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A Problemática da Água

No documento A AFIRMAÇÃO DO DIREITO DE ÁGUAS (páginas 37-46)

CAPÍTULO I – Introdução 1 Razões justificativas do âmbito da investigação

1.1. Considerações gerais

1.1.1. A Problemática da Água

A questão da água (doce) tem sido apontada como um dos maiores desafios que o mundo enfrenta actualmente3. De facto, a importância vital da

água como recurso necessário para a subsistência humana, e como elemento necessário para o desenvolvimento sócio-económico das sociedades, é tal que justifica-se, na maior plenitude, o ditado ‘sem água não há vida’4.

Entretanto, se considerarmos a quantidade de água existente no mundo e o número de habitantes existentes no planeta, haveria água suficiente para todos5. Todavia, o desafio que se coloca em relação à água é o facto de ela

3 EDITH BROWN WEISS, The Evolution of International Water Law, Martinus Nijhoff

Publishers, Leiden/Boston, 2009, p. 177.

4 Referindo estudos que apontam a água como uma das preocupações principais da

humanidade no futuro próximo, vide CARLOS MANUEL SERRA e FERNANDO CUNHA, Manual de

Direito do Ambiente, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, 2ª Edição, 2008, p. 51.

5 A água cobre 2/3 da superfície terrestre, sendo todavia somente 3% desta água doce,

porque 97% de toda a água existente está nos oceanos, sendo portanto salgada. Considerando a percentagem de água doce existente, importa referir que dessa porção 77% está retida nos glaciares e icebergs, não sendo directamente aproveitável e 22% constituem água subterrânea (aquíferos), que, por vezes, se localizam a grandes profundidades, o que impede ou dificulta a sua captação. Assim, apenas uma reduzida percentagem de água (1%) se encontra nos rios, lagos e solo, podendo ser aproveitada pelo homem. Se excluirmos as reservas de gelo das calotas polares e glaciares, a água doce utilizável representa apenas 0.6% da água do nosso planeta, que se reparte desigualmente pelas diversas regiões continentais. Destes 0,6% de água doce utilizável, 97% correspondem a águas subterrâneas (aquíferos), representando os rios e os lagos uma percentagem muito pequena.

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estar mal distribuída6. Esta distribuição desigual da água é elucidada com

factos concretos, que mostram que as regiões áridas (que são os locais nos quais a evaporação é maior que a precipitação) compõem 33% da Europa, 60% da Ásia, 85% da África, quase toda a Austrália e parte significativa da América do Norte7.

De acordo com a FAO8 mais de 2.8 biliões de pessoas em 48 países

estarão em situação de stress hídrico ou de escassez de água, até 2025, e até 2050 esse número de países pode subir para 54. O conceito de stress hídrico, que se baseia no confronto entre as necessidades mínimas de água per capita para manter uma qualidade de vida adequada em regiões moderadamente desenvolvidas situadas em zonas áridas. A definição baseia-se no pressuposto de que 100 litros diários (36,5 m3/ano) representam o requisito mínimo para suprir as necessidades domésticas e a manutenção de um nível adequado de saúde9.

A escassez de água pode ser definida como o ponto no qual o impacto agregado de todos os utentes reflecte-se na oferta ou qualidade da água a ponto de, a procura por parte de todos utentes da mesma, incluindo para fins ambientais, não pode ser totalmente satisfeito. Entretanto, o conceito de escassez de água é relativo, e a mesma pode ocorrer a qualquer nível da

6 Se toda a água doce existente no planeta fosse dividida equitativamente pela população

mundial, haveria entre 5.000 e 6.000 m3 para cada indivíduo por ano. Tendo em conta que um indivíduo necessita no mínimo, por ano, de 1700 m3 este cálculo mostra que existe de facto água em abundância para todos. Vide http://www.fao.org/nr/water/docs/escarcity.pdf, consultado em 26 de Outubro de 2012, as 14.19h.

7 Vide EDITH BROWN WEISS, The Evolution of International Water Law, Martinus Nijhoff

Publishers, Leiden/Boston, 2009, p. 178.

8 Vide. http://www.fao.org/nr/water/docs/escarcity.pdf, consultado em 26 de Outubro de 2012,

as 14.19h.

9 Vide “Coping with water Scarcity. Challenge for the Twenty-First Century”

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procura ou da oferta. A escassez pode ser uma construção social (um produto da expectativa ou comportamento costumeiro) ou consequência da alteração dos padrões de oferta ou procura (em consequência da mudança climática, por exemplo) 10.

Deste modo, tendo em conta que só 0,5% da quantidade de água total existente no planeta é que é directamente acessível aos homens, é preciso esclarecer que este não é um acesso referente a toda população mundial, porque a distribuição dos recursos de água doce seguiu ditames naturais, o que leva a uma outra análise necessária, que é a da distribuição geográfica do recurso: se nalguns locais a água é abundante, noutros nem por isso, havendo uma verdadeira escassez do recurso, sendo as regiões áridas (as que nas quais a evaporação é superior à precipitação) que, naturalmente, mais se ressentem. De facto, a descrição do cenário acima referido é apenas uma parte dos problemas que tornam a questão da água um verdadeiro desafio, porquanto vários outros se colocam, nomeadamente:

a) A questão relativa aos diversos usos da água, que podem ser, dentre outros, o abastecimento público, dessedentação animal, uso industrial, agricultura irrigada, geração de energia eléctrica, transporte aquaviário, turismo e lazer, aquacultura e pesca, que podem ser concorrentes, o que cria o desafio de saber como balancear os vários interesses, e quais os critérios de tomada de decisão a seguir na priorização de certos usos em detrimento de outros;

b) Os impactos dos usos da água: efluentes domésticos, industriais e agro-pecuários, navegação e no processo de geração de energia hidroeléctrica, que podem ser divergentes entre usuários da água;

10 Vide “Coping with water Scarcity. Challenge for the Twenty-First Century”

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c) Os impactos sobre a sociedade: inundações, secas e doenças de veiculação hídrica, que sendo muitas vezes alheios à vontade humana, representam sempre uma grande preocupação;

d) Os impactos ambientais correlatos sobre os recursos hídricos: uso inadequado do solo nas áreas urbana e rural, práticas agrícolas inadequadas, desmatamento, queimadas, mineração, o fraco saneamento básico ou a total inexistência do mesmo, etc.

e) A questão institucional: questões associadas ao arcabouço jurídico institucional, relativas principalmente ao recorte de bacias, mas com rebatimento nas questões internas de cada estado, no sentido de saber que medidas devem ser tomadas para proteger os recursos hídricos, que medidas legais e institucionais devem ser tomadas para garantir uma coordenação adequada, etc.

Deste modo, constata-se que a distribuição dos recursos hídricos no mundo, porque inconstante, acaba tornando-se um dos principais motivos que tornam o uso e a gestão da água um verdadeiro desafio.

Refira-se igualmente que a escassez da água, para além de afectar directamente às populações, tem também um impacto directo nos Estados que de forma natural sofrem devido à variabilidade de água existente, devido por exemplo aos maiores ou menores níveis de precipitação, a boa ou má cooperação existente entre os Estados que partilham bacias hidrográficas, a níveis de consumos mais ou menos reduzidos, etc., sendo certo que os países que mais demandas de água têm nem sempre são os mais ricos em água.

Presentemente, o crescimento económico e a natureza das actividades económicas praticadas é que determinam os níveis de procura e consumo de água, mas é interessante notar, por exemplo, que até 2025 quase todos os

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países da África Sub-sahariana estarão sob stress hídrico ou ainda numa situação de escassez11.

Uma questão importante a analisar é a de descortinar que desafio será este e sobre quem recai o ónus de enfrentá-lo, considerando que, como já se disse, a distribuição da água é uma questão relativa, países havendo que tem água em abundância e outros que passam por uma verdadeira escassez12,

tendo em conta os impactos advenientes tanto do stress hídrico assim como da escassez de água.

Malin Falkenmark foi um dos pioneiros da ideia de stress hídrico.13 Nas

suas análises, concluiu que o ratio da quantidade de água renovável disponível para a população no território de um certo Estado é um perfeito indicador de escassez de água. Assim, poder-se-ia dizer que um país encontra-se “seguro” em relação à água disponível se tivesse 10,000 metros cúbicos de água per capita. Por outro lado, um país seria considerado com quantidade de água “adequada” se o mesmo tivesse entre 10.000 e 1.666 metros cúbicos per capita. Entretanto, os Estados que tivessem quantidades de água que variassem entre 1000 e 1600 metros cúbicos per capita seriam considerados como Estados enfrentando stress hídrico.

Na mesma senda, seriam considerados como tendo um stress hídrico crónico os Estados que tivessem entre 500 e 1000 metros cúbicos de água per

11 Vide An Overview of the State of the World’s Fresh and Marine Waters, 2nd Edition - 2008,

disponível em http://www.unep.org/dewa/vitalwater/article14.html, consultado a 26 de Outubro de 2012, as 22. 40h.

12 Devido à pressão crescente sobre os recursos hídricos mundiais, a UN-Water identificou a

escassez de água como tema do dia mundial da água, em 2007, e muitas acções foram empreendidas nessa data. Vide “Coping with water Scarcity. Challenge for the Twenty-First Century”, acessível em http://www.un.org/waterforlifedecade/scarcity.shtml, consultado a 26 de Outubro de 2012, as 13. 47h.

13 MALIN FALKENMARK, Global Water Issues Confronting Humanity, Journal of Peace

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capita ou abaixo desses níveis. Estes indicadores de stress hídrico foram baseados essencialmente na estimativa das quantidades necessárias para a produção agrícola com base na irrigação. Assim, um Estado que não fosse auto-suficiente na produção de alimentos seria considerado como estando sob stress hídrico, apesar de as quantidades de água per capita serem suficientes para cobrir necessidades domésticas.14

Malin Falkenmark analisa ainda a quantidade de água necessária para um indivíduo durante um ano, e o resultado foi o de 100 litros por dia, diferentemente de Peter Gleick, que estima em 50 litros por dia, para cozinhar, banho, beber e fins sanitários.15 Estas questões são importantes a nível das

bacias hidrográficas partilhadas, na medida em que é preciso saber que quantidade de água é necessária para garantir o direito humano à água das pessoas, e como é que a mesma deve ser distribuída proporcionalmente entre os Estados, de acordo com a relação que se estabelece entre as necessidades existentes versus situação do país no contexto da partilha (porção territorial, existência de outras fontes, etc) para que haja um acesso equitativo, o que previne disputas.

Porque é um facto que a escassez de água induz à competição pela água entre os diversos utentes, entre sectores da economia, entre países e entre regiões16 que partilham recursos naturais, neste caso rios internacionais,

são muitos e diferentes os interesses em jogo, e é preciso encontrar soluções equitativas para as várias questões que se colocam. Os conflitos pela água,

14 JULIE TROTTIER, Water Wars: The Rise of a Hegemonic Concept. Exploring the making of the water war and water peace belief within the Israeli–Palestinian Conflict, Water for Peace: A Cultural

Strategy, UNESCO-IHP, 2003, p. 146.

15 PETER H. GLEICK, The World’s Water: The Biennial Report on Freshwater Resources 1998–1999, Washington, D.C., Island Press, 1998, p.44.

16 Sejam os mesmos ricos ou pobres; terras áridas ou ricas em água; infra-estruturas ou meio

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por exemplo, podem surgir porque a escassez de água afecta comunidades locais, países e regiões que devem partilhar um recurso limitado e insuficiente, e na falta de instrumentos legais necessários ou ainda na falta da devida cooperação, esses conflitos são exacerbados, e caso os poderes, as instituições ou regras instituídas não sejam capazes de manter a ordem, passa a prevalecer a lei do poder, em que vence o mais forte, pelo que o discurso a ser incentivado é o de partilha dos recursos por via de acordos e não o de alocação de quotas. Por isso é que a água é vista como um verdadeiro factor de cooperação entre os Estados e não de conflito. Mas esta máxima só se aplica, obviamente, caso tal cooperação seja bem-sucedida.

Quase sempre, o volume total de água de cada país não é de grande importância, pois está directamente relacionado com a sua área geográfica. Esta afirmação torna-se mais verdadeira se considerarmos que muitos dos rios e lagos existentes no planeta são partilhados por dois ou mais países, o que conjugado com muitos outros factores como a qualidade, o acesso, o uso e a distribuição desses recursos, pode levar-nos à conclusão de que a variabilidade entre os valores máximos e mínimos de recursos hídricos disponíveis, mesmo sendo muito alta, pode contribuir para a geração de problemas sazonais de escassez, e eventualmente de conflitos, entre os vários utentes.

A água disponível per capita reduziu-se em termos globais em cerca de 80 por cento, no século passado, e sendo este um processo contínuo, há cada vez maior escassez de água, maiores disputas, uma redução da “fluidez ambiental” e provavelmente maior uso insustentável da água17, sendo por isso

a garantia da água para satisfação das necessidades básicas humanas, dos

17 ANTHONY TURTON AND RICHARD MEISSNER, The hydrosocial contract and its manifestation in society: A South African case study, In: Hydropolitics in the Developing World: A Southern African Perspective (ANTHONY R. TURTON and R. HENWOOD, Eds.), AWIRU, Pretoria,

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ecossistemas, da agricultura, indústria, recreação, etc., um verdadeiro desafio. A referência ao facto de a existência de água para a satisfação de necessidades humanas ser um verdadeiro desafio nos dias de hoje não significa que outras acções antrópicas não possam ser realizadas com vista a minimizar o problema. Tendo em conta a demanda dos recursos hídricos a nível mundial, e as acções antrópicas para satisfazer tal demanda de água - construção de poços, barragens, açudes, aquedutos, sistemas de abastecimento, sistemas de drenagem, projectos de irrigação e outras estruturas - constata-se, mesmo assim, que aproximadamente 20% dos 5,7 bilhões de habitantes da Terra sofre com a falta de um sistema de abastecimento confiável de água e, além disso, mais de 50% da população não dispunha de um sistema adequado de instalações sanitárias18.

Por outro lado, a referência ao facto de a água ser um verdadeiro desafio não deve, entretanto, ser vista à escala macro, numa perspectiva de escassez ou stress de água que afecta os Estados. Na verdade, são as populações ou talvez até algumas populações dos vários Estados nessas situações (de escassez e stress hídrico) que de forma directa ou indirecta sofrem os impactos nefastos dos mesmos, não importando aqui discutir se são maiorias ou minorias. A premissa é, na verdade, a igualdade de direitos e de oportunidades que os cidadãos têm na satisfação dos seus direitos fundamentais.

18 Os números mais recentes apontam para cerca de 700 milhões de pessoas em 43 países

assoladas pela escassez de água. Até 2025, 1.8 biliões de pessoas estarão a viver em países ou regiões com escassez de água absoluta, e dois terços da população mundial poderá estar a viver em condições de stress hídrico. E, com o actual cenário de mudanças climáticas, quase metade da população mundial viverá, até 2030, em cenários de stress hídrico elevado, e as estimativas indicam que só em África este número está entre 75 e 250 milhões de habitantes, sendo a região da África sub-sahariana a que maior impacto sofrerá. Vide “Coping with water Scarcity. Challenge for the Twenty-First Century” http://www.un.org/waterforlifedecade/scarcity.shtml, consultado a 26 de Outubro de 2012, as 13. 47h.

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Por isso, problemas como falta de acesso à água, falta de saneamento básico, problemas de saúde relacionados à falta de água, fome e malnutrição crónica são apenas exemplos dos problemas concretos que afectam as populações cuja causa principal é relacionada à escassez de água. E, apesar de todos os esforços que são feitos com vista a reduzir o número de pessoas sem acesso à água19, o mundo continua a enfrentar dificuldades em colmatar

o problema, isto porque a solução não se circunscreve somente à vontade individual dos Estados, mas muitas vezes à forma como a nível das relações estatal e inter-estatal a questão é tratada.

Por último, é preciso referir que a gestão de recursos hídricos tem recebido cada vez maior atenção a nível mundial, dada a constatação da problemática generalizada das limitações quantitativas e qualitativas da água, para os quais contribuem o aumento populacional, a urbanização crescente e a degradação ambiental, que são uma realidade na África Austral20, que é

uma região de clima árido e semi-árido com níveis muito altos de taxa de natalidade, e em que as populações dependem grandemente dos recursos hídricos das bacias hidrográficas partilhadas.

Assim, o risco de surgimento de conflitos na região é grande, mais não seja pelo facto de a região sofrer uma grande variabilidade de temperatura e pluviosidade, sendo ao mesmo tempo uma região tropical, semi-árida e árida, o que a torna susceptível à ocorrência de cheias e secas, que vão ocorrendo de forma cíclica. De acordo com os estudos existentes, cerca de sete por cento da região da SADC é desértica, com menos de 100 mm de precipitação

19 Um dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (o objectivo n.° 7) prevê, no seu ponto

10 reduzir, até 2015 a proporção de pessoas sem um acesso sustentável à água potável e condições sanitárias básicas.

20 Vide SALMAN A. SALMAN, Legal Regime for Use and Protection of International Watercourses in the Southern African Region: Evolution and Context, Nat. Resources J. , Vol. 41,

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anuais; cerca de um terço da região é semi-árida, com precipitação variável entre os 100 e os 600 mm, e apenas três por cento da região é que tem precipitação superior a 1500 mm por ano, sendo comum a região ser fustigada por secas imprevisíveis, nalguns anos, e cheias cíclicas, noutros anos21.

No documento A AFIRMAÇÃO DO DIREITO DE ÁGUAS (páginas 37-46)