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CAPÍTULO 3 – ANÁLISE QUALITATIVA

3.3 Do criminoso político ao criminoso comum – 1945-

A Constituição de 1946 anuncia no preâmbulo um regime de cariz democrático e sua elaboração se deu dentro de um contexto político menos conturbado contando, inclusive, com a participação de parlamentares do Partido Comunista. Não sem razão, portanto, que após o fim do

73 Estado Novo em 1945, os acórdãos analisados indicam uma diminuição nas perseguições aos comunistas.

Os primeiros acórdãos analisados neste período, versam sobre a validade do Decreto-Lei n. 431, de 18 de maio de 1938, que definia os crimes contra a segurança do Estado e contra a ordem social.

Na Apelação n. 1.439/SP, em que se discutia condenação de acusados de marcarem um comício de caráter subversivo na cidade de Santos, em 30 de setembro de 1949, sem prévia comunicação à polícia. Proibida sua realização pelas autoridades locais, policiais e participantes entraram em confronto, ocorrendo a morte de um investigador e um “comunista” (assim se refere a decisão judicial). A decisão veio assim ementada:

A lei 431 não foi revogada pela Constituição. Não é crime ser comunista, mas se este, através de partido ou associação exerce atividade contraria à segurança do Estado ou à ordem pública e social, estará sujeito ás penas do art. 3 nº 8 da lei 431 (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ap. 1.439/SP. Ministro Luiz Galloti. 14 de novembro de 1950. Disponível em: <http://stf.jus.br>).

Toda estrutura repressiva fortalecida no Estado Novo não ruiria, por óbvio, da noite para o dia com o fim do regime político autoritário. No Capítulo 1, quando abordamos a influência da legislação nacional-socialista processual penal e sua irradiação para os códigos italianos de Mussolini, registramos que, após a derrota da Alemanha na II Guerra Mundial a previsão legal para se prender um cidadão preventivamente com base no abalo à ordem pública deixou de existir com as reformas na legislação impulsionadas pelo pós-guerra.

Melhor sorte não se teve por aqui, pois grande parte do aparato legislativo repressivo penal brasileiro continuou a existir, mesmo com a derrocada de regimes autoritários que os instituíram.

No Habeas corpus n. 31.688-SP, julgado em 22 de agosto de 1951, relator ministro Nelson Hungria, fica evidente que a polícia continuou tendo liberdade de atuação, mesmo após o fim do Estado Novo:

Fatos perturbadores ou ameaçadores da perturbação da ordem pública. Competência da autoridade policial. Independentemente de inquérito policial, pode a autoridade, na função de polícia preventiva, mandar vir á sua presença, para esclarecimento de fatos perturbadores ou ameaçadores de perturbação da ordem pública, as pessoas neles envolvidas. A intimação para tal fim independe de mandado formal (BRASIL. Supremo

74 Tribunal Federal. HC n. 31.688/SP. Ministro Nelson Hungria. 22 de agosto de 1951. Disponível em: <http://stf.jus.br>).

No entanto, já se nota alguma tentativa de controle da atividade policial nos anos subsequentes. É o que se vê no Habeas corpus n. 33.610/SE, de 22 de junho de 1955, cuja paciente era uma dona de casa do interior do Estado de Sergipe, presa pelos seguintes razões:

Adianta que a prisão foi ditada pelo acumulo de queixas contra a beneficianda, “mulher solteira e sem honra no sentido de virgindade. (...) Acrescenta que o seu procedimento é muito sujo na cidade e na policia, por se tratar de pessoa linguaruda e fuxiqueira... (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC n. 33.610/SE. Ministro Sampaio Costa. 22 de junho de 1955. Disponível em: <http://stf.jus.br>).

A decisão do Supremo, neste julgamento, dá uma resposta ao arbítrio policial:

Não é lícito á autoridade policial atribuir-se o direito de, ao seu alvedrio, mandar deter e prender as pessoas, fora dos casos previstos na lei. Na missão de missão de velar pela ordem e tranquilidade públicas não se inclui a faculdade de enclausurar os cidadãos, salvo em flagrante delito ou mediante ordem escrita de quem competente. O prestígio da autoridade deflue do respeito, por parte dela, dos mandamentos constitucionais e legais, da serenidade e legitimidade de seus atos.

O regime democrático, instaurado com a Constituição de 1946, se mantém até o ano 1964, quando os militares se instalam no poder. O início do período ditatorial, do ponto de vista legislativo, é marcado pela edição de 17 Atos Institucionais. Os primeiros cassaram mandatos, suspenderam direitos conquistados e extinguiram partidos políticos.

Em seu preâmbulo, o Ato Institucional n. 5, de 13 de dezembro de 1968, já anuncia a busca de inimigos e, novamente, em nome da ordem:

CONSIDERANDO que, assim, se torna imperiosa a adoção de medidas que impeçam sejam frustrados os ideais superiores da Revolução, preservando a ordem, a segurança, a tranquilidade, o desenvolvimento econômico e cultural e a harmonia política e social do País comprometidos por processos subversivos e de guerra revolucionária;

CONSIDERANDO que todos esses fatos perturbadores da ordem são contrários aos ideais e à consolidação do Movimento de março de 1964, obrigando os que por ele se responsabilizaram e juraram defendê-lo, a adotarem as providências necessárias, que evitem sua destruição,

75 O AI n. 5 deu poderes ao Presidente da República para fechar o Congresso Nacional e, em seu art. 10, suspendeu a garantia de habeas corpus nos casos de crimes políticos contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular.

Em 16 de janeiro de 1969, os ministros do Supremo Tribunal Federal Evandro Lins e Silva, Hermes Lima e Victor Nunes Leal foram aposentados pelo regime militar com amparo no AI de n. 5.

Não são muitas as decisões do STF encontradas durante o período de 1945-1974, que versem sobre o tema da ordem pública e prisão preventiva. No entanto, é ao fim deste período que encontramos o primeiro acórdão relativo à prática de crime comum.

O repertório de 33 anos de jurisprudência do STF sobre ordem pública e prisão preventiva, contados da entrada em vigor do novo CPP, é constituído exclusivamente por crimes políticos. Assim considerados aqueles contra o Estado, Lei de Segurança Nacional ou em razão de defender ideias políticas contrárias ao regime.

Demonstrou-se que a formação do conceito da ordem pública e sua relação com o cárcere se deu antes mesmo da previsão legislativa de 1941, servindo como substrato de construção de uma tentativa de racionalidade no discurso jurídico-penal para justificar a perseguição aos inimigos do poder instituído, mesmo que para tanto bastasse somente a diferença no campo das ideias.

Da entrada em vigência do atual CPP até o ano de 1974 o instituto se manteve fiel aos propósitos de sua criação, se restringindo ao papel de importante instrumento político de estigmatização, isolamento e, porque não, aniquilação daqueles que ousassem discordar daqueles que detinham o poder.

O Habeas corpus n. 52.697/RJ, julgado em 13 de setembro de 1974, foi o primeiro que fez menção à ordem pública para justificar o encarceramento provisório por crime comum. Os pacientes foram acusados de integrar quadrilha especializada em furtos de veículos (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC n. 52.697/RJ. Ministro Leitão de Abreu. 13 de setembro de 1974. Disponível em: <http://stf.jus.br>).

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3.4 A tentativa de construção de uma nova racionalidade do discurso jurídico-penal para