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1 CONCEITUAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E DOS DIREITOS

2.3 O positivismo jurídico e o Direito Natural

2.3.3 A extrema consequência do positivismo jurídico: Kelsen Críticas

Ao enunciar a Teoria pura do Direito, Hans Kelsen buscou escoimar a Ciência Jurídica da Psicologia, da Economia, da Política e da Sociologia. “As demais ciências seriam integrantes de categoria jurídica dotada de valor lógico próprio, irredutível ao problema do conteúdo psíquico ou do processo de aferição de interesses”.168

Cabe mencionar algumas conclusões de Reale:

O apego a construções lógico-formais corresponde a um relativismo filosófico fundamental, a uma certa incompreensão dos valores da

166

LIMA, Alceu de Amoroso. Op. cit., p. 170.

167 Ibidem, p. 175.

existência concreta, apresentando a sua teoria rigorosamente trabalhada, um caráter de abstração ou de a-historicidade, que parece ter sido sentida pelo próprio autor na fase mais recente de suas pesquisas fecundas. [...]

Ciência Jurídica ou Teoria Pura do Direito é uma ciência do dever ser e, assim sendo, sua natureza é puramente normativa. [...] A Ciência Jurídica propriamente dita desenvolve-se no plano do dever ser lógico, em função de exigências operacionais.169

Para bem situar o conceito, entendo indispensável a transcrição literal de parte da obra de Kelsen:

O princípio lógico segundo o qual a validade de uma norma não pode ser fundamentada sobre um fato da ordem do ser vale igualmente quando este fato é um ato de vontade cujo sentido subjetivo seja o de que nos devemos conduzir de certa maneira. O argumento muito divulgado segundo o qual nos devemos conduzir de certa maneira porque o legislador ou Deus querem, isto é, ordenam que assim nos conduzamos, é uma falsa ilação. A conclusão tão-só é possível se pressupomos a norma segundo a qual nós nos devemos conduzir como o legislador quer ou como Deus quer.

Já a outro propósito fizemos notar (Teoria Pura do Direito, vol. II, pp. 1 e ss.) que do fato de um salteador de estradas nos ordenar que devamos dar-lhe o nosso dinheiro, que devamos obedecer ao seu comando; e não o fazemos porque na verdade não pressupomos qualquer norma por força da qual o sentido subjetivo do ato do salteador de estradas seja também o seu sentido objetivo. O fundamento de validade de uma norma positiva, isto é, de uma norma posta através de um ato de vontade, não é o ato que põe essa norma ou põe uma norma superior quer dizer o ato cujo sentido objetivo é a norma inferior ou a norma superior, mas a norma superior que é pressuposta como objetivamente válida e que opera a fundamentação da validade da norma inferior precisamente pelo fato de legitimar o sentido subjetivo do ato que põe essa norma como seu sentido objetivo, isto é, como norma objetivamente válida.

O processo da fundamentação normativa da validade conduz, porém, necessariamente, a um ponto final: a uma norma suprema generalíssima, que já não é fundamentável, à chamada norma fundamental, cuja validade objetiva é pressuposta sempre que o dever-ser que constitui o sentido subjetivo de quaisquer atos é legitimado como sentido objetivo de tais atos. Se fosse de outra maneira, se o processo da fundamentação normativa da validade, tal como o processo da explicação causal — que, de acordo com o conceito da causalidade, não pode levar a qualquer termo, a qualquer causa última —, fosse sem fim, a pergunta de como devemos atuar permaneceria sem resposta, seria irrespondível. Consideramos um determinado tratamento de um indivíduo por parte de outro indivíduo como justo quando esse tratamento corresponde a uma norma por nós havida como justa. A questão de saber por que é que nós

consideramos esta norma como justa conduz, em último termo, a uma norma fundamental por nós pressuposta que constitui o valor justiça.170

É procedente (ao juízo deste expositor) a crítica do tradutor, João Baptista Machado, ao afirmar, no prefácio da última obra citada, que o grande feito e mérito de Kelsen é o de ter contribuído para o amadurecimento de um erro, transformando-o de erro indistintamente formulado, ambíguo, em erro refutável — em ter conduzido o clássico positivismo jurídico, com inteiro rigor lógico, àquela sua extrema consequência em que uma exigência de superação se torna patente. É certo, ainda, que a teoria normativista forneceu ao positivismo jurídico a sua fundamentação epistemológica, superando o psicologismo e o sociologismo de que se enfermava.

Procedente ainda se afigura a crítica de Maritain:

Nos tempos modernos fez-se uma tentativa no sentido de basear a vida da civilização e da comunidade terrena em fundamentos exclusivamente da razão — razão separada da religião e do Evangelho. Essa tentativa despertou imensas esperanças nos dois últimos séculos — mas fracassou rapidamente. A razão pura se revelou mais incapaz do que a fé de assegurar a unidade espiritual da humanidade, e o sonho de um credo “científico” que viesse a unir os homens na paz e em convicções comuns sobre os objetivos e princípios fundamentais da vida e da sociedade humana, desvaneceu-se em nossas catástrofes contemporâneas. À medida que os acontecimentos trágicos das últimas décadas provavam a falsidade do racionalismo burguês nos séculos XVIII e XIX, impunha-se-nos o fato de que a religião e a metafísica constituem parte essencial da cultura humana, e incentivos primários e indispensáveis para a própria vida da sociedade.171

Para alguns estudiosos e, entre eles, Pablo Blanco Sarto, “A pós-modernidade nos fez notar que os sonhos da razão moderna — uma razão sem religião — produziram também monstros. Auschwitz, Hiroshima, Chernobyl seriam apenas alguns nomes de certos infelizes experimentos.”172

O que não é de ser negado é que a amplitude da concepção do Direito Natural — que relega a sanção a outra instância — faz carecer de efetividade a aplicação das normas ditadas pela consciência.

170

KELSEN, Hans. A Justiça e o Direito Natural. Tradução e prefácio João Baptista Machado. Coimbra: Almedina, 2009, p. 50-51.

171 MARITAIN, Jacques. O homem e o Estado. Tradução Alceu de Amoroso Lima. 2. ed., Rio de Janeiro:

Agir, 1956, p. 128.

172

SARTO, Pablo Blanco. Discurso do papa em ratisbona: apologia da razão, dois anos depois. Pamplona, Espanha, 17 set. 2008. Disponível em: <http://www.zenit.org/rssportuguese-19497>. Acesso em: 21 nov. 2012.

Segundo Boaventura,173 o positivismo, ao declarar que é a vontade da maioria dos cidadãos a fonte formal das leis teria “entregue tudo ao arbítrio de maiorias manipuláveis quanto à composição e à natureza das leis a serem elaboradas, fizera-o baseado em erros crassos ― como, por exemplo, serem maiorias fontes necessárias de verdade”.174 E conclui:

O que realmente desejavam, e conseguiram, era empolgar as rédeas do processo histórico, de vez que os que comandam a nação pluriestatal a que já nos referimos dispõem dos meios para, pela manipulação das emoções populares, tangerem as multidões para as urnas, de sorte a fabricarem as maiorias de que precisam.175

Giordano Bruno também afirmara, séculos antes, que: “É prova de mente limitada e desprezível pensar com as massas ou com a maioria, isto simplesmente porque a maioria é a maioria. A verdade não muda porque ela é ou não é acreditada pela maioria do povo”.

Como já se escreveu, por detrás de todo o ordenamento jurídico está uma certa mundividência. Temos de admitir que, em último termo, a igualdade jurídica normativa, verdadeira ou materialmente determinismo gnosiológico jurídico, há de substanciar-se e relevar-se apenas na dinâmica da inserção dessa intencionalidade no processo histórico concreto. Há de ser essa intencionalidade normativa na sua projeção dinâmica, num esquema estratégico de realização, que nos fornecerá o termo de comparação com referência ao qual poderemos considerar duas situações como iguais. A igualdade material revela-se sempre como produto de uma integração orgânica das situações de vida na unidade de intencionalidade normativa de um ordenamento.

O nexus moralis só se ata e se discerne na perspectiva teleológica. E, com efeito, só nesta perspectiva o homem se radica ético-existencialmente — pelo que também os valores hão de surgir e avultar apenas à luz de uma teleologia, já que eles falam diretamente ao nosso destino pessoal.

A aptidão cognoscitiva do desenvolvimento natural de uma forma em direção ao seu termo perficiente supõe a superação do determinismo gnosiológico de fonte kantiana

173 BOAVENTURA, Jorge. A volta da barbárie. Folha de São Paulo, 27 jan. 2004.

174 O autor mencionado afirma: “Quando, no coroamento de um esforço multissecular, os homens fizeram

inscrever na Declaração Universal dos Direitos dos Homens e dos Cidadãos, consequente à Revolução Francesa de 1789, que ‘a lei é a expressão da vontade geral, manifestada diretamente ou por intermédio de representantes’, a que se acrescentou adiante ‘que ninguém seria obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa, a não ser em virtude de lei’, por detrás de aparência tão nobre e que hoje constitui a espinha dorsal do que vem sendo chamado de democracia ― e, já agora, tornou-se objeto de implantação obrigatória, à força, se necessário, a ser aplicado pelos da nação pluriestatal, de poderio hegemônico, constituída pelos verdadeiros bárbaros contemporâneos —, o que se fez foi desvincular a civilização da sua fonte cultural.”

pela dinamização e dialetização da epistemologia das ciências.

Na raiz do agnosticismo axiológico de Kelsen está esse determinismo gnosiológico. Tal determinismo impede a visualização do Direito Natural no seu momento instaurativo, dinâmico, para concebê-lo apenas racionalisticamente na sua estática transcensão ao Direito positivo, o que conduz Kelsen necessariamente a afirmar o caráter dualista das por ele chamadas doutrinas idealistas do Direito e a tese de que, pela aceitação de uma doutrina jusnaturalista, se conclui por recusar toda a validade ao Direito positivo enquanto tal.

Carnelutti exalta o mérito do positivismo no âmbito metodológico. Afirma que:

[...] o mérito do positivismo, tanto no campo do direito como em outro qualquer, é, sobretudo, metodológico. Não acreditar senão naquilo que se vê, era uma heresia, mas tinha, ao menos, de bom concentrar a atenção naquilo que se vê. Ora, a observação daquilo que se vê é o ponto de partida para chegar àquilo que se não vê. Neste sentido, a positividade que se encontra no coração do positivismo consolidou a base ao caráter natural do direito. E, se hoje a ciência do direito retoma, serena, ao direito natural, fá-lo com uma consciência muito mais profunda do que a que tinha antes de cair no erro. Retoma, como o filho pródigo, depois de ter andado errante cem anos; mas, se o filho pródigo, ao voltar, não estivesse melhor do que na hora da partida, a alegria do pai não teria sido aquela que o Mestre nos revelou.176

Todavia, não deixou de pugnar contra o acendrado ânimo de considerar o Direito apenas no aspecto da validade, ou seja, o Direito positivo, em si mesmo. E indicou, na obra referida, que o golpe contra essa interpretação estrita estava na própria pretensão de completude. Fez referência às lacunas da lei e à forma de colmatar essas imprevisões. Sobretudo, a invocação ao recurso à analogia e aos princípios gerais de Direito.

Esse resultado pode chamar-se, e muitas vezes se chama, codicismo. O codicismo é uma identificação exagerada ou exasperada do direito com a lei, ou, por outras palavras, uma concepção materialista da lei; poderia dizer-se a sua concepção documental: lei são as palavras escritas num documento (no código, dizia-se, e diz-se ainda); enfim, uma folha de papel escrita, e nada mais.

A manifestação culminante (ou escandalosa, se se prefere dizer) do codicismo foi a pretensão, efetivamente divulgada após a promulgação do código civil francês (o código de Napoleão), de que as leis contidas nesse código não deveriam ser interpretadas: julgava-se suficiente a sua leitura para que os homens soubessem regular-se. Corresponde a este modo de ver o fato bastante significativo de o código de Napoleão não ter previsto, já não a probabilidade, mas nem mesmo a possibilidade daquelas lacunas

176

CARNELUTTI, Francesco. Balanço do positivismo jurídico. In: Heresias do nosso tempo. Porto: Livraria Tavares Martins, 1956, p. 267-291. Disponível em: <www.berardo.cirejus.com.br>. Acesso em 21 nov. 2012.

a que nos referiremos brevemente.

Foi esse, dizíamos, o momento em que se afirmou, claramente, o que hoje se costuma chamar a instância positivista; o direito é aquilo que se vê, isto é, as leis que se lêem nos códigos ou, em geral, nos documentos em que estão escritas; tudo o mais, em particular aquela voz da consciência, de que acima falamos, se não é uma fábula, é qualquer coisa de que o jurista em geral, e o homem de ciência em particular, não deve ocupar- se.177

Para que se verifique a importância que deve ser atribuída ao Direito positivo, basta examinar o que era almejado em países que, até então, não eram democráticos (senão e apenas nominalmente).

Assim é que, na intervenção de abertura, feita pelo secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética, à XIX Conferência Nacional do referido partido, ocorrida em 28 de junho de 1988, Mikhail S. Gorbatchov disse, no capítulo “A formação de um Estado Socialista de Direito”, o seguinte:

Não posso deixar de sublinhar o interesse que suscitou o parágrafo das Teses do Comitê Central a respeito do fato de o processo de democratização consequente da sociedade soviética dever ser concluído pela criação de um Estado Socialista de Direito. Sucintamente, o

essencial, para caracterizar um Estado de direito, consiste em garantir nos fatos a permanência da lei. Nenhum órgão do Estado, nenhum

funcionário, nenhum coletivo, nenhuma organização do partido ou social, nenhum indivíduo são isentos da obrigação, que lhes é imposta, de se

submeterem à lei. Tal como os cidadãos são responsáveis para com o seu

Estado de todo o povo, o poder do Estado é responsável para com os cidadãos. Os seus direitos devem ser protegidos de maneira segura contra todo e qualquer arbítrio da autoridade e dos seus representantes.

A perestroika pôs em evidencia com particular clareza o conservadorismo do sistema jurídico em vigor entre nós, o qual, em boa parte, é de momento, centrado não em métodos democráticos e econômicos de direção, mas em métodos administrativos autoritários de chefia, combinados com numerosas interdições e uma regulamentação emaranhada. Por isso, bom número dos atos jurídicos em vigor se tornou um freio ao desenvolvimento social. [...] A renovação da legislação deve

respeitar estritamente este principio: é autorizado tudo o que não é proibido por lei.

Há que insistir na enorme importância das atividades dos órgãos judiciais. A sorte de muitas pessoas, a defesa dos seus direitos, a inevitabilidade do castigo daqueles que infringiram a lei, dependem da precisão da balança da justiça. [...]

A opinião pública exige que seja aumentada a responsabilidade motivada pela falta de respeito a um tribunal, por uma ingerência na sua atividade, e que seja garantido o mais estrito respeito pelos princípios

democráticos do processo judicial como o debate contraditório e a

igualdade das partes, o caráter público dos debates e a abertura, a

exclusão de qualquer opinião preconcebida, de toda subtração dos fatos à acusação e o respeito intocável da presunção de inocência.178 (o itálico não é do original).

Cabe recordar que, do ponto de vista do materialismo histórico, nas teses sobre o Estado, não existe um tratamento específico do Direito a ponto de fazer que ele apareça como um tema distinto do tema do Estado. Parece — segundo Bobbio — que o Direito não tem qualquer autonomia com respeito ao Estado no momento da superestrutura:

[...] como demonstra a famosa e citadíssima passagem do Prefácio a Para

a crítica da economia política, no qual Marx fala de “uma superestrutura

jurídica e política” sem distinguir as instituições jurídicas das políticas, e tratando-as portanto como unum et idem, e, como também demonstra o fato bem conhecido de que, nos juristas soviéticos e dos países socialistas, teoria do direito e teoria do Estado formam um todo único. [...] Parece que o direito, diferentemente do Estado, também pertence ao momento da estrutura econômica, isto é, seja um dos elementos que servem para caracterizar um forma de produção juntamente com as forças produtivas.179

Bobbio afirma ainda que não exclui uma teoria de justiça em Marx, para quem (como Marx escreveu, numa passagem):

“É justo aquilo que corresponde ao modo de produção [...] e injusto tudo aquilo que se encontra em contradição com ele” (Marx, 1965, p. 405) — deva ser considerado uma aplicação da redução do conceito de justo àquele de útil, feita mais com objetivos polêmicos do que para enunciar uma tese sobre justiça. Desta redução o exemplo clássico é o dito de Trasímaco – “é justo aquilo que é útil ao mais forte”, seguido por um cortejo de não sei quanto outros ditos análogos, tipo “é justo aquilo que é útil à revolução”, “é justo aquilo que é útil ao partido” etc. todos igualmente válidos em um contexto e inválidos fora de seu contexto e por isso, digamo-lo também, de escasso interesse teórico.180