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5 MERCADO E CLASSIFICAÇÃO DO CAFÉ

5.3 Classificação do café beneficiado

5.3.1 A evolução do marco regulatório

Conforme visto no início deste Capítulo, a cafeicultura firmou-se no Brasil e logrou sucessos mediante o uso de técnicas rudimentares para a obtenção

15 Durante esta pesquisa não foi possível verificar se há registro no Brasil para a marca Robusta Coffee Futures. No entanto, sabe-se que a marca pertence, originalmente, à empresa NYSE Euronext Inc.

do café beneficiado, mantendo-se amplamente dependente do capital humano. A política do plantar, colher, beneficiar e despachar, caracterizada pela produção massificada destituída de qualidade, abastecia o mundo com cafés acompanhados de paus, pedras, torrões, grãos defeituosos e todo tipo de rejeitos. Como não havia regulamentação definida, essa política se sustentou por dezenas de décadas.

A única forma de especificar os cafés brasileiros nos mercados de destino era com relação aos portos de embarque. Os mais conhecidos eram, dessa forma, o Café do Porto do Rio de Janeiro, o Café do Porto de Santos e o Café do Porto da Bahia. O termo ‘Santos”, aliás, acompanha a descrição dos cafés brasileiros no exterior até hoje.

Matiello (1991) encontrou a primeira referência sobre classificação brasileira para o café no ano de 1836. Segundo o autor, em seis de março daquele ano, o então Presidente da Província do Rio de Janeiro, Paulino José Soares de Sousa (1807-1866), regulamentava a Lei Provincial n. 33.

No Art. 7º o texto dizia que o café passaria a ter três qualificações. Essas qualificações eram baseadas tão somente na aparência física dos lotes: café de primeira sorte, categoria constituída pela presença de grãos chumbados, com algumas pintas ou quebras; café de segunda sorte, constituída de grãos muito desiguais ou esbranquiçados; e café escolha, categoria tolerante com a presença de matérias estranhas e grãos defeituosos. Mas essa classificação não chegou a se internacionalizar, servindo apenas para orientar as notas de venda no país.

A primeira regulamentação do setor, propriamente dita, com efeito comercial amplo, surgiu em 1872. Por intermédio da Associação Comercial do Rio de Janeiro fixava-se, a partir de 1º de julho de 1873, a saca de café como sendo uma unidade comercial de 60 kg (BORÉM, 2008; MATIELLO, 1991).

Em 1885, usando do prestígio de serem, os Estados Unidos, o principal mercado do café brasileiro, a New York Coffee Exchange propôs uma tabela de classificação para o café beneficiado oriundo do Brasil. A tabela baseava- se na quantidade de defeitos físicos apresentada por amostra de 450 gramas dos lotes adquiridos. A tabela integrava uma normatização que estabelecia que o produto brasileiro fosse tipificado em uma escala de nove categorias, expressa numericamente do 2 ao 10. Por força de seu uso, a sistemática foi adotada no Porto de Santos em 1907, quando já influenciava o preço internacional da mercadoria (BORÉM, 2008).

Antes disso, porém, em 1904, o tipo 10 havia sido abolido da tabela de classificação. Nesta categoria enquadrava-se o café de pior qualidade, equivalendo-

se à categoria do café escolha, conforme denominado pela Lei Provincial/RJ n. 33. Duas décadas adiante, em 1928, o governo americano ordenou também a retirada do tipo 9 da tabela de classificação. Assim como o tipo 10, o café do tipo 9 foi proibido de entrar no país.

A atitude do governo americano, presume-se, refletia uma elevação no conceito de qualidade do café, provocada pela ascensão no mercado dos cafés da Colômbia, Guatemala e de outros países da América Central. Produzindo em escala bem menor que a brasileira, esses países empregavam métodos de colheita e pós- colheita que contribuíam para um produto final de melhor qualidade. Afora que suas regiões produtoras, em terras de maior altitude, ofereciam climas mais favoráveis ao desenvolvimento do cafeeiro (BORÉM, 2008; MATIELLO, 1991).

O governo brasileiro oficializou o aceite da sistemática de classificação proposta por Nova York, para o café nacional, com a publicação do Decreto n. 18.796, de 11 de junho de 1929 (Anexo B16). Por meio deste dispositivo, o Brasil

regulamentou sua tabela de equivalência de defeitos para a classificação do café beneficiado, semelhante à que vigorava em Nova York e no Porto de Santos. Manteve-se o padrão de amostragem dos lotes em 450 gramas (BRASIL, 1929a).

O Decreto foi publicado no Diário Oficial da União em 15 de junho daquele ano. As tabelas para classificação, duas semanas depois, em 30 de junho. As Tabelas 5.4 e 5.5 reproduzem as tabelas de classificação e a de equivalência de defeitos, adotadas na época.

Tabela 5.4 – Classificação do café beneficiado segundo o número de defeitos capitais em uma

amostra de 450 gramas, de acordo com o Decreto n. 18.796 de 11/06/1929.

Tipo Pontos Defeitos

capitais Tipo Pontos

Defeitos

capitais Tipo Pontos

Defeitos capitais 2 6 4 -10 48 7 +10 244 2 -5 7 4 -15 54 7 +5 272 2 -10 9 5 +10 58 7 300 2 -15 12 5 +5 63 7 -5 333 3 +10 13 5 69 7 -10 366 3 +5 15 5 -5 79 7 -15 399 3 18 5 -10 90 7 -20 432 3 -5 21 5 -15 100 7 -25 465 3 -10 24 6 +10 111 8 +20 498 3 -15 28 6 +5 121 8 +15 531 4 +10 31 6 132 8 +10 564 4 +5 34 6 -5 160 8 +5 597 4 39 6 -10 188 8 630 4 -5 43 6 -15 216

Fonte: Elaborada a partir de Brasil (1929a, 1929b).

16 Os documentos apresentados nos Anexos B, C, D e E são transcrições de sua publicação no Diário

Oficial da União, na respectiva data, realizadas pelo autor.

Tabela 5.5 – Equivalência entre os defeitos secundários e o defeito capital

do café beneficiado, de acordo com o Decreto n. 18.796 de 11/06/1929. Defeitos secundários Defeito capital 3 conchas equivalem a ... 1 5 verdes equivalem a ... 1 5 quebrados equivalem a ... 1 2 ardidos equivalem a ... 1 5 chochos ou mal granados equivalem a ... 1 1 pedra grande equivale a ... 2 a 3 1 pedra regular equivale a ... 1 2 a 3 pedras pequenas equivalem a ... 1 1 pau grande equivale a ... 2 a 3 1 pau regular equivale a ... 1 2 a 3 paus pequenos equivalem a ... 1 1 casca grande equivale a... 1 2 a 3 cascas pequenas equivalem a ... 1 1 coco equivale a ... 1 2 marinheiros equivalem a ... 1 2 avariados equivalem a ... 1 Fonte: Elaborada a partir de Brasil (1929a, 1929b).

A produção brasileira de café nas vésperas da crise financeira de 1929 era espantosa e desenfreada. Na década de 1920, das 22 milhões de sacas anuais que o mundo tinha capacidade de consumir, o país produzia praticamente sozinho todo esse montante. Porém, não bastasse o crash da Bolsa de Nova York que estava por vir, a má fama dos exportadores brasileiros crescia nos mercados compradores.

Em 1927 as exportações eram de 15 milhões de sacas. No ano seguinte a superprodução atingiu 21 milhões de sacas, mas as vendas externas caíram para 13,8 milhões de sacas. Os Estados Unidos e outros quatro países europeus, Alemanha, Itália, França e Holanda, responsáveis por 84% do mercado brasileiro, além de terem diminuído suas importações, as tinham diversificado entre outros países produtores (MEIRELLES, 2006; J. OLIVEIRA, 2004).

Entre os importadores havia um descontentamento com os produtores brasileiros que aumentavam o peso das sacas de café com a incorporação de impurezas. Num esforço que visava coibir a estratégia, o governo brasileiro publicou em 27 de agosto de 1930 o Decreto n. 19.318 (Anexo C). O Decreto proibia, em todo o país, o transporte, comércio e a exportação de cafés dos tipos 9 e 10 – já não previstos nas tabelas do Decreto n. 18.796/1929, mas ainda em circulação no país. Este novo dispositivo demonstrava claramente a preocupação do governo, naquele momento, com relação à qualidade do café em circulação no país (BRASIL, 1930):

Art. 2º Ficam prohibidos em todo o paiz, sob pena de multa, apprehensão e

inutilização, o transporte, o commercio e a exportação de café inferior ao typo 8, bem como a venda, exposição ou entrega ao consumo publico, sob qualquer fórma, de café em grão ou em pó, que não se encontre em estado de perfeita conservação e absoluta pureza.

Art. 3º Serão applicadas multas de um conto de réis réis (1:000$000) a dez

contos de réis (10:000$000), ou da importancia até cincoenta mil réis (50$000) por sacca ou até dous mil réis (2$000) por kilo de café, conforme o caso, a todos quantos, directa ou indirectamente, infringirem qualquer dispositivo deste decreto, além das penas previstas na legislação vigente.

Não cabe, aqui, analisar, nem a profundidade desta preocupação, nem a efetividade da ação. O que chama a atenção neste Decreto é a prescrição de pena aos infratores, delineando uma redução na tolerância com os cafés ruins adulterados, propositalmente ou não.

A cafeicultura vivia épocas de uma inimaginável estagnação comercial, impactando toda a economia do país. O estoque paulista atingiu, em 1929, invendáveis 875 mil toneladas, sendo avaliado em 10% de todo o produto nacional bruto. Em 1931, quando a crise econômica já havia ganhado contornos mundiais, o preço do café desabou a 17 centavos de dólar por quilo. Em maio, o Governo Getúlio Vargas criou o Conselho Nacional do Café (CNC). O órgão federal sobrepunha-se à liderança exercida, até aquele momento, exclusivamente pelos paulistas, por meio do Instituto do Café do Estado de São Paulo – órgão somente extinto pelo governo estadual em 1986, pela Lei Estadual n. 5.457 de 23 de dezembro (DEAN, 2008).

Em julho do mesmo ano, tentando conter o colapso da atividade econômica, o CNC inicia a compra do excesso da produção e ordena a destruição dos estoques nacionais. Mas a crise manteve-se ainda firme. As finanças públicas se desorganizaram pela forte redução na receita vinda do exterior, já que o café respondia por 70% do valor das exportações do país. Estima-se que cerca de dois terços do café consumido no mundo, na década anterior, era colhido no Estado de São Paulo. Em 1932, no entanto, havia mais de 600 fazendas paulistas de café hipotecadas, em concordata ou completamente falidas. Neste mesmo ano, o plantio foi proibido em todo o país (MARTINS, 2008; MEIRELLES, 2006).

O CNC foi extinto em 1933 e substituído pelo Departamento Nacional do Café (DNC), vinculado ao Ministério da Fazenda. A retenção e a destruição do produto prosseguiram. Precisando retomar o ritmo das exportações e preocupado com a credibilidade do produto no exterior, em 3 de julho de 1934 o governo edita o Decreto n. 24.541 (Anexo D), proibindo a remessa ao exterior de cafés contendo impurezas.

Tanto o foco do governo com relação à retomada das exportações, quanto o reconhecimento da adulteração dos lotes pelos cafeicultores brasileiros, ficam explícitos nas considerações iniciais do Decreto. Mas, apesar do discurso

inicial, o Decreto foi específico apenas com relação a quatro modalidades de impurezas: paus, pedras, torrões e cascas. E, mesmo assim, expurgando-as apenas dos tipos 2 a 6. Outras impurezas continuavam a ser toleradas em todos os tipos e, essas quatro, permaneciam sendo aceitas em cafés dos tipos 7 e 8 (BRASIL, 1934).

No Art. 3º o Decreto estabelecia uma nova tabela de equivalência de defeitos físicos admitidos, que vigoraria a partir daquela data. O Art. 4° impedia que outros atributos fossem empregados na definição do tipo, sacramentando a classificação por defeitos.

Em 1937 o Decreto-Lei n. 51 (Anexo E), de 8 de dezembro, permitiu o comércio de lotes de café que possuíssem até 1% de impurezas. Mesmo aqueles que ultrapassassem o limite de classificação do tipo 8. Cafés assim poderiam, inclusive, serem exportados, dependendo apenas de o país comprador não impor restrições. (BRASIL, 1937).

Outra importante medida governamental, ainda naquele ano, foi a abolição da maioria das taxas de exportação e a redução nos preços internos, visando aumentar as remessas ao exterior. Com a taxa de câmbio desvalorizada, as estratégias surtiram o efeito desejado.

No ano seguinte o governo lançou o Decreto-Lei n. 334, de 15 de março de 1938, tornando compulsória a classificação dos produtos agrícolas e pecuários destinados ao exterior. No parágrafo 1º do Art. 1º o documento estabelecia que a classificação caberia ao Ministério da Agricultura, com a colaboração das associações de produtores legalmente constituídas e órgãos afins, e que deveria categorizar “espécie, qualidade, variedade, tipo e outros caracteres convenientes” (BRASIL, 1938: p.5535).

Embora não fosse direcionada exclusivamente ao café, a medida elevava a importância de seu mecanismo classificatório na governança do mercado. Principalmente porque exigia que os produtos fossem certificados pelo Ministério quanto a sua classificação. A retomada do crescimento das exportações, entretanto, seria retardada. Uma nova interferência internacional prejudicaria a estabilização da economia cafeeira: a Segunda Guerra Mundial (J. OLIVEIRA, 2004).

Em julho de 1943 a proibição do plantio de café foi suspensa. Segundo esses autores, até 1944, ano da última queima do produto, o Brasil totalizou a destruição de 78 milhões de sacas de café, o equivalente a três vezes o consumo mundial anual. Martins (2008) considera que essas intervenções governamentais geraram uma mentalidade paternalista ao cafeicultor. No ímpeto de abrir novos mercados no pós-guerra, a tendência foi facilitar a exportação do produto ao

máximo, liberando-o de qualquer pré-requisito que pudesse prejudicar sua competitividade em preço.

Finalmente, em 14 de setembro de 1949, o governo edita o Decreto n. 27.173 (Anexo F), responsável por novas especificações para a classificação do café. O dispositivo, que revogou o Decreto n. 24.541 de 1934, manteve o número de deficiências encontrado no lote como referência no processo de classificação. Mais preocupado em facilitar o escoamento da produção do que em criar algum tipo de padronização para o produto nacional, permitiu que não só o café pudesse ser despachado com impurezas, mas que também fosse mais barato, concorrendo em preço no mercado externo (BRASIL, 1949).

Os padrões de classificação passaram a estar vinculados às denominações adotadas pelos portos de embarque. Mesmo que a principal referência fosse a Bolsa Oficial de Café de Santos, a medida impossibilitou o estabelecimento de uma padronização única, pois o café utilizado como base na classificação não era o mesmo em todas as praças: base 4 em Santos, Paranaguá e Angra do Reis; base 7 no Rio de Janeiro; e base 7/8 em Vitória e nos estados da Bahia e Pernambuco. Além disso, o Decreto permitiu a adoção de novos padrões, deixando ainda mais aberto o sistema classificatório:

Art. 3º As Bolsas Oficiais de Café ou entidades representativas das classes

cafeeiras, legalmente habilitadas, tendo em vista os seus interesses, poderão propor o estabelecimento de outros Padrões, submetendo-os à aprovação do Serviço de Economia Rural.

Apesar disso, o Decreto avançou em estabelecer a avaliação da qualidade do café por meio de duas classificações distintas. Além das características físicas do lote, por seu aspecto e pureza, o setor passou a atentar-se às características sensoriais do produto final. Estas, por meio da bebida do café, pela chamada prova da xícara (CARVALHO, CHAGAS & SOUZA, 1997).

Em 1978, a Comissão Nacional de Normas e Padrões para Alimentos (CNNPA), órgão hoje vinculado à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), finalmente integrou o café a suas especificações dos padrões de identidade e qualidade para os alimentos e bebidas. A integralização do café, em suas formas grão cru, solúvel e torrado, ocorreu por meio da Resolução n. 12 daquele ano. Para o café beneficiado (grão cru), visava-se obter um produto caracterizado quanto ao tipo, bebida, peneira e cor.

O conteúdo desconcertante do Decreto 27.173/1949 refletiu-se em todos os instrumentos legais posteriores até chegar à Instrução Normativa MAPA

n. 8 de 11/06/2003, que define a legislação classificatória vigente. Na visão de autores como Borém (2008), Carvalho, Chagas e Souza (1997), Ferrão et al. (2007a), Martins (2008) e Zylbersztajn, Farina e Santos (1993), ao longo deste período em que o café brasileiro tem sido qualificado por defeitos, consolidou-se no mercado a imagem de um produto de qualidade questionável. Uma mercadoria que apenas serve de base para misturas de baixa qualidade.

Martins (2008, p.300) utiliza o termo “produto de carregação”, para designar a forma como o produto brasileiro se coloca ante os concorrentes, chegando ao mercado classificado sob esses critérios. Nesta mesma página, a autora destaca:

Essa imagem internacional desfavorável foi acentuada, sobretudo, na concorrência com o café da Colômbia, geneticamente superior e objeto de tratos que o qualificam progressivamente no mercado.

Mais uma vez o estigma de “produto sem trato” associado à imagem do café brasileiro – e atualmente infundado – até há pouco foi mal trabalhado pelo

marketing, contribuindo para a decrescente colocação do produto.

O Brasil, em verdade, produz cafés com características sensoriais diversificadas. A classificação por tipo, dita classificação segundo a qualidade, na COB, consiste em categorizar o café observando apenas suas características físicas. O problema é que estas ainda têm sido mais enfatizadas que as anteriores, inclusive no processo de fixação de preços no mercado. E, como visto, trata-se de uma prática que retroage aos primórdios dos métodos classificatórios. Como será demonstrado adiante, na Seção 5.3.4, alguns países como Colômbia, Guatemala, México e Honduras, por exemplo, em prol da evidência de sua diversidade produtiva, utilizam a origem do produto como critério de classificação.