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CAPÍTULO 2 – ANÁLISE DO DISCURSO: IMPORTANTE INSTRUMENTAL PARA O ESTUDO DO DIREITO

2.1 A escolha da análise do discurso

Toda língua são rastros de velhos mistérios. Guimarães Rosa. Ave, palavra.

Infelizmente, carece ainda a academia, de estudos que trabalhem com a perspectiva da interdisciplinaridade no direito. Da mesma forma, pesquisas que se valham da análise do discurso para aprofundar como decidem e justificam suas decisões os juízes, poderiam fornecer uma chave importante para a compreensão do problema da prisão preventiva para garantia da ordem pública.

Se, como vimos, a ordem pública para prisão preventiva passa a compor o ordenamento processual penal brasileiro no contexto político e ideológico do Estado Novo de 1935 e, até hoje perdura como possibilidade concreta, revestida de legitimidade positivada, a quem e para que se justifica utilidade ainda hoje, se já ultrapassamos o tempo em que os estrangeiros ou os comunistas se constituíam em ameaça à ordem? Outra questão: que tipo de práticas discursivas existem hoje para justificar o encarceramento provisório com base neste conceito?

Assim, partindo da constatação de que pode existir um corpus74 discursivo sobre o tema e, que tal corpus, poderá nos revelar se o conceito de ordem pública serve de instrumento ao processo penal − como nos indicam os processualistas clássicos − ou se revela como prática punitiva de contenção de indivíduos, livremente utilizada de acordo com a ideologia.

Vimos que a base estrutural política e jurídica do Estado Novo para acabar com as oligarquias regionais se valeu da concepção de centralidade do poder, autoridade exercida com rigidez na busca da modernização do Estado. Essa concepção, antes de tudo ideológica, marcou o nascimento do estado moderno brasileiro e irradiou seus efeitos para os códigos normativos,

74 “Nas ciências humanas e sociais mais particularmente, corpus designa o conjunto de dados que servem de base

para a descrição e análise de um fenômeno. Nesse sentido, a questão da constituição do corpus é determinante para a pesquisa, pois trata-se de, a partir de um conjunto fechado e parcial, analisar um fenômeno mais vasto que essa amostra. Tomando a definição de Sinclair (1996:4, citada por Habert et alii, 1977:11), ‘um corpus é uma coleção de dados linguísticos explícitos para servir de amostra da linguagem’. CHARAUDEAU, Patrick. MAINGUENEAU; Dominique. Dicionário de análise do discurso, cit., p. 137.

45 dentre eles o de processo penal que passou a permitir a prisão preventiva para garantia da ordem pública.

Já na República Velha, a concepção de ordem, ademais de vir a calhar para repressão ao crescente do movimento grevista por condições de trabalho mais dignas, serviu para a expulsão de centenas de imigrantes, acusados de propagarem ideias subversivas, e para o exercício de controle social por meio dos órgãos de repressão. A pobreza e os criminosos habituais passaram a ser substrato da nova cientificidade dos aparelhos de Estado incumbidos de zelar pela ordem do regime político que florescia.

Com isso, ao contrário das outras hipóteses de se determinar a prisão cautelar – direcionadas ao bom andamento do processo e à aplicação da lei penal – a garantia da ordem pública, prevista no art. 312 do CPP, permite um leque argumentativo infindável, razão pela qual permite revelar traços ou mesmo rastros de elementos ideológicos, emitidos pelo sujeito (juiz) por meio do discurso. São essas visões de mundo que nos interessam.

E é justamente no discurso judicial que se pode descortinar essa questão. Partindo da premissa de que “o discurso é o lugar em que se pode observar essa relação entre língua e ideologia, compreendendo-se como a língua produz sentidos por/para os sujeitos”75.

Optamos, dessa forma, por um percorrer nas decisões do Supremo Tribunal Federal com o instrumento da Análise do Discurso, da escola francesa, por trabalhar a relação sujeito, ideologia e situação social e histórica. A AD, ao introduzir a noção de história vai trazer para a reflexão as questões de poder e das relações sociais76.

Orlandi77 ao tratar da ideologia pelo viés da linguagem, entendendo que a materialidade da ideologia é o discurso e a materialidade do discurso é a língua, se questiona o que isso modifica em relação às ciências humanas e sociais e arremata: “Tudo. A ideologia vista assim não é um ‘conteúdo’, é uma prática, é um funcionamento discursivo. Não atravesso a linguagem para encontrar a ideologia, na linguagem a ideologia é”78.

75 CHARAUDEAU, Patrick. MAINGUENEAU; Dominique. Dicionário de análise do discurso, cit., p. 17. 76 ORLANDI, Eni P. O que é linguística? São Paulo: Brasiliense, 2009. p. 60.

77 No Brasil, os trabalhos de Pêcheux e da AD da escola francesa têm como principal referência Eni Orlandi,

professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenadora do Laboratório de Estudos Urbanos − Laberurb da mesma instituição de ensino.

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ORLANDI, Eni P. Análise do discurso: conversa com Eni Orlandi. Entrevistadora: Profa. Dra. Raquel Goulart Barreto (UERJ). Entrevista concedida à Revista TEIAS, Rio de Janeiro, ano 07, n. 13-14, p. 01-07, jan./dez. 2006. Disponível em: <http://espacolinguisticouems.wordpress.com/2009/08/25/entrevista-2-profa-dra-eni-p-orlandi/>. Acesso em: 12 set. 2012.

46 Para Marilena Chauí,

A ideologia não é um processo subjetivo consciente, mas um fenômeno objetivo e subjetivo involuntário produzido pelas condições objetivas da existência social dos indivíduos (...). A ideologia burguesa, através de seus intelectuais, irá produzir ideias que confirmem essa alienação, fazendo, por exemplo, com que os homens creiam que são desiguais por natureza e por talentos, ou que são desiguais por desejo próprio, isto é, os que honestamente trabalham enriquecem e os preguiçosos, empobrecem (...) a ideologia é, pois, um instrumento de dominação de classes (...) o papel específico da ideologia como instrumento da luta de classes é impedir que a dominação e a exploração sejam percebidas em sua realidade concreta79.

A produção de práticas discursivas ideologizadas pelo sujeito juiz com o leque argumentativo possibilitado pelo conceito de ordem pública para prisão preventiva, pode se constituir por meio dos chamados termos-pivôs. É o que buscaremos nos próximos capítulos com o percorrer histórico pelas decisões judiciais.