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2. A MUNDIALIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO

2.3. O patrimônio na contemporaneidade

2.3.1. A expansão patrimonial

Para Roberto Segre (2011) “a herança material criada pelo homem ao longo da história da Humanidade é a principal testemunha das transformações culturais de cada sociedade”. Esse desejo consciente de manter na memória coletiva através da conservação do patrimônio arquitetônico e de objetos é uma constante do ser humano.

Deste modo cabe a reflexão sobre o movimento de alargamento e universalização do patrimônio, ao qual propiciou um verdadeiro “boom da memória” (ANICO, 2005, p. 74) no último quarto de século.

De que maneira, através de que sentidos e com que finalidades se testemunha repentinamente um tipo de nostalgia por um antigo regime de historicidade desde muito fora de uso (se o teve realmente)? Esse questionamento é uma das propostas de reflexão de François Hartog (2006), e tem importância por que exigir a reflexão sobre palavras mestras: o patrimônio e a memória.

Marta Anico (2005) faz uso da expressão “pós-modernização da cultura”, como forma de situar um conjunto de processos heterogêneos que através dos quais se promoveu a rediscussão conceitual ilustra a caracterização do patrimônio no contexto atual.

A palavra patrimônio está historicamente associada ou à noção do sagrado, ou à noção de herança, de memória do indivíduo, de bens de família. O que nos remete a ideia de um patrimônio comum a um grupo social, definidor de sua identidade e merecedor de proteção. Como assinala José Reginaldo Gonçalves (2005), esses bens viriam a objetivar, conferir realidade e também legitimar a existência de “comunidades imaginadas”. Como aponta Fonseca:

A noção de patrimônio é, portanto, datada, produzida, assim como a idéia de nação, no final do século XVIII, durante a Revolução Francesa, e foi precedida, na civilização ocidental, pela autonomização das noções de arte e de história. O histórico e o artístico assumem, nesse caso, uma dimensão instrumental, e passam a ser utilizados na construção de uma representação de nação (FONSECA, 2005, p. 37).

De fato, a noção de patrimônio confunde-se com a de propriedade. Mais precisamente com uma propriedade que é herdada, em oposição àquela que é adquirida. Enquanto categoria de pensamento46, presente em inúmeros contextos e recebendo acepções diversas, sua importância para a vida social e mental de qualquer coletividade merece bastante atenção.

Os avocados discursos do patrimônio cultural, presentes em todas as sociedades nacionais modernas, florescem nos meios intelectuais e são produzidos e disseminados por empreendimentos políticos e ideológicos de construção de “identidades” e memórias, sejam de sociedades nacionais, sejam de grupos étnicos, ou de outras coletividades. Assim sendo, os discursos do patrimônio usualmente se articulam em nome de uma totalidade que eles pretendem representar, da qual

46 Para José Reginaldo Santos Gonçalves, a afirmação de que essa categoria constitui-se no final do

século XVIII, juntamente com os processos de formação dos estados nacionais omite que ela não é uma invenção estritamente moderna. “Está presente no mundo clássico, na Idade Média e a modernidade ocidental apenas impõe os contornos semânticos específicos que ela veio a assumir” (GONÇALVES, 2005, p. 17). O tratamento à concepção de patrimônio como categoria de pensamento seria uma maneira mais ampla de compreender as dimensões significacionais do mesmo (GONÇALVES, 2002).

julgam ser a expressão autêntica e em relação à qual mantêm somente uma conexão metonímica, conforme José Reginaldo Gonçalves.

Esses discursos se articulam como narrativas, nas quais se relata a história de uma determinada coletividade, seus heróis, os acontecimentos que marcaram essa história, e especialmente os lugares e objetos que “testemunharam” esses acontecimentos. Os que narram essa história o fazem sob a autoridade da nação, ou de outra coletividade qualquer, cujas memória e identidade são materialmente representadas pelo patrimônio (GONÇALVES, 2002, p. 111).

A intensificação das transformações observadas na sociabilidade contemporânea, atrelada à imediatez ao nível da propagação da informação, veio a contribuir para o surgimento de uma nova “consciência patrimonial”, repercutindo na proliferação de instituições e instrumentos vocacionados à defesa dos referentes culturais identitários. Como aponta Marta Anico, perante às ameaças de assimilação a uma cultura transnacional, se observa uma crescente valorização das identidades coletivas locais sobre o passado.

Nessa conjuntura, pautada pela ausência de referentes de identidade, estabilidade e continuidade, em face de uma ameaça de ruptura e de desaparecimento de recursos culturais, real ou imaginada, produz-se um sentimento nostálgico em relação ao passado, abrindo o caminho ao desenvolvimento de uma indústria da nostalgia em que o passado é resgatado, idealizado, romantizado e não raras vezes inventado, mediante processos que incluem a patrimonialização da cultura. (ANICO, 2005, p. 74).

Esses efeitos contemporâneos sobre a concepção de patrimônio, e o surgimento de uma nova sensibilidade em face dos referentes culturais, potencialmente patrimonializáveis, parecem estar ligados a um conjunto de transformações quantitativas e qualitativas que tiveram início no período subsequente à II Guerra Mundial. A partir de então, a procura da autenticidade e da tradição configura-se como característica distintiva de novas formas de consumo cultural, aos quais, o patrimônio não permaneceu indiferente.

É na instituição do imaginário e seus efeitos sobre as formas urbanas de intervenção que a cidade dialoga com seu passado. A tentativa de recuperação de algo perdido e a busca de liames temporais conduzem a discursos sobre o patrimônio, lugar por excelência de negociação entre

passado e presente. O passado inventado pode acionar um tempo mítico, uma harmonia perdida ou uma relação com a natureza (BARREIRA, 2003, p. 333).

Com efeito, no interior desses movimentos, parece ser necessário situar o patrimônio à luz das dinâmicas centrípetas e centrífugas de desterritorialização e de re-territorialização da cultura, “na medida em que os elementos culturais representados são retirados dos seus contextos sociais, culturais, espaciais e temporais para serem incorporados em novas relações” (ANICO, 2005, p 75).

Ao mesmo tempo em que os processos de patrimonialização contribuem para uma objetivação da memória, para a inclusão de certas histórias e para recordar o passado, desempenham um papel igualmente determinante para o esquecimento de outras versões, pelo que se poderá afirmar que é tanto inclusivo como é exclusivo, unifica e simultaneamente separa, configurando-se como uma fonte e expressão do poder.

Essa valorização social do patrimônio conduziu ao desenvolvimento de múltiplas ações no sentido do resgate e activação patrimonial, uma tendência reveladora do próprio alargamento do conceito, alvo de múltiplas designações (reinvenção do patrimônio, paixão patrimonial, indústria do patrimônio ou histeria patrimonial), associada ao desenvolvimento de uma estratégia de proteção centrada na conservação das identidades e de referentes culturais de estabilidade, mediante a produção de um discurso patrimonial que se destina não só a responder aos desafios colocados pelo presente, mas ser igualmente utilizado no futuro (ANICO, 2005, p. 75).

Assim sendo, o passado é reconstruído pelo presente, e são as condições atuais que lhe conferem sentido e significado, os quais são o resultado de negociação entre diferentes atores sociais, cujas relações de poder nem sempre são simétricas e cujos interesses não são rígidos ou fixos.

Importa considerar que ao falar de patrimônio, se trata de trabalhar com uma categoria ambígua que, na contemporaneidade, transita entre o material e o imaterial, reunindo em si as duas dimensões. Conforme assinala Gonçalves (2005), o material e o imaterial aparecem de modo indistinto nos limites dessa categoria.

A noção de patrimônio cultural desse modo, enquanto categoria de entendimento humano, na verdade rematerializa a noção de “cultura” que, no século

XX, em suas formulações antropológicas, foi desmaterializada em favor de noções mais abstratas, tais como estrutura, estrutura social, sistema simbólico, etc.

Ademais, a tendência ao alargamento conceitual da noção de patrimônio acompanhou a tendência a encerrá-lo dentro das possibilidades de sua rentabilização social e econômica através da encenação de práticas culturais ditas tradicionais ou produtos de fabrico artesanal (cada vez mais distante do quotidiano dos indivíduos) oferecidos à procura turística diferenciada e ao consumo cultural como marcos da singularidade local.

Essas reconfigurações não deixaram de ter efeitos institucionais, particularmente na medida em que tendeu a favorecer a existência de duas orientações distintas e paralelas na política federal do patrimônio, desenvolvida no Brasil nos anos 70-80. Na prática, entretanto, a história era outra:

Nesse período, coexistiram duas linhas de atuação paralelas num mesmo campo – a da pedra e cal, continuidade do antigo Sphan, e a da referência, oriunda do Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC), criado em 1975 – que não conseguiram convir em um mínimo de definições comuns. A hegemonia do grupo de referência, na verdade, se limitou ao plano discursivo; na prática, foi através dos tombamentos efetuados pelo Sphan que continuou a ser construído o patrimônio histórico e artístico nacional (FONSECA, 2005, p. 24).

O que é preciso colocar em foco nessa discussão é a possibilidade de se transitar analiticamente com essa mesma categoria entre diversos mundos sociais e culturais, iluminando as diversas formas que ele pode assumir. É nesse sentido que pensar os patrimônios culturais como “gêneros do discurso”, isto é, como modalidades de expressão escrita ou oral que partem de um autor posicionado (individual ou coletivo), se dirigem e respondem a outros discursos, consoante ao posicionamento adotado por Gonçalves:

Isto significa dizer que estou tomando como pressuposto que os “patrimônios culturais” não são simplesmente uma coleção de objetos e estruturas materiais que existem por si mesmas, mas são, na verdade, discursivamente constituídos. Desse modo, os objetos que identificamos e preservamos como “patrimônio cultural” de uma nação ou de um grupo social qualquer não existem como tais senão a partir do momento em que assim os classificamos em nossos discursos (GONÇALVES, 2002, p. 111).

Para Vanessa Gayego Bello Figueiredo (2014, p. 94) ocorreu, na seara dos debates sobre a preservação do patrimônio, um deslocamento da dimensão estético-histórica para a dimensão antropológico-cultural. Conforme vistos nos inúmeros documentos internacionais, publicados durante o século XX, houve uma inflexão no sentido semântico-conceitual das noções mais restritas e delimitadas de “monumento”, “monumento histórico”, “monumento natural” ou “patrimônio histórico e artístico”, para uma noção mais ampla no conceito de “patrimônio cultural”. Figueiredo (2014, p. 94) aponta ainda que “a ideia sobre algo direciona a ação, ao passo que esta retroalimenta a formulação dos conceitos numa interação permanente, mas sem permanências – transformadora, inclusiva, regeneradora”.