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CAPÍTULO 3 – ANÁLISE QUALITATIVA

3.1 A criminologia crítica, o paradigma da reação social e os second codes da decisão judicial

3.1.2 As decisões judiciais

A análise de um corpo de decisões judiciais sobre um tema é algo não somente gratificante como revelador. Percorrer os caminhos de 72 anos de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal ensina-nos não somente quanto à técnica jurídica processual penal ou sobre dogmática penal, como também, revela-nos traços da história política do nosso País.

Embora os acórdãos da mais alta corte do País não contenham a quantidade de informações que geralmente se encontram fartos em inquéritos e processos criminais, a figura do criminoso, assim etiquetado pelo sistema de justiça criminal, é revelada muitas vezes pela escrita dos próprios ministros ou por meio das menções a partes dos processos como denúncia, relatórios policiais, pareceres do ministério público e trechos da petição da defesa.

119 FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo: Brasiliense, 1984. p.

33: “As prisões contravencionais, bem como as efetuadas para ‘averiguações’, revelam uma estrita preocupação com a ordem pública, aparentemente ameaçada por infratores das normas do trabalho, do bem viver, ou simplesmente pela indefinida figura dos ‘suspeitos’. No período 1982-1916, com lacuna nos anos 1899, 1901 e 1902, dentre 178.120 pessoas presas na cidade, 149245 (83,8%) foram detidas pela prática de contravenções ou para averiguações e 28.875 (16,2%) sob acusação de crimes.”

65 A exigência constitucional de fundamentar as decisões judiciais deveria bastar para garantir ao acusado que a entrega da prestação jurisdicional estatal se desse de tal maneira que as razões de convencimento do magistrado, ao optar pela sua liberdade ou pela legitimidade da ação punitiva estatal, fossem dispostas com clareza e profundidade teórica, tudo de acordo com os fatos analisados.

A conceituação da ordem pública nos julgados do Supremo Tribunal Federal se apresenta, na grande maioria das vezes, como código indecifrável de ser captado por pesquisa realizada sem o anteparo da estatística, dada a grande quantidade de argumentos utilizados pelos ministros para justificar suas decisões.

Jorge de Figueredo Dias e Manuel da Costa Andrade, ao tratar do trabalho de reconstrução realizado pelos Tribunais afirmam que:

Resumidamente, a reconstituição dos factos em (ou pelo) tribunal é uma actividade verdadeiramente criadora e sujeita à permanente intervenção de factores extrajurídicos, mais ou menos inconscientes, mas sempre decisivos. São fatores como “teorias” (OPP), estereótipos, crenças, convicções, símbolos, atitudes, etc., que condicionam a “percepção” do juiz e as respectivas “hierarquias de credibilidade”. O que equivale a dizer que são eles que decidem a qual das construções da realidade concorrentes (veiculadas pela acusação, defesa, vítima, testemunhas, imprensa) o tribunal vai aderir, ou o tipo de construção da realidade que ele próprio elaborará120.

Para os autores, é ao tribunal que cabe o simultâneo encargo de criar os fatos e imprimir conteúdo definitivo às normas legais. “O que equivale a afirmar que é ele que cabe, em último termo, o recrutamento das pessoas que, em cada sociedade, vão desempenhar o papel de delinquentes”121.

Já dissemos que o fato do conceito da ordem pública ser vago e impreciso possibilita uma vasta construção argumentativa para justificação da prisão. No entanto, nos chamou a atenção a evidente ausência de parâmetro mínimo de lógica argumentativa para se determinar porque uma conduta enseja abalo à ordem pública e outra não. Da mesma forma, a razão de alguns tipos penais sensibilizarem os julgadores de forma mais acentuada para coonestar decisões que resultaram em supressão da liberdade do indivíduo no juízo de primeiro grau.

120 DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia..., cit., p. 508. 121 DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia..., cit., p. 508.

66 Outro aspecto inquietante é relativo ao tempo que se leva para o julgamento de uma ação no STF, tendo como ponto de partida a data do fato ou da prisão do suposto perturbador da ordem estabelecida. No início da pesquisa, essa distância temporal nos chamou a atenção, pois resta evidente que a Suprema Corte não exerce o controle imediato da ação punitiva estatal, servindo de retaguarda e baliza dos direitos fundamentais previstos na Constituição da República. Se assim é, haverá sempre um considerável déficit entre o acontecimento do fato que causou o abalo à ordem e o julgamento pelo STF. Torna –se ainda mais difícil a tarefa de quem julga em última instância a prisão cautelar para garantia da ordem pública, uma vez que quase sempre se estará distante alguns meses ou até mesmo anos do fato gerador da ação estatal punitiva. Ou seja, o julgamento será sempre uma restauração do momento originário da intervenção estatal e, o que se vê na análise das decisões é que primeiro se firma uma convicção e depois se vai à cata dos argumentos.

Daí Nilo Brun122 afirmar que:

Geralmente, chegado o momento de prolatar a sentença penal, o juiz já decidiu se condenará ou absolverá o réu. Chegou a essa decisão (ou tendência a decidir) por vários motivos, nem sempre lógicos ou derivados da lei. Muitas vezes, a tendência a condenar está fortemente influenciada pela extensão da folha de antecedentes do réu ou em virtude do fato de estar ele perfeitamente integrado na comunidade ou, ainda, pelo fato de que o delito cometido nenhuma repugnância causa ao juiz, o que o faz visualizar tal figura penal como uma excrecência legislativa ou um anacronismo jurídico.

O trabalho de restaurar fatos passados acaba por se tornar, neste caso específico da ordem pública, um risco iminente para aqueles que admitem a possibilidade de aferir sua existência, presente na seguinte inquietação: o abalo à ordem pública não pode ser perene, do contrário viveríamos em constante desordem. Se a quebra da normalidade da ordem é vista como anomalia do sistema, acidente de percurso, na maioria dos casos julgados pode ser que o fato que originalmente causou o transtorno à ordem não mais subsista, o que jogaria por terra toda suposta racionalidade construída do discurso jurídico-penal. A atualização da situação fática processual do recurso julgado pela Suprema Corte seria, portanto, não somente necessária como imprescindível.

67 O estudo das decisões judiciais torna possível captar componentes históricos que atuaram para sua formatação. Com isso, se faz necessário que a análise qualitativa das decisões não se dê de forma a desconsiderar o contexto histórico em que se efetivou. Uma decisão de 1938 (STF, HC 26.739) poderia se valer da seguinte argumentação para se negar um pedido de liberdade: “nego a ordem, pela razão de que estamos em estado de emergência, que foi decretado, precisamente, para manter a ordem pública. Ora, o paciente é considerado perigoso à mesma”.

Essa decisão pode não fazer muito sentido a um estudante de direito dos nossos dias caso não se realize a contextualização devida no sentido do que representou para história e, para o direito principalmente, o período da Era Vargas.

Para facilitar a compreensão da análise qualitativa das decisões judiciais, agruparemos em seis grandes eixos temáticos, de acordo com alguns marcos legislativos que consideramos significativos para o desenvolvimento do discurso jurídico-penal relativo ao aprisionamento cautelar para garantia da ordem pública.