de tais Estados e por isso os mesmos gozavam de direitos em relação aos mesmos223.
De forma geral, a Convenção de Manheim de 1868 sobre a Navegação do Rio Reno, celebrada entre a Bélgica, França, Alemanha e Holanda, é considerada como o primeiro acordo de importância internacional, e com um impacto significativo. Esta Convenção adoptou as recomendações do Congresso de Viena de 1815, bem como as saídas da Convenção de Mainz de 1831, que tinham como cerne o dever de todas as partes envolvidas garantirem a liberdade de navegação no rio Reno224.
A liberdade de navegação estava inicialmente confinada aos Estados ribeirinhos. Todavia, a celebração do Tratado de Versalhes, de 28 de Junho de 1919 e do Estatuto de Barcelona sobre o Regime de Navegação Sobre Cursos de Água de Importância Internacional, a 20 de Abril de 1921, ambos celebrados sobre a égide da Liga das Nações, foram mais tarde alguns dos principais exemplos das tendência da época, que sendo favorável à liberdade de navegação, tendo em conta questões económicas, históricas e políticas
223 LUCIUS CAFLISH, Regulation of the Uses of International Watercourses, in SALMAN M. A.
SALMAN e LAURENCE BOISSON DE CHAZOURNES (eds), International Watercourse. Enhancing
Cooperation and Managing Conflict. Proceedings of a World Bank Seminar, The International Bank for
Reconstruction and Development / The World Bank, 1998, p. 9.
224 LUCIUS CAFLISH, Regulation of the Uses of International Watercourses, in SALMAN M. A.
SALMAN e LAURENCE BOISSON DE CHAZOURNES (eds), International Watercourse. Enhancing
Cooperation and Managing Conflict. Proceedings of a World Bank Seminar, The International Bank for
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vigentes em cada região e ou curso de água225, abriram a navegação a todos
os Estados Europeus, somente para a navegação de cabotagem.
Um exemplo elucidativo desta abertura é o Estatuto de Barcelona sobre o Regime de Navegação Sobre Cursos de Água de Importância Internacional, a 20 de Abril de 1921, que teve como partes o Império Britânico, a Nova Zelândia e a Índia, teve também um papel primordial na gestão dos cursos de água internacionais. O Artigo 1.° da Convenção de Barcelona definiu o que devia ser entendido como curso de água internacional, estabelecendo no seu n.° 1 que devem como tal ser entendidas “Todas as partes que são naturalmente navegáveis para e do mar de um curso de água que, no seu percurso, naturalmente navegável para o mar e do mar para o interior, separa ou atravessa diferentes Estados, ou ainda qualquer parte de qualquer curso de água naturalmente navegável para o mar e do mar para o interior, que liga com o mar um curso de água naturalmente navegável que separa ou atravessa diferentes Estados”.
Esta tendência de liberalização da navegação prevaleceu apesar da competição existente entre os navios dos países ribeirinhos e os de bandeira estrangeira, no seguimento da política do laissez−faire então em voga na Europa. Para além disso, a expansão colonial e suas políticas concomitantes, e o desejo de melhor controlar a derrotada Alemanha saída do pós-guerra obrigava a que houvesse um maior entendimento entre as potências europeias, que a par da necessidade de garantir a sobrevivência da então recém-criada Polónia, na Europa central, obrigavam a uma maior abertura da navegação.
E a liberdade de navegação continuou em alta, até à altura da grande ameaça ao liberalismo económico surgida com o advento do regime autoritário
225 LAURENCE BOISSON DE CHAZOURNES, Freshwater and International Law: The Interplay between Universal, Regional and Basin Perspectives, UNESCO-UNWWDR n.° 3, 2009, p. 5.
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fascista, que causou o declínio da navegação na Europa. E este declínio continuou com a Guerra Fria, por um lado, e com a independência dos países africanos, por outro, na medida em que num caso houve a limitação da liberdade de circulação dos navios de bandeira do leste europeu no rio Danúbio, e noutro caso a substituição dos acordos e tratados celebrados pelas potências coloniais por acordos e ou legislação pós-coloniais que limitavam a navegação aos países ribeirinhos.
2.3.3. Direito Internacional de Águas para fins diversos da navegação