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2. A MUNDIALIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO

2.2. As Cartas Internacionais sobre o Patrimônio

2.2.2. As primeiras cartas patrimoniais

No decorrer da década de 1930 dois documentos distintos vão trazer novos debates em âmbito internacional sobre a questão do patrimônio histórico no ocidente. Com enfoques diferentes ambos trazem abordagens sobre as construções históricas legadas das centúrias anteriores através do reconhecimento distinto do que deveria ser preservado ou não para a posteridade. “O problema da preservação dos bens culturais relaciona-se, portanto, a um reconhecimento de valor. É este reconhecimento que condiciona e legítima a ação de conservação” (ALMEIDA, 2009, p. 43).

Em 1931 o 1º Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos de Monumentos Históricos ao debater a necessidade de conservação dos bens patrimoniais publica a “Carta de Atenas”, documento que reunia as ideias consolidadas no referido Congresso.

A partir de 1928, ocorreu o primeiro de uma série de Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (CIAM). Esses Congressos foram organizados sob a direção de Le Corbusier, grande expoente do Modernismo na arquitetura, tendo a finalidade de “reunir e sistematizar pesquisas realizadas por arquitetos em seus países, sendo os pontos convergentes temas de exposições internacionais” (SILVA, 2003, p. 52).

Em 1933 no âmbito da IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna – CIAM29 foi gerado um documento que trazia em seu interior também o

debate sobre o patrimônio edificado.

Apesar de ambos os documentos tratarem da questão do patrimônio as diretrizes são completamente distintas sobre o ambiente arquitetônico urbano:

[...] de um lado, os arquitetos voltados especificamente à ação de conservação do patrimônio arquitetônico e urbano e, de outro, os setores engajados com as propostas de inovação do chamado Movimento Moderno, tanto no âmbito da arquitetura como do urbanismo (ALMEIDA, 2009, p. 44).

29Existem várias versões deste documento, sendo a publicada por Le Corbusier, sob o título de “A

Essa dicotomia das posições contrastantes entre os dois documentos mencionados reproduz uma tensão existente desde o século XIX. Esse confronto coloca em um polo os defensores da preservação da paisagem da cidade antiga (pré-industrial), o que constitui justamente a proteção do patrimônio urbano.

Em outro polo aparecem os defensores da modernização urbana e por consequência a modificação das cidades antigas. Não se prega um descarte total do legado do passado, mas este não teria primazia frente às novas construções e renovações urbanas.

Apesar da consciência sobre a preservação dos monumentos e do patrimônio arquitetônico, este ainda estava muito restrito a edifícios considerados monumentais. A noção de preservação do patrimônio urbano ainda não se mostrava consolidada e as novas configurações urbanas surgidas após o advento da cidade industrial traziam novos desafios.

A restauração passa a ser vista, até metade do século XX, como uma prática conservadora, uma apologia ao historicismo, ao culto da erudição eclética. Essas características são mais acentuadas na historiografia, a partir da década de 1930, porque na prática os arquitetos em seu tempo continuam enfrentando os desafios da preservação de edifícios e sítios históricos, problema intrínseco ao desenvolvimento das cidades frente à modernização e ao crescimento desordenado (CERÁVOLO, 2010, p. 83).

Neste contexto a Carta de Atenas de 1931 foi o primeiro documento internacional específico da área de patrimônio. É também conhecida como Carta de Restauro por trazer diretrizes amplamente preservacionistas. A reunião contou com a participação de especialistas de vários países da Europa onde se destaca a figura de Gustavo Giovannoni (Kühl, 2010, 292) e foi organizada pelo Escritório Internacional dos Museus da Sociedade das Nações.

Entre os princípios gerais trazidos pela Carta de 1931, houve atenção especial à negação das reconstituições integrais através de uma prática regular de conservação do acervo arquitetônico.

Qualquer que seja a diversidade dos casos específicos, em que cada um possa comportar uma solução, constatou que, nos diversos Estados representados, predomina uma tendência geral para abandonar as reconstituições integrais e evitar os seus riscos, pela instituição de uma

manutenção regular e permanente, adequada a assegurar a conservação dos edificios.

Na situação em que um restauro surja como indispensável, como consequência de degradação ou de destruição, recomenda o respeito pela obra histórica e artística do passado sem banir o estilo de nenhuma época.

A Carta de 1931 recomenda a necessidade de dar destinação adequada ao patrimônio de forma a facilitar sua continuidade no espaço urbano, contudo a destinação deverá respeitar o caráter histórico ou artístico da construção.

Um dos aspectos de maior relevância apontado foi a relevância de se preservar não apenas os grandes monumentos isolados, mas a proteção da arquitetura privada doméstica, deste modo os conjuntos urbanos antigos deveriam também ser objeto de proteção da legislação.

A Conferência recomenda o respeito, na construção dos edificios, pelo carácter e a fisionomia das cidades, sobretudo na vizinhança de monumentos antigos cuja envolvente deve ser objecto de cuidados particulares. Também alguns conjuntos e certas perspectivas particularmente pitorescas, devem ser preservadas.

Há também necessidade de estudar as plantas e ornamentações vegetais adequadas a certos monumentos ou conjuntos de monumentos para lhes conservar o seu carácter antigo.

Recomenda sobretudo a supressão de toda a publicidade, de toda a presença abusiva de postes ou fios telefónicos, de toda a indústria ruidosa, incluindo as chaminés altas, na vizinhança dos monumentos artísticos ou históricos (Carta de Atenas, 1931).

Além de aconselhar a preservação dos monumentos assume também uma posição avançada sobre o entorno no qual está a edificação. Nesse sentido o contexto espacial situado deve receber atenção especial para a manutenção da perspectiva histórica de configuração do monumento.

A preservação de conjuntos ou centros antigos, além de ser um dos grandes destaques da Carta de 1931, é também o maior contraste em relação a Carta do CIAM de 1933 como se tratar a seguir.

Outro ponto a ser destacado com a Carta de 1931 é a propagação da importância da obra de Gustavo Giovannoni, pois sua ideia de restauração científica passa a ser reconhecida em dimensão internacional. Giovannoni com suas ideias sobre a preservação do patrimônio teve relevante importância no Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos de Monumentos Históricos no qual foi

formulada a Carta de Atenas de 1931, contudo, em razão do contexto político de sua época e de sua posição intelectual e acadêmica, “durante muito tempo se escamoteou a importância de Giovannoni em razão das paixões políticas e ideológicas” (Choay, 2006, p. 195). Se à época a contribuição de Giovannoni foi ofuscada pelos fatores anteriormente mencionados, é imperioso destacar a grande contribuição de Giovannoni.

A obra de Giovannoni precipita, de forma simultaneamente mais simples e mais complexa, as diversas políticas das “áreas protegidas” que foram desenvolvidas e aplicadas na Europa a partir de 1960. Contém, igualmente, em germe, seus paradoxos e dificuldades. (CHOAY, 2006, p. 203).

Contudo, se Giovannoni e a Carta de 1931 apontavam a importância da preservação do patrimônio urbano, a Carta oriunda do IV CIAM dando continuidade ao já postulado nos Congressos anteriores, dava grande ênfase à funcionalidade da cidade como uma exigência da vida moderna.

O quarto encontro realizado pelo CIAM na cidade de Atenas em 1933 teve como tema do congresso a “cidade funcional” e deste encontro resultou a Carta de Atenas, documento que trouxe os princípios debatidos no Congresso. O objetivo era propor uma cidade com funcionamento adequado para o conjunto da população, distribuindo entre todos os indivíduos possibilidades de bem-estar decorrente dos avanços técnicos.

Nesse sentido era necessário que a urbe funcional fosse estruturada para atender: a habitação, o lazer, o trabalho e a circulação. Deve ser ressaltado que “Por sugestão da delegação italiana, introduziu-se uma seção destinada ao patrimônio histórico das cidades” (SILVA, 2003, p. 52).

Apesar de postular que “os valores arquitetônicos devem ser salvaguardados”, comporta uma séria de pré-condições para a manutenção das construções antigas, tais a salubridade e o não comprometimento da circulação urbana. A assertiva decorre do fato que para o alcance da cidade funcional eram necessárias amplas inovações.

Sabe-se que na raiz do funcionalismo está o desejo explícito de uma inovação radical. O resultado é a adoção da tábula rasa cultural que conduz

à absoluta rejeição da tradição, entendida como bagagem de experiências e normas transmitidas de geração à geração. Desse modo, assume-se uma postura de projeto equivalente à solução de um teorema abstrato a ser enfrentado pela primeira vez, um recomeçar “desde o princípio”. Essa conduta reflete uma compreensão, por parte dos arquitetos e urbanistas, de que as condições do presente são absolutamente inéditas em relação ao passado e que, portanto, os precedentes históricos não devem ser tidos em conta para afrontar as novas aspirações. (ALMEIDA, 2009, p. 51).

Sobre a Carta de Atenas oriunda do IV CIAM, sua importância reside no fato que mesmo entre os profissionais defensores da arquitetura moderna, a preservação do patrimônio não era completamente desprezada, apesar das condições colocadas para a preservação.

Apesar das diferenças de tratamento entre a Carta de Atenas de 1931 e a Carta de Atenas do CIAM de 1993, ambas atestam o crescimento do debate sobre o patrimônio histórico. Na pós II Guerra e a criação da UNESCO novos documentos internacionais sobre a temática foram elaborados.