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CAPÍTULO 3 – ANÁLISE QUALITATIVA

3.5 Os crimes hediondos, o traficante, as organizações criminosas e os casos célebres – de 1990 até os dias atuais

3.5.1 Os crimes hediondos

A Exposição de Motivos que acompanhou a proposta legislativa enviada ao Congresso Nacional – por meio da Mensagem 546, de 21 de setembro, de 1989 – foi elaborada por Damásio E. de Jesus, integrante, à época, do Conselho Nacional de Política Penitenciária, e foi assinada pelo então ministro da Justiça Saulo Ramos.

Em resumo, a proposta se constituía pela enumeração de determinados tipos penais que receberam, sem alteração alguma na estrutura, a pecha de hediondos, e se definiu o conceito de crime hediondo atrelado à prática de violência à pessoa, provocando pela gravidade do fato ou forma de execução, forte repulsa social. As consequências se materializaram na vedação de benefícios como anistia, graça e se impedia a concessão de fiança com objetivo de se manter no cárcere o maior tempo possível os acusados destes crimes.

Sobre o contexto de elaboração da nova lei, Aberto Silva Franco aponta que:

Sob impacto dos meios de comunicação de massa, mobilizados em face de extorsões mediante sequestro, que tinham vitimizado figuras importantes da elite econômica e social do país (caso Martinez, caso Salles, caso Diniz, caso Medina etc.) um medo irracional, acompanhado de uma desconfiança para com os órgãos oficiais de controle social, tomou conta da população, atuando como mecanismo de pressão ao qual o legislador não sou resistir. Na linha de pensamento da Law and Order, surgiu a Lei 8.072 que é, sem dúvida, um exemplo de uma posição político-criminal que expressa, ao mesmo tempo, radicalismo e passionalidade125.

83 A Exposição de Motivos da proposta nos dá uma dimensão do pensamento que a norteou:

A criminalidade, principalmente a violenta, tinha seu momento histórico de intenso crescimento, aproveitando-se de uma legislação penal excessivamente liberal, criando a certeza da impunidade. (...)

A criminalidade violenta, porém não diminuiu. Ao contrário, os índices atuais são alarmantes. Uma onda de roubos, estupros, homicídios, extorsões mediante sequestro etc. vêm intranquilizando nossa população e criando um clima de pânico geral.

Não inserimos o homicídio qualificado na primeira classe levando em conta que nem sempre causa repulsa. Haja vista o exemplo clássico da doutrina do pai que mata, em emboscada, o estuprador da filha.

No parecer da Comissão de Constituição da Câmara:

O constituinte de 1988, sentindo o clima de intranquilidade social devido ao desagradável aumento de criminalidade, sobretudo, daquela de conotação mais hediondas, houve por bem inserir no texto da Carta Política...

Na Exposição de Motivos 397, de 25 de agosto de 1993, o então ministro da Justiça Maurício Correia propõe alteração da Lei dos Crimes Hediondos para ampliar seu alcance:

O aumento, nos últimos anos, da violência e da incidência de delitos tidos como especialmente torpes, sobretudo nos grandes centros urbanos, levou o legislador ordinário, norteado em dispositivo da própria Lei Maior, a editar a Lei nº 8.072/90, dispondo sobre os chamados crimes hediondos.

Como se sabe, a referida lei dispensa tratamento especialmente rigoroso na execução da pena para os autores daqueles delitos, além de privá-los do direito à anistia, graça ou indulto, vedando-lhes, igualmente, a possibilidade de obter liberdade provisória com ou sem fiança.

Todavia, descurou-se, data venia, o mesmo legislador de incluir no elenco de delitos hediondos determinados crimes contra a vida humana, não só especialmente repulsivos, mas sucetíveis de trazer singular abalo à paz pública e a ordem social. Trata-se da sinistra atividade dos esquadrões da morte ou grupos de extermínio que atuam ora a soldo de mandantes, interessados na eliminação de suas vítimas pelos mais variados motivos, ora agindo por conta própria, usurpando o magistério punitivo do Estado em nome de cruel e primitiva vingança privada.

84 As chacinas perpretadas por estes deliquentes têm, como se sabe, escolhido como alvo predileto crianças e adolescentes em todo o país, geralmente sob o intolerável pretexto de eliminação de autores de ilícitos patrimoniais.

Escusado ressaltar que tais episódios de selvageria e hedionda violência, sem uma enérgica reação dos poderes públicos constituídos, não só vulnera o sentimento cristão do povo brasileiro mas contribui sobremodo para macular a imagem do nosso País perante o conserto das nações civilizadas que repugna toda sorte de impunidade.

Novamente, retoma-se a ideia de paz pública e ordem social no cenário do discurso jurídico-penal, sendo possível encontrar fragmentos de uma ideologia autoritária que se acreditava superada pela nova ordem democrática, estabelecida pela Constituição da República de 1988:

Todavia, descurou-se, data venia, o mesmo legislador de incluir no elenco de delitos hediondos determinados crimes contra a vida humana, não só especialmente repulsivos, mas suscetíveis de trazer singular abalo à paz pública e a ordem social.

Para Alberto Silva Franco:

As consequências de uma guerra, sem quartel, contra determinados delitos e certas categorias de delinquentes, serviram para estiolar direitos e garantias constitucionais e para deteriorar o próprio direito penal liberal, dando-se azo a incrível convivência, em pleno Estado Democrático de Direito, de um direito penal autoritário. Os sinais antiliberais, detectados na Lei 8.072/90, não constituem novidade: são reiterações de velhos agravos tendentes a destruir o arcabouço de um direito penal construído tão sofridamente nos últimos séculos e a suprimir garantias processuais já incorporadas na vida do cidadão126.

É neste contexto de endurecimento da legislação penal que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal passará a ser mais abundante no tema da ordem pública e prisão cautelar. No próximo capítulo, quando se apresentará a consolidação dos dados estatísticos, ficará mais claro esse aumento, mas desde já se faz importante notar que a partir dos anos 1990 se constatou um aumento vertiginoso de acórdãos sobre o tema.

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