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O Direito Internacional de Águas como ramo do Direito Internacional O Direito Internacional de Águas é o termo usado para identificar as

No documento A AFIRMAÇÃO DO DIREITO DE ÁGUAS (páginas 135-143)

CAPÍTULO II O Direito Internacional de Águas na Enciclopédia Jurídica 2 O Direito Internacional

2.2. O Direito Internacional de Águas como ramo do Direito Internacional O Direito Internacional de Águas é o termo usado para identificar as

regras que regulam o uso de águas partilhadas por dois ou mais Estados, podendo atravessá-los ou servir de fronteira entre os mesmos. O Direito

177 A codificação do Direito Internacional consiste na formulação mais precisa e sistemática de

certos costumes ou regras não escritas e a transformações dos mesmos em regras escritas, codificadas, em áreas nas quais exista uma longa história de prática e precedentes, entre os Estados.

178 O desenvolvimento progressivo do Direito Internacional significa a preparação de propostas

de Convenções sobre assuntos que ainda não tenham sido objecto de regulação pelo Direito Internacional.

179 A ILC é um órgão da ONU composto por peritos em Direito, indicados pelos Estados

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Internacional de Águas é composto por normas substantivas, que atribuem direitos e deveres aos Estados de bacia, bem como por regras adjectivas ou procedimentais, que estabelecem requisitos e modalidades de uso e acesso aos recursos hídricos internacionais.

Este conceito é apresentado em contraposição ao conceito de Direito de Águas, entendido como o conjunto de princípios e normas jurídicas que disciplinam o domínio, uso, aproveitamento e a preservação das águas a nível interno. Por isso, o Direito Internacional de Águas regula igualmente o Direito aplicável aos aquíferos subterrâneos, em consequência dos tratados celebrados pelos Estados sobre o uso e protecção dos recursos hídricos, por um lado, e à necessidade de protecção dos direitos humanos, por outro.

Pelo que convém, desde já, deixar claro que o Direito Internacional de Águas diz respeito ao Direito aplicável aos cursos de água internacionais, conceito este que deve ser apreciado tendo em conta a percepção que se tem em relação à expressão ‘sistema de curso de água’. Historicamente, e até muito recentemente, a prática dos Estados em relação ao Direito Internacional de Águas limitava-se às águas dos rios e lagos que fosse partilhada entre dois ou mais Estados, isto é, aquelas águas que fossem imediatamente alcançáveis por serem águas superficiais, o que percebe-se facilmente, se considerarmos que durante muito tempo a importância da navegação é que era a grande questão que suscitava o interesse nos cursos de água, da mesma forma que a hidrologia só desenvolveu-se recentemente.

Todavia, o conceito de curso de água adoptado hoje em dia, que é elaborado tendo em conta o conceito de ciclo hidrológico, leva a que se inclua no amplo conceito de curso de água não só as águas superficiais mas também as subterrâneas. Assim, um curso de água é referido tendo em conta não só os rios, lagos e lagoas e glaciares (que são águas superficiais em estado

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sólido) e todas as outras formas artificiais como canais e reservatórios, mas também pelas águas subterrâneas interligadas a tais sistemas superficiais180.

O que acontece é que 23% da quantidade total de água existente na terra é água subterrânea181, e a água subterrânea tem algumas

características, quais sejam estar constantemente em movimento e por outro estar associada a rios e lagos182.

De facto, se durante muito tempo discutiu-se a questão das águas subterrâneas em separado da questão das águas superficiais, tal segregação deixou de ser feita por hidrologistas e até pelo público em geral, e foi inclusive necessário fazer uma aproximação entre estes conceitos a nível jurídico. Isto acontece porque percebeu-se, nas últimas décadas, que a interrelação entre as águas superficiais e as águas subterrâneas é mais profunda do que se pensava, porque por exemplo a água retirada de um aquífero subterrâneo que tenha um certo equilíbrio acaba desequilibrando não só esse aquífero mas também outros aquíferos, porque como referimos, a água subterrânea está sempre em movimento. E se um aquífero é desequilibrado, ele rapidamente busca água noutro local, para que reponha o seu curso normal, e no fim das contas os rios, lagos e terras húmidas é que acabam sacrificados, a ponto de ficarem com os caudais muito reduzido ou mesmo secarem183, sendo o

inverso também verdadeiro: a poluição de águas superficiais provoca a poluição de águas subterrâneas.

180 Refira-se que os níveis de uso das águas subterrâneas são muito elevados, sendo o

consumo da mesma responsável por cerca de 70% da quantidade total de água consumida na Europa, 93% na Itália e 98% na Dinamarca.

181 Sendo 76% constituída pelas calotas polares e glaciares e os restantes 0.33% as águas

superficiais.

182 Mas esta situação pode não ocorrer em zonas áridas.

183 Vide STEPHEN C. McCAFFREY, The Law of International Watercourses. Non Navigational Uses, Oxford University Press, 2003, p. 29.

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Por isso, esta relação muito próxima entre as águas superficiais e as águas subterrâneas prova ser mais importante do que inicialmente se pensava, a ponto de hoje em dia falar-se de ‘sistemas de curso de água’, que melhor se espelha no conceito de bacia hidrográfica, querendo com esta expressão referir-se às águas superficiais e subterrâneas.

E o desenvolvimento da ciência tem mostrado, de facto, que as águas subterrâneas não só são muito importantes mas também devem merecer maior atenção, quanto mais não seja pelo facto de as águas superficiais serem cada dia que passa menos aptas, tanto em quantidade como em qualidade, para responder à demanda existente, em virtude da grande exploração e dos excessivos níveis de poluição a que estão sujeitas.

O conceito de curso de água é definido pela Convenção de Nova Iorque, que o define como um sistema de águas superficiais e subterrâneas que constituem, em virtude da sua relação física um todo unitário, e que fluem normalmente para um terminus comum’184, sendo unânime na doutrina que

este conceito engloba rios e seus tributários, lagos, aquíferos, glaciares, reservatórios e canais185.

A expressão curso de água ou ainda sistema de curso de água pode induzir em erro de percepção. Pode-se eventualmente pensar que a expressão aplica-se à água que corre no canal, sem que se inclua este, mas o que se quer de facto referir é tanto ao canal e à água que ele contém. Por outro lado, é legítimo alegar que a expressão ‘curso de água’ pode ser pouco fiel ao que ela quer de facto representar, tendo em conta o que referimos em

184 Vide alínea a) do artigo 2.° da Convenção.

185 Pelo que um curso de água deve ser entendido não só como as águas superficiais,

visíveis, palpáveis e diretamente acessível, mas também como o conjunto de águas subterrâneas existentes na mesma região, que fazem parte do que se chama bacia hidrográfica. Englobam-se neste conceito as águas dos lagos e dos rios efémeros.

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relação ao facto de ela englobar tanto águas superficiais e subterrâneas. Por isso, é comummente usada a expressão bacia hidrográfica, que compreende não só os ‘cursos de água’ mas também as terras pelas quais as águas superficiais fluem.

Um curso de água diz-se internacional quando o mesmo é partilhado entre dois ou mais Estados, de forma sucessiva, ou ainda serve de fronteira entre os mesmos, de forma contígua, podendo ainda o mesmo rio ser contíguo e sucessivo, ao mesmo tempo, tal como acontece com os rios Zambeze186 e

Danúbio187.

Pela definição que é dada pela Convenção de Nova Iorque, um curso de água internacional ‘é aquele cujas partes se encontrem situadas em países diferentes’, devendo neste caso entender-se como ‘parte’ qualquer componente do curso de água, que pode ser o curso principal, um afluente ou tributário ou ainda um aquífero que recebe água de ou contribui com água para porções do curso de água que se encontre noutro Estado188.

Pelo que sendo o curso de água entendido como o conjunto de águas superficiais e subterrâneas que constituem, em virtude da sua relação física um todo unitário, e que fluem normalmente para um terminus comum, e deste conceito decorre o de bacia hidrográfica, é unânime afirmar que este conceito

186 O rio Zambeze forma a fronteira entre a Zâmbia e o Zimbabwe, atravessando de seguida

para Moçambique.

187 Com nascente na Alemanha, o rio Danúbio atravessa este país, a Áustria, de seguida faz

fronteira entre a Áustria e a Eslováquia, para de seguida atravessar a Eslováquia, e depois de percorrer este país faz fronteira com a Hungria e a Eslováquia. Percorre de seguida a Hungria, para depois fazer a fronteira entre a Croácia e a Jugoslávia, percorrendo de seguida este último país, e fazendo a fronteira entre a Jugoslávia e a Roménia e ainda entre a Roménia e a Bulgária; atravessa a Roménia e divide-se por último em três braços, um dos quais faz ainda a fronteira entre a Ucrânia e a Roménia.

188 Vide STEPHEN C. McCAFFREY, The Law of International Watercourses. Non Navigational Uses, Oxford University Press, 2003, p. 41.

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é aplicável, mutatis mutandi, à bacia hidrográfica internacional. Isto é, a um curso de água internacional corresponde sempre uma bacia hidrográfica internacional, incluindo este conceito as águas superficiais e subterrâneas que à mesma dizem respeito.

O Direito Internacional de Águas surgiu no início do século XIX189, como

resposta à necessidade de regulação das disputas e interesses conflituantes em torno dos cursos de água internacionais, que durante muito tempo foram geridos de forma amigável ou então pela imposição unilateral da vontade dos Estados ou grupos de Estados, por via do uso da força, da intimidação ou de recurso a represálias.

Deste modo, salta à vista a importância da rule of law na regulação e gestão dos recursos hídricos partilhados, na medida em que se por um lado as leis de per si não produzem soluções para as diversas preocupações levantadas pelo uso da água respectiva protecção, não é menos verdade que o Direito dá meios que permitam encontrar possíveis soluções para preocupações ligadas aos recursos hídricos, mormente sobre o uso, protecção e conservação.190

Por isso, uma das maiores armas criadas pelo Direito para enfrentar a problemática dos recursos hídricos é a celebração de acordos de cooperação sobre o uso e gestão da água, de modo a evitar conflitos e criar um ambiente amigável entre os Estados, povos e regiões.

Actualmente são apontadas três razões pelas quais o Direito Internacional de Águas regula o acesso, uso e gestão de águas, nomeadamente: primeiro, pelo carácter inter-estatal das bacias hidrográficas internacionais; segundo, porque os direitos humanos e outros princípios do

189 LAURENCE BOISSON DE CHAZOURNES, Freshwater and International Law: The Interplay between Universal, Regional and Basin Perspectives, UNESCO-UNWWDR n.° 3, 2009, p. 3.

190 LAURENCE BOISSON DE CHAZOURNES, Freshwater and International Law: The Interplay between Universal, Regional and Basin Perspectives, UNESCO-UNWWDR n.° 3, 2009, p. 3.

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Direito Internacional são afectados pelo nível de acesso à água; em terceiro, nos casos em que o ciclo hidrológico internacionaliza os recursos hídricos nacionais, causando efeitos internacionais, tornam-se necessárias respostas adequadas, que só podem ser dadas por este ramo do Direito191.

O Direito Internacional de Águas teve uma evolução que se confunde com a evolução do Direito Internacional geral. Princípios gerais e conceitos básicos, como os de igualdade soberana dos Estados, não interferência nos assuntos internos dos Estados, responsabilidade do Estado por incumprimento de obrigações a nível internacional e resolução pacífica de disputas internacionais, foram por isso incorporados e adaptados no Direito Internacional de Águas, sem serem exclusivos e muito menos criação própria do mesmo.

Todavia, isto não significa que o Direito de Águas não seja um ramo autónomo. Muito pelo contrário, e por via da especificidade dos assuntos tratados por este ramo do Direito, ele desenvolveu uma série de princípios e normas que visam regular a conduta dos Estados no que diz respeito à utilização de cursos de água internacionais. Por exemplo, de entre as várias regras nele existentes encontramos a regra segundo a qual os Estados tem o direito de usar as águas de recursos hídricos internacionais que estejam localizados dentro do seu território de forma equitativa e razoável, mas têm o correlativo dever de garantir que os outros Estados de bacia possam desfrutar de direitos similares. Como veremos, esta é uma inovação de entre muitas regras que compõem este ramo do Direito.

O Direito Internacional de Águas teve uma evolução para a qual contribuiu o costume internacional (por via da prática dos Estados), por um lado, e por outro através de tratados internacionais, tendo sido igualmente

191ANTOINETTE HILDERING, International Law, Sustainable Development and Water Management, Eburon Publishers, 2004, p. 59.

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influenciado por outras fontes do Direito, nomeadamente os princípios gerais do Direito Internacional, decisões de tribunais internacionais, e resoluções e recomendações de organizações internacionais.

Deste modo, o Direito Internacional de Águas desenvolveu-se e estabeleceu-se por via da prática dos Estados, codificação e desenvolvimento progressivo das práticas e normas dispersas a nível internacional como fruto do esforço das Nações Unidas192 e de organizações não-governamentais, que

por via de acordos gerais (que contêm regras e princípios básicos sobre a exploração de recursos hídricos), ou acordos específicos de natureza contratual, legal e ou técnico, foram criando normas reguladoras. Por este motivo, e tal como analisaremos adiante, o Direito Internacional de Águas é tido como sendo uma mistura de hard law e soft law193, e ainda por práticas

dos Estados194.

192 Cujo papel, como referido, é exercido pela ILC, nos termos dos seus Estatutos. Para

consultá-los, vide http://www.un.org/law/ilc/texts/statufra.htm.

193 Nos últimos três séculos foram celebrados mais de dois mil acordos sobre águas. Vide

EDITH BROWN WEISS, Water Transfers and International Trade Law, in Edith Brown Weiss et al. (Eds), Fresh Water and International Economic Law, Oxford University Press, 2005, p.235. Vide igualmente PAULO CANELAS DE CASTRO, The Future of International Water Law, Luso-American Foundation, Lisbon, 2005, p. 16, que afirma, de forma peremptória que esta característica é uma das novas imagens do Direito Internacional de Águas.

194 Sendo estas práticas vistas como corporizando o Direito costumeiro internacional dos

cursos de água internacionais, que para além daquelas inclui a opinio juris e os ensinamentos dos mais qualificados publicistas. Para mais desenvolvimentos, vide Joseph W. Dellapenna, The

Customary International Law of Transboundary Fresh Waters, 1 Int. J. Global Environmental Issues,

N°s. 3/4, 2001, p.122. Vide igualmente JAMES C. MCMURRAY and A. DAN TARLOCK, The Law of

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2.3. O Direito Internacional de Águas como um Direito de confluência de

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