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3. ESPAÇO, HISTÓRIA E CONSTRUÇÃO PATRIMONIAL

3.2. Breviário Histórico

3.2.1. Intervenções urbanísticas no Centro Antigo

Até as primeiras décadas do século XX, o casario de tipologia lusa permaneceu praticamente inalterado. Contudo, a manutenção física daquela arquitetura tornou-se um problema ao mesmo tempo em que discursos de modernização passaram a criticar a tipologia urbanística, considerando inadequada aos padrões de higienização patenteados pelo saber médico. “O plano de extensão da cidade e do alargamento de suas ruas são necessidades exigidas pela hygiene, pela esthetica e pelos interesses commerciais” (CANTANHEDE, 1902, p. 134).

O médico Victor Godinho que viera a São Luís para combater a epidemia de peste bubônica reinante entre os anos de 1903 e 1904, se referia à disposição dos imóveis do centro antigo que eram mal projetados, impedindo a circulação do ar nos interiores das casas, sendo considerado um fator de proliferação de epidemias.

Em matéria de construções notam-se aqui graves defeitos. O código de posturas municipais não se preocupava senão da estética das ruas, de sorte que exigia apenas para as construções novas uma planta da fachada, e deixava aos proprietários a mais inteira liberdade de comprometer a higiene domiciliar como bem lhes parecesse.

O resultado é que agora as casas ocupam, mesmo fora dos centros comerciais, quase toda a área do terreno. Os prédios não recebem arejamento senão pela frente e pelos fundos, e deste lado mesmo somente quando algum outro prédio ou muro divisório não protesta contra esse preceito higiênico.

As casas são quase todas edificadas com a continuidade de uma fileira de batalhão (GODINHO, 1904, p. 128).

Ademais, a visão médico higienista que vigorou nos primeiros anos da República fez-se sentir através das intervenções que se promoviam nos grandes centros urbanos, caso do Rio de Janeiro, que sofrera vários surtos epidêmicos e acabou protagonizando uma reforma urbana59 alterando radicalmente o traçado de suas ruas e o aspecto urbano.

A institucionalização da saúde como um bem público concorreu para o planejamento de intervenções no conjunto urbano do centro da cidade visando adaptá-la às condições sanitárias requeridas pelos médicos higienistas.

Outra questão a ser considerada nesse contexto é como as elites passaram a conceber o padrão arquitetônico dos prédios históricos. Com a febre das reformas urbanas em vigor nos grandes centros desde o século XIX, alguns articulistas lançavam críticas sobre a conservação daqueles padrões:

No Maranhão, porém, são sempre os edifícios acanhados e pobres, sem os requisitos da arte, sem material de importância, sem ornamentação pomposa, sem decoração alguma; (...) Construídos de incertum são todos os nossos templos que obedecem a um só modelo e todos os nossos edifícios, assemelhando-se muito uns com os outros, parecem feitos pelo mesmo artista, ao mesmo tempo e na mesma fôrma. (...) O espírito de imitação dos nossos homens aí está patente nas suas habitações, assim

59 Em 1902 o prefeito Pereira Passos buscou operar uma reformulação urbana no Rio de Janeiro com

uma ampla reforma urbana que alterou decisivamente o traçado urbano da cidade abrindo largas avenidas (AZEVEDO, 2015).

como o seu desprezo pelo belo, a sua pobreza, a sua pouca orientação estética e a sua índole pacifica. (A Campanha 08/05/1903)

A partir da década de 1930 o discurso de modernização assume uma forma mais incisiva, com as autoridades políticas considerando o conjunto arquitetônico do centro antigo um entrave ao progresso e à mudança. A nomeação de Paulo Martins de Souza Ramos como interventor federal do Maranhão em 1936, endossou essa perspectiva, levando aquele gestor a reforçar a ideia de que a preservação do conjunto arquitetônico era sinônimo de atraso econômico, social e cultural da cidade, bem como um obstáculo para a evolução urbana. (IPHAN, 2007, p. 59).

A implicância em transformar a paisagem urbana era amparada pelo surgimento de nova legislação em 1927 que justificava a necessidade de preparar a cidade para o progresso advindo com as novas tecnologias disponíveis na época.

O período imediatamente anterior à Revolução de 30 é caracterizado pela qualificação dos serviços públicos, o que estava fundamentado na Lei Orgânica dos Municípios, aprovada em 1927, nas operações de remodelação de prédios públicos e na política de melhoramentos urbanos. O objetivo dos melhoramentos urbanos era dotar a cidade de infra-estrutura viária e de espaços públicos adequados às novas tecnologias de transporte, os automóveis, de serviço – energia elétrica – e de construção, com o uso de cimento e concreto armado, com a transformação parcial, das condições das estruturas existentes (LOPES, 2008, p. 27-28).

A força da lei serviu para o Estado legitimar as intervenções urbanísticas no centro antigo, provocando relativas mudanças em seu traçado e em sua paisagem arquitetônica. Esse contexto de intervenções causou prejuízos irreparáveis para o patrimônio público. O imóvel denominado de Palácio dos Holandeses, velho casarão centenário que supostamente teria servido de alojamento para os holandeses na época em que dominaram a cidade, localizado na cercania da atual praça Benedito Leite foi demolido dando lugar a construção do Hotel Central (LOPES, 2008, p. 30).

Outra perda significativa foi a Igreja da Imaculada Conceição dos Mulatos60, destruída para permitir o alargamento da rua onde estava localizada,

facilitando a passagem do bonde elétrico recentemente implantado. Substituía-se uma construção histórica, porém ultrapassada, para dar lugar ao bonde que naquele momento era sinônimo do progresso.

Uma intervenção que alterou profundamente o traçado do centro antigo foram as obras de alargamento da Rua do Egito e a remodelação urbanística do Largo do Carmo e da Praça João Lisboa, ensejando profunda modificação na área com a demolição de vários prédios antigos.

De uma só vez dezenas de exemplares da arquitetura tradicional luso- brasileira foram demolidos, em uma obra que cortava todo o centro da cidade, praticamente ligando o Rio Anil ao Bacanga. Para tanto, além da abertura de uma avenida que cortasse na diagonal várias quadras existentes (Av. Magalhães de Almeida), fez-se o alargamento e alinhamento da Rua do Egito, ou Tarquínio Lopes. Na esteira da abertura da Avenida Magalhães de Almeida, em 1941, a prefeitura promove a reurbanização do Largo do Carmo e da Praça João Lisboa, há algum tempo reclamada pelos formadores de opinião. (LOPES, 2008, p. 31).

No período a imprensa escrita ao reproduzir a lógica de modernização vigente em outras cidades, publicava vários editoriais condenando a arquitetura de tipologia lusa e defendendo transformações urbanísticas. “Quasi todas as Capitaes brasileiras estão obedecendo à nova divisa lançada pelos urbanistas americanos: - Para o alto! E os arranha-céus apparecem nessas cidades, na sua imponencia de “elephantes cinzentos”, como foram alcunhados pelo vulgo” (DIÁRIO DO NORTE. 26/04/1939. A cidade, p. 08).

O periódico defendia a substituição dos velhos casarões por altos edifícios, os “arranha-céus”, verdadeiros símbolos da arquitetura urbanística do estilo de vida americano. Essa ideia de mudança rumo ao progresso partiu da influência estadunidense muito difundida em São Luís através da mídia e dos filmes. Com a inauguração das primeiras salas de cinema em fins da década de 1930 os ludovicenses passaram a conhecer o estilo de vida americano, com suas ruas alargadas, arranha-céus modernos e automóveis, expressando os avanços da

60 Construída no século XVIII e localizada na esquina das Ruas Grande e de São Pantaleão, a Igreja

foi demolida em 1939, causando indignação social na cidade: “A decisão de arrasar a igreja comoveu a cidade, que protestou com a veemência permitida pelos rigores policialescos do Estado Novo [...]” (MORAES, 1995, p. 75).

tecnologia e da engenharia, descritos nas telas. Os jornais da época costumavam publicar notícias de Hollywood (LOPES, 2004, p. 50-51). Esse contexto gerava

expectativas de que São Luís pudesse se transformar num grande centro urbano moderno.

Mesmo com a degradação que ocorreu no conjunto arquitetônico importa saber que a transformação do Largo do Carmo num conjunto de arranha-céus não se concretizou, frustrando os desejos daqueles que defendiam a destruição da arquitetura colonial.

Somando-se ao empenho de gestores públicos e jornalistas na construção de uma nova ordem urbanística, havia o arruinamento dos casarões por falta de manutenção dos proprietários. Além da ação de particulares, principalmente empresários que modificavam a arquitetura dos prédios visando adaptá-los como empreendimentos de comércio e serviços.

Associada a essa expansão urbana intensificou-se o processo de descaracterização da arquitetura do centro histórico, onde a estrutura interna de vários prédios sofreu alterações para facilitar o funcionamento de lojas, que se instalavam na parte inferior de antigas residências, descaracterizando as fachadas. Além disso, um processo de crescimento vertical trouxe maior descaracterização ao patrimônio da cidade (IPHAN, 2007, p. 60).

Sob o influxo desses acontecimentos, temos a saída gradativa dos moradores mais abastados do centro antigo, não obstante, a expansão da cidade para outros eixos, os imóveis coloniais sofreram uma desvalorização, pessoas de baixa renda passaram a habitá-los e algumas zonas do Desterro e Praia Grande tornaram-se pontos de prostituição legalizada pelo governo61. No decorrer dos anos, muitos sobrados transformaram-se em boates, bares, cortiços e casas de pensão. (LOPES, 2008, p. 32-33).

Foi esta mudança nos eixos de expansão da cidade que, em parte, deu início ao processo de desvalorização da área central, que foi sendo

61 Na bibliografia disponível acerca da ZBM, normalmente se faz referência a sua criação, no início da

década de 1940, durante a Interventoria de Paulo Ramos no Maranhão, embora nenhuma das obras por mim consultadas apresente documentação indicativa do momento preciso dessa institucionalização e dos motivos que levaram a sua efetivação especificamente nesse local (FERREIRA, 2005, p. 27).

ocupada pela população de renda mais baixa, dando origem à formação dos atuais cortiços no Centro Histórico, demonstrando que a utilização de materiais e técnicas construtivas, as diferentes formas de ocupação, uso e intervenção nos imóveis ao longo do tempo são reflexos diretos do momento sócio-econômico vivido pela cidade (ESPÍRITO SANTO, 2006, p. 78).

No bairro da Praia Grande considerado a área mais nobre da cidade, houve diminuição de seu uso enquanto local de moradia pelas famílias abastadas, nesse período, conforme assevera Mário Meireles.

[...] a esse tempo nenhuma família continuava residindo nos sobradões da Rua do Trapiche, que apenas serviam de sede a armazéns, lojas e escritórios, e que muitas, e das melhores, já moravam naquelas ruas da cidade alta, inclusive na distante Rua dos Remédios" (MEIRELES, 1980, p. 50).

Assim, com essa alteração, ocorre gradativamente a expansão das construções em novos pontos da ilha, inclusive pela vinda de pessoas oriundas de municípios do interior do Estado.

É notório que, durante o trintenário de 1940 -1970, São Luís abrigou parcela crescente da população migrante do campo, o que fez espraiar-se urbanisticamente, como dito em passagem anterior. Desarte, é entre o final dos anos 60 e por todo o desabrochar da década setentista que a capital timbirense, nascida em meio à disputa colonialista travada entre gauleses e lusitanos, adquire um novo traçado urbano. Suas fronteiras expandem-se rompendo o bloqueio do corredor reespacializante a construção da ponte José Sarney, inaugurada em 1970, que encurtaria o caminho da cidade para as praias, enobrecendo uma vasta área do seu território, e a edificação da barragem sobre o rio Bacanga, também concluída no ano de 1970. (RIBEIRO JÚNIOR, 2001, p. 89)

O aumento populacional que resultou da migração campo-cidade promoveu alterações urbanas delineadas na expansão da cidade em dois sentidos. Ao norte ocorreu a formação de uma nova área nobre e a sudoeste uma área de ocupação por pessoas de baixa renda na década de 1980 até o presente62. O esvaziamento populacional não ocorreu de forma homogênea. Enquanto na Praia

62 Ao norte pode-

se citar o Renascença, Calhau e Olho D’água como locais de pessoas com maior poder aquisitivo. Já ao sudoeste da cidade refere-se ao Anil, Cidade Operária e adjacências.

Grande o processo foi mais intenso, no Desterro uma parcela dos imóveis se manteve para uso residencial de famílias63 (FERREIRA, 2005, p. 31).

Em meados do século XX o núcleo urbano inicial de São Luís ainda não era considerado um bem cultural, mas ao contrário, as edificações centenárias perfaziam o cenário do Centro Antigo da cidade. Somente nas décadas seguintes ocorrerá uma mudança valorativa nesse espaço urbano como será apresentado na próxima seção.