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2. A MUNDIALIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO

2.3. O patrimônio na contemporaneidade

2.3.2. O Patrimônio Negativo

Com o acúmulo de bens considerados parte da herança cultural dos povos, chega-se ao século XXI com o maior número de monumentos e edificações com valor de preservação do que em qualquer outro momento da história da humanidade.

Mesmo elementos que até pouco mais de um século atrás foram exemplo da moderna arquitetura são hoje designados como patrimônio cultural. Essa "explosão" patrimonial traz consigo desafios para o planejamento urbano dos locais onde os bens encontram-se, pois existe a necessidade de suas preservação e acomodação na sociedade atual.

O antigo questionamento sobre quais objetos da herança cultural precisam ser preservados emerge com voracidade em tempos nos quais o patrimônio como um elemento na construção da identidade, é muitas vezes acusado de significados que podem mudar como resultado de significativas alterações políticas. Ainda mais complexos são os casos nos quais o patrimônio é um elemento entrelaçado a um período conturbado ou mesmo doloroso de um povo ou nação. Tal situação é muito presente nos antigos países que formaram o bloco comunista como destacado no caso Albanês.

Arguments against the pyramid, consider it as a heritage that reminds of the painful period of the communist regime. This is not a new practice in the construction of Albanian National Identity. After the destruction of ottoman heritage from communist, now communist and fascist heritage is being considered for demolition from the actual government. In the name of bad memories and of war against everything communist, the decision was taken to erase all evidence of the previous regime. History is full of monuments that were built on the death of people. Uncountable number of people died during construction of the gardens of Versailles. This doesn’t stop us from considering it a cultural heritage of incredible beauty47. (BINERI, 2012, p. 13).

Como no caso da contestação da construção na Albânia, em razão de rememorar um período considerado conflituoso, essa dificuldade em lidar com o sentimento de desconfiança com elementos de um período considerado nocivo traz um debate sobre como compreender as políticas patrimoniais. Esse é um novo desafio para os debates contemporâneos sobre preservação de bens patrimoniais, pois no decorrer dos últimos séculos o patrimônio foi preponderantemente tratado como um elemento positivo.

As a result of its implication of the existence of a “positive heritage,” the term negative heritage has been met with alternative terminologies, which include “difficult histories," “sites of conscience," and “dark histories,” as well as the related terms “ambiguous,” “ambivalent,” or “dissonant” heritage. For the purpose of this thesis, the term negative heritage will be employed in acknowledgement of its pervasiveness in current discourse, and will be applied to the circumstances that charge or stigmatize the site of a violent, tragic, or traumatic event and are interpreted as a shared loss by a self- identified group or community48 (MOSES, 2015, p. 8).

47 Os argumentos contra a pirâmide consideram-na como um patrimônio que lembra o doloroso

período do regime comunista. Esta não é uma nova prática na construção da identidade nacional albanesa. Após a destruição do patrimônio otomano no período comunista, agora a herança comunista e fascista está sendo considerada para demolição pelo atual governo. Em nome de más recordações e de guerra contra tudo do comunismo, a decisão foi tomada para apagar todas as evidências do regime anterior. A história está repleta de monumentos que foram construídos sobre a morte de pessoas. Um número incontável de pessoas morreu durante a construção dos jardins de Versalhes. Isso não nos impede de considerá-lo uma herança cultural de incrível beleza.

48 Como resultado da sua implicação da existência de um "patrimônio positivo", o termo patrimônio

negativo foi cunhado com terminologias alternativas, que incluem "histórias difíceis", "sítios de consciência" e "histórias sombrias", bem como relacionado aos termos "ambíguo", "ambivalentes", ou patrimônio "dissonante". [...] o termo patrimônio negativo será empregado em reconhecimento da sua penetração no discurso atual, e será aplicado às circunstâncias que cobram ou estigmatizam o local de um evento violento, trágico, ou traumático e são interpretados como um perda compartilhada por um grupo ou comunidade auto-identificadas.

A própria definição sobre patrimônio negativo remete a um conceito ainda em processo de formação, tendo grandes contribuições iniciais oriundas da antropologia e da literatura psicológica, sendo utilizado para contextos diferentes traçar o desenvolvimento da relação no que diz respeito a espaços estigmatizados. (MOSES, 2015).

Esse debate sobre o patrimônio negativo busca compreender formas de intervenção visando promover a aceitação e preservação dos bens patrimoniais na situação de adversidades religiosas, políticas ou ideológicas.

Essas posições adversas sobre o patrimônio tomaram corpo de forma mais contudente e destaque desde o raiar do século XXI, quando em março de 2001 o Taleban, que a época controlava o Afeganistão, colocou em prática uma política sistemática de destruição de estátuas de valor cultural por considera-las ofensivas aos preceitos islâmicos.

Figura 03 - Buda de Bamiyan. Fonte: http://www.bbc.com/news/world-asia- 31813681

Esta empreitada contra os bens patrimoniais ganhou destaque internacional quando o grupo anunciou que explodiria na cidade de Bamiyan duas

grandes estátuas gigantes de Buda e inseridas na Lista do Patrimônio Mundial da UNESCO. Mesmo com várias tentativas internacionais, inclusive de outros países islâmicos, as estátuas foram destruídas com dinaminte e bombardeios de tanques.

As archaeologists we might pause to consider the Bamiyan destruction since this does fall within our purview and we are obliged to think through the entangled and uncomfortable issues this episode presents. Here I want to explore the polymorphous interventions of negative heritage, since it can be mobilized in strategies of remembering or forgetting. For the Taliban, the Buddhist statues represented a site of negative memory, one that necessitated jettisoning from the nation's construction of contemporary identity, and the act of erasure was a political statement about religious difference and international exclusion. For many others today that site of erasure in turn represents negative heritage, a permanent scar that reminds certain constituencies of intolerance, symbolic violence, loss and the "barbarity" of the Taliban regime49 (MESKELL, 2002, p. 561).

Outra situação de destruição deliberada do patrimônio vem ocorrendo na Síria e no Iraque através da atuação do denominado Estado Islâmico. Esse grupo extremista considera o patrimônio religioso pré-islâmico, especialmente as estátuas, como expressões de idolatria.

Um número ainda não determinado de locais históricos foram danificados ou destruídos, sendo que um dos principais marcos dessa devastação patrimonial ocorreu na cidade de Palmira, na Síria, onde com a detonação de explosivos deitaram o templo de Baalshamin bem inscrito na Lista do Patrimônio Mundial da Humanidade.

49 Como arqueólogos poderíamos fazer uma pausa para considerar a destruição de Bamiyan uma vez

que este se enquadra dentro do nosso alcance e nós somos obrigados a pensar nas questões emaranhadas e desconfortáveis que este episódio apresenta. Aqui quero explorar as intervenções polimórficas de patrimônio negativo, uma vez que podem ser mobilizadas em estratégias de lembrar ou esquecer. Para o Taliban, as estátuas budistas representavam um local de memória negativa, que exigiu alijamento de construção da nação de identidade contemporânea, e o ato de apagamento foi uma declaração política estatal sobre a diferença religiosa e exclusão internacional. Para muitos outros, hoje esse local destruído, representa uma herança negativa, uma cicatriz permanente que lembra certas circunscrições de intolerância, violência simbólica, a perda e a "barbárie" do regime talibã.

Figura 04 - Templo de Baalshamin na cidade de Palmira. Fonte: http://www.theguardian.com/world/2015/aug/30/palmyra-isis-syria-history-

influence-mourn

Além da destruição do templo todo o conjunto de ruínas da cidade de Palmira com seus bens históricos estão sofrendo da ação deliberada, como o Leão de Alat e outros elementos que compõe o seu conjunto arquitetônico. Essa situação do patrimônio como elemento negativo é mais uma faceta das transformações da forma de relação com a herança cultural do passado que certamente vão ser um dos grandes debates no século XXI. A decorrência da própria “mundialização dos valores e das referências ocidentais” (CHOAY, 2006, p. 207) também é um elemento capaz de propiciar visões de forma oposta sobre patrimônio histórico.

As modificações sobre a forma de tratamento com os bens patrimoniais também ocorreram com o patrimônio arquitetônico, através do debate acumulado ao longo dois últimos séculos, fez com que fosse erigida uma visão na qual a construção, sua história, uso e o contexto urbano no qual se encontra inserido sejam relevantes como objeto de interesse para a preservação dos conjuntos urbanos. “É estabelecido um vínculo indissociável entre o edifício de interesse histórico e estético e o ambiente em que se situa. Desloca-se o foco do monumento

considerado isoladamente para a noção de conjunto urbano, sítio histórico” (ALMEIDA, 2009, p.70).

O grande interesse nas últimas décadas pelos centros históricos trouxe à baila a questão das intervenções urbanísticas e da propositura de políticas urbanas de reabilitação destes espaços. “[...] cabe questionar o lugar e as funções actuais dos núcleos urbanos antigos nas cidades que crescem para fora dos seus centros tradicionais” (PEIXOTO, 2003, p. 211).

No próximo capítulo esse debate será focado no caso do Centro Antigo de São Luís São Luís, típico conjunto urbano no qual houve um crescimento acentuado da cidade para além do espaço tradicional do seu centro antigo e que no decorrer do século XX teve momentos onde sua existência foi colocada em risco por uma política de remodelação urbanística, mas que através da atuação da gestão dos órgãos de preservação do patrimônio foi institucionalizado como um acervo arquitetônico tombado.