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CAPÍTULO 3 – ANÁLISE QUALITATIVA

3.7 A existência de um contraponto ao discurso hegemônico

No Habeas corpus n. 68.611, julgado em 25 de junho de 1991, o relator ministro Sepúlveda Pertence estabelece a real natureza da prisão preventiva, relacionando-a intrinsicamente à finalidade de servir ao processo:

A gravidade do crime imputado, um dos malsinados “crimes hediondos” (Lei 8.072/90), não basta à justificativa da prisão preventiva, que tem natureza cautelar, no interesse dos interesses do desenvolvimento e do resultado do processo, e só se legitima quando a tanto se mostrar necessária: não serve à prisão preventiva, nem a Constituição permitiria que para isso fosse utilizado, a punir sem processo, em atenção à gravidade do crime imputado, do qual, entretanto, “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (CF, art. 5º, LVII).

Em passo seguinte, voltou-se a dizer, de modo genérico, da ausência de prova de ocupação ilícita, ficando-se também em campo da generalidade (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC n. 68.611/DF. Ministro Octavio Gallotti. 11 de junho de 1991. Disponível em: <http://stf.jus.br>).

Interessante debate sobre a necessidade do Poder Judiciário dar uma satisfação aos anseios da sociedade com a prisão preventiva de um acusado de homicídio se travou no julgamento do Habeas corpus n. 83.943/MG, julgado em 27 de abril de 2004, sendo deferida a ordem:

O SENHOR MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO: (...) Faço uma distinção entre atender ao clamor público, se dobrar ao clamor público, e também não dar nenhuma satisfação ao público. Há uma diferença entre uma coisa e outra. O juiz tem que julgar atento.

95 O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (RELATOR) – Prendamos, em satisfação ao público, para depois julgar, não é?

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO – A satisfação à expectativa do público dá- se com a aplicação da pena.

O SENHOR MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO: Perfeito. Mas a decisão há de estar permeada de fatos ocorridos na sociedade. A expectativa social em torno da decisão judicial é um elemento a ser considerado. O juiz não pode decidir de costas para a sociedade.

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO – Está antecipando uma pena eventual. O SENHOR MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO: (...) Não é ceder a pressão social e se dobrar a uma eventual comoção coletiva; não é bem isso. Mas, também, não pode decidir de costas inteiramente para a sociedade sem dar a menor satisfação ao público. Fico entre o meio termo.

Julgar com intenção de dar “satisfação ao público” ou “não decidir de costas inteiramente para a sociedade” ademais de representar um risco evidente ao regime democrático importa, a nosso ver, em negativa de vigência ao inciso IX do art. 93 da Constituição da República.

A tarefa de interpretar a vontade popular ou o seu desejo coloca o juiz numa situação de anomalia para o sistema, pois é tarefa impossível. O que pode gerar frustrações em quem decide – porque não dispõe o processo de elementos concretos que se constituam como termômetro da vontade popular -, mas, principalmente, dor e sofrimento ao réu, no prolongamento do período de prisão com base em idiossincrasias ou conjecturas.

Robert Gellately ao analisar o sistema judicial nazista, baseado na interpretação da “vontade do povo” por parte dos agentes do Estado, menciona discurso de Hitler que nos oferece uma boa síntese da relação entre o sistema de justiça da época e a visão política do Fuher:

Ele disse, no quarto aniversário de sua nomeação, deixando de lado qualquer menção à emergência que supostamente era justificada por uma ameaça comunista, que a “a missão do sistema judicial é contribuir para a preservação e a segurança do povo diante de certos elementos que, como antissociais, lutam para se esquivar de deveres comuns ou que pecam contra esses interesses comuns. Portanto, o povo tem precedência sobre pessoas e propriedade também na lei alemã” 131.

96 A maior satisfação que pode oferecer o Poder Judiciário à sociedade não se dá, em um regime de cariz democrático, com o aprisionamento cautelar de determinados indivíduos, mas sim na entrega da prestação jurisdicional em prazo razoável e com o respeito aos direitos e garantias individuais.

O risco de se ultrapassar os limites da legalidade ao tentar realizar a impossível tarefa de intérprete da vontade popular não nos trouxe boas experiências, ao contrário, contribui para a tragédia causada pelo regime nacional-socialista alemão.

Em outro julgamento, se levou em consideração a questão temporal entre a ocorrência do fato e o julgamento pela Suprema Corte para negar ocorrência de perturbação à ordem pública. No Habeas corpus n. 90.064-0, julgado em 8 de maio de 2007:

Ademais, ainda que se admitissem, em tese, os apelos à ordem pública, que estaria comprometida pela repercussão social do fato -, ou mesmo pelo denominado “temor social”, essa motivação, no caso teria se esvaído por completo pelo decurso de quase 6 anos da prisão dos Pacientes (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC n. 90.064/SP. Ministro Sepúlveda Pertence. 08 de maio de 2007. Disponível em: <http://stf.jus.br>).

Ao julgar processo em que figuravam como pacientes trabalhadores rurais sem-terra que ocupavam fazenda no interior do Estado do Rio Grande do Sul, não se aceitou a tese de que, por pertencerem a movimento social que reivindica política pública de reforma agrária, suas ações colocariam em risco a ordem pública estadual. É que consta no Habeas corpus n. 91.616/RS:

Acresce que a situação de intranquilidade, aventada pelo juiz para justificar a segregação preventiva dos pacientes, da mesma forma não me parece timbrada na decisão impugnada. Bem vistas as coisas, o próprio decreto de prisão sinaliza para o fato de as ações imputadas aos pacientes estarem adstritas aos limites da terra pleiteada. Noutro falar, não me parece que as condutas que embasam a prisão tenham alcance para além do objeto pretendido pelo movimento social. Com isso não quero dizer que a luta social autoriza a prática de delitos, mas, tão-somente, ponderar que a intranquilidade do meio social, se existente, não ultrapassa a fazenda pleiteada pelo MST (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC n. 91.616/RS. Ministro Carlos Britto. 30 de outubro de 2007. Disponível em: <http://stf.jus.br>).

Embora a aplicação do conceito de ordem pública ter sido, como dissemos no início, o principal despertar do pesquisador para o assunto, não se encontrou outra decisão da Suprema

97 Corte neste tema que fosse relacionada à ação política de reivindicação de política pública de reforma agrária por movimento social.

A grande maioria dos casos de prisão contra integrantes de movimentos sociais agrários foram resolvidos no Superior Tribunal de Justiça, tendo se formado importante jurisprudência favorável aos trabalhadores o que, todavia, infelizmente, não impediu e não impede o uso do aprisionamento cautelar contra estes nos tribunais e nos juízos de primeiro grau.

Embora se perceba um forte contraponto argumentativo à própria aceitação da prisão preventiva para garantia da ordem pública nas decisões analisadas tal postura é minoritária. A efetividade do discurso da garantia da ordem pública para o encarceramento provisório será mais bem demonstrada quando da apresentação da pesquisa quantitativa.

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