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1. A FORÇA DO PATRIMÔNIO

1.1. Julgamentos de realidade ou julgamentos de valor

Se os bens patrimoniais são assim definidos em razão do valor que lhe é atribuído, cabe primeiramente questionar como e de que forma é construído ou são construídos os julgamentos de atribuição de valor.

Na tentativa de buscar respostas para esses questionamentos iniciais, torna-se bastante útil se recorrer ao sociólogo Émile Durkheim (1970) no pequeno

7 A expressão designa um bem destinado ao usufruto de uma comunidade que se ampliou a

dimensões planetárias, constituído pela acumulação contínua de uma diversidade de objetos que se congregam por seu passado comum: obras e obras-primas das belas-artes e das artes aplicadas, trabalhos e produtos de todos os saberes e savoir-faire dos seres humanos (CHOAY, 2006, p. 11).

texto “Julgamentos de valor e Julgamentos de realidade”, no qual diferenciava a existência destas duas espécies de julgamentos: de valor e de realidade. Essa distinção feita pelo autor é extremamente proveitosa para a reflexão sobre a compreensão da atribuição do valor patrimonial. Neste sentido vamos considerar os ensinamentos do sociólogo francês.

Para Durkheim os julgamentos de realidade se proporiam a expor a expressão de determinados fatos da forma que os mesmo existem. No intuito de clarificar e tornar mais nítida a construção de sua linha de raciocínio, o autor faz alusão aos estudos da física, à época, uma ciência detentora de grande prestígio para ilustrar o seu pensamento:

[...] Quando dizemos que os corpos são pesados, que o volume dos gases varia na razão inversa da pressão que sofrem, nós formulamos julgamentos que se limitam a exprimir determinados fatos. Eles enunciam aquilo que existe e, por essa razão, nós os chamamos julgamentos de existência ou de realidade (DURKHEIM, 1970, p. 53).

Com esse exemplo ilustrativo Durkheim buscava justificar de forma simétrica a ideia na qual determinados julgamentos sobre objetos podem possuir meramente um caráter de reprodução de determinada realidade existente. Ou seja, declarariam tal qual uma fórmula física um aspecto verificável.

Em sentido similar ao exarado na citação acima, para o sociólogo a emissão de opiniões relacionadas à maneira de se comportar do sujeito frente a determinados objetos – as preferências – também seriam fatos em si, não possuindo o condão de atribuir um valor ao objeto exterior ao mesmo. Deste modo esses “julgamentos que podem parecer avaliações, mas que são no fundo, simples julgamentos de realidade” (DURKHEIM, 1970, p 53).

Contudo, além do julgamento de realidade também denominado de existência, seria possível se espaçar a uma segunda forma de ponderação frente a um objeto: o julgamento de valor. Neste o cerne da avaliação seria elaborado na afirmação não daquilo do que as coisas são em si próprias, mas de acordo com a valoração em relação ao sujeito que lhe postulou determinado valor. “Outros julgamentos têm por objeto dizer não aquilo que as coisas são, mas aquilo que elas

valem em relação a um sujeito consciente, o valor que este último a ela atribuiu; a esses dá-se o nome de julgamento de valor” (DURKHEIM, 1970, p 53).

A esse entendimento inicial de que atribuía ao indivíduo primazia em julgar o valor das coisas em relação a si próprio, posteriormente o autor reformulou em parte a sua análise sobre o julgamento de valor para tentar superar as variações estritamente individuais.

Para superar variações puramente individuais, que seria uma forma de anomalia para construção de um postulado em moldes científicos de análise da época, Durkheim faz a substituição do sujeito individual pelo sujeito coletivo na relação de atribuição do julgamento. “Mas é a maneira pela qual a coisa afetaria o sujeito coletivo e, não mais o sujeito individual, que daria o seu valor”. (Durkheim, 1970, p 54).

Para Durkheim a redefinição do conceito de julgamento de valor traria a vantagem de postular uma avaliação objetiva “pela simples razão de ser coletiva” (DURKHEIM, 1970, p 54). Trazendo em sua visão incontestável vantagem sobre a conceituação precedente pela seguinte razão:

Isto porque a opinião pública traz de suas origens uma autoridade moral pela qual se impõe aos particulares. Ela resiste aos esforços que são feitos para violentá-la; reage contra os dissidentes, tal qual o mundo exterior reage dolorosamente contra aqueles que tentam se rebelar contra ele. Ela censura aqueles que julgam as coisas morais por princípios diferentes daqueles que ela prescreve; ridiculariza os que se inspiram numa estética diferente da sua. Quem quer que tente adquirir uma coisa por um preço inferior a seu valor choca-se com resistências comparáveis com as que nos opõem os corpos quando menosprezamos sua natureza. Assim se pode explicar a espécie de pressão que sofremos e da qual temos consciência quando emitimos julgamentos de valores... Sentimos bem que não somos os senhores de nossas apreciações; que estamos amarrados de contrafeitos. É a consciência pública que nos prende. (DURKHEIM, 1970, p 54-55).

Essa explicação da vantagem do julgamento social (coletivo) sobre o individual possui seu lastro de entendimento na medida em que alça o primeiro como possuidor de um caráter objetivo e na visão de Durkheim, livre do subjetivismo que seria característico da análise individual. Seguindo essa trilha de análise do autor, é possível se utilizar a teoria como uma ferramenta interessante de análise

para reflexões sobre a forma de atribuição de valor aos objetos erigidos à categoria de patrimônio histórico e artístico.

Os bens patrimoniais não possuem sua valoração de um julgamento intrínseco sobre si próprios, ou seja, sobre sua existência dada, mas sim através da definição oriunda de uma tomada de posição atributiva de valor frente aos bens patrimoniais. Ou seja, a valoração feita sobre os restos existentes da Muralha construída a mando do Imperador Romano Adriano, considerada patrimônio mundial pela UNESCO, não decorre do que sobrou das pedras e madeiras de sua construção, mas de um valor exterior que lhe foi atribuído.

Essa forma de julgamento sobre o patrimônio histórico e artístico fica nítida ao se tratar do valor estético, visto que o mesmo não é mensurado simplesmente por sua utilidade social/individual. Ao contrário, “Toda arte é uma coisa de luxo; a atividade estética não se subordina a nenhum fim útil; ela se desenvolve pelo simples prazer de se desenvolver” (DURKHEIM, 1970, p. 55-56).

O trabalho de preservação e proteção do patrimônio histórico se amolda perfeitamente à explicação de atribuição dos julgamentos de valor, posto que sua atribuição valorativa se perfaça através da suplantação puramente do estado daquilo que existe, ou seja, de uma dada realidade aparente, mas ao contrário de uma atribuição exterior e coletiva que é conferida.

Se for tomado como exemplo ilustrativo a ruína é possível se vislumbrar um julgamento de existência, no qual a mesma seja retratada como um amontoado de restos de pedras do que um dia foi uma edificação, ou seja, sua realidade seria de um monte de pedras velhas.

Todavia, a esta mesma ruína pode ser atribuída vinculação com um ideal decorrente da relação da coisa com o sujeito coletivo, neste diapasão, a ruína calcada na categoria de patrimônio histórico com “O valor estético da ruína” (SOUZA; ÖELZE, 2005, p. 141), passa a ter uma relação com toda a construção teórica e conceitual atribuída de uma valoração dos bens alçados a esta categoria.

Antes de se adentrar na questão da atribuição de valores aos bens patrimoniais será a feita uma breve digressão histórica para se situar no quadro de produção do conhecimento os conceitos de monumento, monumento histórico e de patrimônio histórico na sociedade ocidental.