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1 CONCEITUAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E DOS DIREITOS

2.4 A dignidade da pessoa humana

2.4.4 As diversas concepções da dignidade da pessoa humana Dificuldades

A história da humanidade manifesta um real progresso na compreensão e no reconhecimento do valor e da dignidade de cada pessoa, fundamento dos direitos e dos imperativos éticos, com que se procurou e se procura construir a sociedade humana. Foi precisamente em nome da promoção da dignidade humana que se proibiu todo o comportamento e estilo de vida lesivos da mesma dignidade. Assim, por exemplo, as proibições jurídico-políticas, e não apenas éticas, das diversas formas de racismo e de escravidão, das injustas discriminações e marginalizações das mulheres e crianças e das pessoas doentes ou com grave deficiência, são testemunho evidente do reconhecimento do valor inalienável e da intrínseca dignidade de cada ser humano e sinal de um progresso autêntico que percorre a história da humanidade. Por outras palavras, a legitimidade de cada proibição funda-se na necessidade de tutelar um bem moral autêntico.187

Numa sociedade desenvolvida, contemporânea, porém, o conceito é menos claro. Há várias maneiras de concepção. As respostas são diversas. Há pluralidade de visões, segundo os estamentos sociais, segundo as diversas correntes religiosas, filosóficas e jurídicas.

O princípio da dignidade humana pode justificar tudo. Quando empregados e empregadores, por negociação, fixam metas de produção para orientar a distribuição de lucros ou resultados, muitas vezes são surpreendidos com reclamações trabalhistas alegando que as referidas metas representam formas de assédio. Ações desse tipo deságuam em milionárias indenizações por dano moral. A interferência ocorre em todos os campos.188

Está claro que também com relação ao empregador — sobretudo no âmbito doméstico — há alegação de dano moral.

Elmar Altvater entende que o conceito de dignidade é “faca de dois gumes”:

187

INSTRUÇÃO “Dignitas personae”. Disponível em: <http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/ cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20081208_dignitas-personae_po.html>. Acesso em: 8 out. 2012.

O conceito de “dignidade” é uma faca de dois gumes, por isso ele não foi usado aqui (n.b.: no livro mencionado: O fim do capitalismo como o

conhecemos). Tal conceito foi introduzido pelos zapatistas no debate

político da esquerda. Foi absorvido muito rapidamente, p. ex., por Holloway (2002). O Movimiento de Trabajadores Desacupados na Argentina também segue o lema “trabalho, dignidade, transformação social” (Dinerstein, 2003). Mas o conceito também é usado por direitistas, por exemplo, para fazer uma guerra “patriótica” contra todos os que violam a dignidade do “povo sérvio”. O conceito de dignidade só é aceitável se ele se refere a todas as pessoas, não a um grupo de pessoas, quer se trate de etnias, religiões ou classes.189

A reflexão como pesquisa torna-se indispensável. Trata-se de examinar a evolução histórica e trazer lindes indispensáveis à compreensão do princípio que ora está constitucionalmente consagrado. É parte e núcleo, portanto, do Direito positivo brasileiro.

Há o desafio de examinar tanto quanto possível essa pluralidade de concepções, para conhecê-las melhor, e indicar caminhos para a viabilidade de esclarecimento do que é disposto no art. 1º da Constituição Federal.

Para alguns autores — e, entre eles, Luiz Felipe Pondé,190 este ao fazer uso de breve análise da história das origens da modernidade — o conceito (de modernidade) nasceu na época em que os filósofos (como Pico della Mirandola, no século XV) passaram a afirmar, contra a teoria do pecado original na época, que a natureza humana não era definida em princípio por pecado algum. Podia “criar a si mesma”. Na origem de tal otimismo estava na vontade de crer num homem livre e autônomo.

Vigorava, na Idade Média, o conceito derivado da teologia: o sistema medieval de pensamento estava centrado na noção de pecado. O ser humano era como os pais, Adão e Eva, orgulhosos, viciados em sexo, mentirosos, invejosos e outras coisas.

A ideia de Pico della Mirandola é fruto do processo de nascimento do mundo burguês pautado para a necessidade de crermos na capacidade livre e infinita do homem de criar e de produzir, daí que um pessimismo com relação às potências humanas seria uma má ideia, como no caso do pecado (palavras de Pondé191).

E prossegue: ciência, enquanto conhecimento seguro do futuro humano sob controle das experiências, degenerou no culto do ser humano como tendo controle do que ele é e do que ele pode vir a ser.

Esse cenário de fé no humano marcou o nascimento do Estado moderno e na sua

189 ALTVATER, Elmar. O fim do capitalismo como o conhecemos: uma crítica radical do capitalismo.

Tradução Peter Naumann. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 319.

190 PONDÉ, Luiz Felipe. Guia politicamente incorreto da Filosofia. São Paulo: Leya, 2012, p. 18. 191 Ibidem, p. 136.

burocracia de controle do cotidiano, na medida em que a experiência da organização da vida carrega em si um sentimento de potência positiva.

Giovanni Pico della Mirandola,192 com suas reflexões, marcou a transição entre a filosofia medieval e o iluminismo. A filosofia pré-moderna, tanto a do medievo quanto a socrática, identificava a dignidade ou o valor do homem com a razão, isto é, com a capacidade humana de ordenar e conhecer o que está no mundo.193

Na obra mais conhecida de Giovanni Pico della Mirandola,194 que melhor espelha suas teses, verifica-se que o autor estabelece que Deus não podia oferecer ao ser humano nada mais específico. Depois da criação das demais criaturas, os lugares do universo foram ocupados. Assim, determinou o Criador que ao ser humano fosse comum tudo o que houvera sido parceladamente dado aos outros. O homem foi criado como ser de “natureza indefinida” e colocado “no meio do mundo”.

Para realizar-se a si mesmo, para se determinar, o ser humano foi colocado no centro do mundo, em posição que lhe permite buscar o mais adequado para definir sua própria essência.195 Segundo Giovanni:

Coloquei-te no meio do mundo para que daí possas olhar melhor tudo o que há no mundo. Não te fiz celeste nem terreno, nem mortal nem imortal, a fim de que tu, árbitro e soberano artífice de ti mesmo, te plasmasses e te informasses, na forma que tiveres seguramente escolhido. Poderás degenerar até aos seres que são as bestas, poderás regenerar-te até às realidades superiores que são divinas, por decisão do teu ânimo.196

No sentido ontológico, o ser humano está no meio, para tomar qualquer direção. Pode escolher o seu caminho e a sua direção, tornando-se aquilo que quiser ser. É criatura de Deus, nada obstante o antropocentrismo. É emancipado. É livre para escolher, dentre as diversas opções e possibilidades que se lhe apresentam. Logo, tais possibilidades podem ser realizadas. Ou não. Caberá ao homem a escolha.

192 PICO DELLA MIRANDOLA, Giovanni. Discurso sobre a dignidade do homem. Tradução e introdução

Maria de Lurdes Sirgado Ganho. Lisboa: Edições 70, 2001.

193

LACERDA, Bruno Amaro. A dignidade humana em Giovani Pico Della Mirandola, Revista Legis

Augustus, v. 3, n. 1, p. 16-23, set. 2010. O autor é Mestre e Doutor em Filosofia do Direito pela UFMG.

194 Giovanni Pico Della Mirandola nasceu em Mirandola, norte da Itália, em 24 de fevereiro de 1463. Faleceu

em Florença, em 17 de novembro de 1496. Portanto, com apenas trinta e três anos. Abandonou o estudo do Direito Canônico, em Bolonha, para onde fora enviada pela genitora. Foi para Ferrara. Orientado por Battista Guarino, passou à leitura dos clássicos gregos e latinos. Residiu em Pádua, entre 1480 e 1482. Em Florença, em 1484, em contato com o platonismo, sobretudo com as lições de Marsílio Ficino, buscou a concórdia doutrinária entre os clássicos e as concepções filosóficas então vigentes. Em Paris, em 1485, passou a dedicar-se exclusivamente à filosofia.

195 LACERDA, Bruno Amaro. Op. cit.

Portanto, o ser humano, animal racional, está destinado a escolher. Encontra, então, a sua própria essência. Está acima dos animais porque a razão o impende em direção a algo que nenhum animal pode conseguir, ou seja, a determinação do seu próprio ser.

Para Maria de Lurdes Sirgado:

Tal questão inscreve-se na dignidade do homem, enquanto ser capaz de encontrar, pela razão, a íntima harmonia do universo, dominando o seu poder, colocando-o a seu serviço e desvendando os seus mais arcanos segredos. Tal concepção e magia seria a antecessora da ciência experimental moderna e da ciência tecnológica contemporânea. Daí algumas referências a Pico, antecipando intuitivamente a concepção de um homem tecnológico, enquanto defensor de uma ciência de domínio da natureza.197

Segundo Bruno Amaro Lacerda (ao estudar Mirandola), a dignidade do ser humano decorre da capacidade criadora e inovadora que o torna imagem de Deus, microcosmo que reflete, em escala menor, o poder divino da criação. Com efeito. O homem, ser livre, é capaz de atos de criação, de transformação de si mesmo e do mundo onde vive. Capacidade de autodeterminação e criação a partir da transformação da natureza. Trata-se de alcance de produção e fabricação (poésis) da razão e inteligência do homem, além do alcance ético. Em suma, a liberdade é o dom que o homem recebeu. Sua dignidade está em saber utilizar a liberdade na mutação do mundo na rota de aperfeiçoamento.

Mirandola, na transcrição de Lacerda, faz a seguinte exortação: “Que a nossa alma seja invadida por uma sagrada ambição de não nos contentar com as coisas medíocres, mas de anelar às mais altas, esforçando-nos para atingi-las, com todas as nossas energias, desde o momento em que, querendo-o, isso é possível.”198

Na realidade, há que se atentar para que toda tradição cultural e filosófica repousa na ideia de uma continuidade entre a nossa cultura, a cultura europeia moderna e a cultura antiga, que se desenvolveu em torno da bacia mediterrânea há dois ou três mil anos.199

Afirma Boulnois200 que a Idade Média constitui um aspecto essencial de nossa

197

Cf. prefácio à obra citada (PICO DELLA MIRANDOLA, Giovanni. Op. cit, p. 30).

198 LACERDA, Bruno Amaro. Op. cit., p. 55

199 BOULNOIS, Olivier. O que há de novo na Idade Média? Revista Dicta & Contradicta. Tradução de

Marcelo Consentino. São Paulo: Civilização Brasileira, n. 8, p. 10-30, dez. 2011, Civilização Brasileira, 2011. Revista do Instituto de Formação e Educação, associação sem fins lucrativos que visa a estudar, criar e divulgar no Brasil conhecimento nos campos das Humanidades, das Artes e da Filosofia. O autor é diretor de estudos da École Pratique des Hautes Études e professor do Institut Catholique de Paris. Especialista em filosofia medieval, sobretudo em Duns Scoto e Santo Agostinho. Publicou recentemente, entre muitas obras e artigos “Généalogies du sujet: de Saint Anselme à Malebranche”, Paris: Vrin, 2007 e “Au-delà de l’image”, Paris: Seuil, 2008, recebendo por este último o Grand Prix de Philosophie da Académie Frnçaise.

identidade moderna, pura e simplesmente porque é graças a ela — ao menos em Filosofia — que nós nos apropriamos do antigo. E, precisamente em razão do esquema moderno, ela constitui um continente submerso, inexplorado. Mal começamos a ver como contribuiu para nossa identidade moderna, a nossa modernidade. A Idade Média não é menos moderna que os tempos que levam o nome, mas o é de outra forma.

E — sempre segundo Boulnois — a afirmação da dignidade do homem, longe de ser uma novidade do século XVI, é tão antiga quanto o pensamento grego, sendo retomada pela teologia cristã e ilustrada pela patrística e pela teologia medieval. Houve um debate que causou furor, em torno à interpretação de Pico della Mirandola, mais sobre os motivos ideológicos dos intérpretes que sobre a obra do florentino.

As interpretações racionalistas, marxistas, existencialistas, e outras, que se referem a suposta ruptura de Mirandola, não consideram que o autor é bastante clássico. Em seu “Discurso sobre a dignidade do homem”, ele entrelaça inumeráveis citações filosóficas, patrísticas e escolásticas. Ele se apoia nos maiores teólogos escolásticos: Alberto Magno, Tomás de Aquino, Duns Scotus, etc. A dicotomia entre escolástica e humanismo é falsa. A ideia de que o humanismo foi um movimento filosófico fundamentalmente novo é contrassenso moderno.

E não há como afirmar que concepção da dignidade do homem é “resolutamente moderna”. A elaboração de uma dignidade, filosoficamente, é enquadrada por uma reflexão teológica, mais rica que nunca na Renascença, sobre a dignidade do homem em seu destino sobrenatural.

Como escreveu Boulnois,201 a variação do tema humanista tem uma estrutura e um modelo: o homem à imagem de Deus. O ser humano é um individuo universal, um individuo cuja liberdade o torna universal. Por conseguinte, a transcendência do homem é a liberdade. A célebre prosopopeia do “Discurso sobre a dignidade do homem” de Pico Della Mirandola oferece a prova:

Não te dei nem um lugar determinado, nem um rosto próprio, nem um dom particular, ó Adão, a fim de que teu lugar, teu rosto e teus dons, tu os queiras, conquistes e possuas por ti mesmo. A natureza encerra as outras espécies em leis estabelecidas por mim. Mas tu, a quem fronteira alguma limita, por teu próprio arbítrio, entre as mãos do qual de pus, tu hás de definir-te a ti mesmo. Eis que te pus no centro do mundo, a fim de que posas melhor contemplar em torno a ti tudo aquilo que ele contem. Não te faço nem celeste nem terrestre, nem mortal nem imortal, a fim de que, soberano de ti mesmo, chegues à tua própria forma livremente, à maneira

de um pintor ou escultor. Poderás degenerar em formas inferiores, como as das bestas, ou, regenerado, atingir as formas superiores, que são divinas.202

A tese de Boulnois — que também sufrago, embora sem a erudição do referido autor — é a de que não houve ruptura entre os diversos períodos da história, tanto em Filosofia como nos demais ramos do saber.

A Modernidade construiu-se a si mesma num antagonismo contra a Idade Média. Todavia, não teria sido possível sem ela. O filósofo sabe hoje que as filosofias modernas da consciência, longe de destronarem a metafísica medieval, apoiam-se de fato sobre as estruturas metafísicas elaboradas durante a Idade Média.

A filosofia medieval nos traz uma atenção particular à linguagem, uma vez que, na esteira de Aristóteles, todos os autores medievais consideram que a filosofia repousa sobre as artes da linguagem, que toda a tese filosófica pertence a uma teoria de enunciados. Segue o autor203 afirmando que, ao reencontrar a tradição anterior às filosofias da consciência, damos com uma das grandes preocupações da filosofia analítica: considerar o pensamento como um sistema de jogos de linguagem. Estudar a Idade Média, enfim, não é simplesmente entregar-se a considerações inaturais, mas sim municiar-se dos meios para superar a crise dos conceitos fundamentais da Modernidade, a crise da própria filosofia contemporânea.

Claro está que, tais considerações, apropriadas, especificamente, para a Filosofia, são aplicáveis também ao Direito. São categorias similares, senão idênticas, quanto às ciências especulativas, de especial compartilhamento de conceitos. Também é evidente que os institutos e ramos do Direito passaram a novas definições, com a modernidade. Outros institutos foram criados, porém, sem o rompimento específico com os princípios oriundos da idade anterior, sobretudo e máxime com relação ao Direito romano.

A concepção oriunda desse otimismo inicial alcançou Hobbes e Rousseau, quando passaram a indagar sobre a natureza humana e suas possibilidades políticas de organização, ou no contrato social. Para Rousseau, a natureza é pura porque o homem nasce bom.

O antropocentrismo — que é originário, em larga escala, da pré-modernidade — foi levado ao paroxismo nos tempos atuais. Leva à destruição do próprio habitat. Como escreveu Graziano:

202

BOULNOIS, Olivier. Op. loc. cit. A transcrição, como se vê, é pouco mais extensa do que aquela que foi anteriormente (e acima) referida e mencionada em outra obra.

O intelecto, alimentado pela ciência, livrou o homem do desígnio divino, subjugado pela natureza bruta. Seu destino começou a ser moldado com a ajuda da tecnologia, representando [...] passo fundamental da civilização. A revolução tecnológica combinada com a explosão populacional gerou, séculos depois, um crescimento econômico agressivo aos recursos naturais. O homem, que pensava tudo poder, começou a sofrer as conseqüências da destruição de seu próprio habitat. [...].

Os problemas ecológicos afetam, e comprometem, isso sim, o futuro da humanidade. A pressão sobre os recursos naturais, se continuar aumentando, trará revezes na qualidade da existência humana.204

Para o referido autor, querer “salvar o planeta” exibe uma soberba incomparável na história da humanidade. Tal ideia, absurda, radicaliza a visão antropocêntrica, creditando- se ao ser humano uma prepotência acima de qualquer outra atribuída a ele, dono do universo e dos planetas.

Pela abundância, apenas, é oportuna a reflexão e o apelo para que haja atenção para o meio ambiente, como escreveu Novais:

No momento em que tantos estudos mostram o momento difícil que vivemos por causa das várias crises globais, incluindo a da finitude de recursos naturais, é preciso entender muito mais não apenas da relação humana com os ecossistemas, biomas, áreas específicas, mas também do significado, em cada um deles, das muitas espécies, sua importância para a conservação — e para a sobrevivência humana. É espantoso: na hora em que cientistas afirmam que toda a superfície de gelo acumulada no Ártico pode derreter-se (nos meses de verão) em quatro anos (guardian.co.uk, 17/9), liberando quantidades assombrosas de metano acumuladas sob a camada até aqui permanente, é preciso ter consciência da gravidade da situação. E da necessidade de levar os comportamentos sociais a serem adequados às novas questões.205

São numerosos os exemplos de atuação política que geram perplexidade, nesse âmbito.

Eliana Cardoso206 faz referência a três posições éticas importantes no mundo moderno: o consequencialismo, o kantismo e o contratualismo. É tentativa da Filosofia de sistematizar regras oriundas de nossas intuições morais. Indica que crenças comuníssimas, como no dever de cuidar dos filhos, honrar promessas e não matar, mesmo que o assassinato nos traga lucro, são realmente tão comuns que parecem confirmar a

204 GRAZIANO, Xico. Profetas do apocalipse. O Estado de São Paulo, 26 jun. 2012. 205

NOVAIS, Washington. Aprendendo com formigas e cupins. O Estado de São Paulo, p. A2, 28 set. 2012.

206 CARDOSO, Eliane. Vale tudo: moralidade e filosofia. O Estado de São Paulo, 27 jun. 2012. A autora é

objetividade da intuição moral, independentemente das circunstâncias históricas e sociais. E prossegue:

Situações mais complicadas testam essa objetividade. Como você responderia à seguinte questão? Você acionaria um interruptor, redirecionando um trem desgovernado, para salvar cinco pessoas numa pista, embora soubesse que, na outra pista, uma pessoa morreria em consequência da sua decisão? Um grande número de pessoas responde sim a essa pergunta. Mas o que você diria se a escolha fosse empurrar para a morte um homem da plataforma da estação, de forma a acionar o freio automático do trem, para salvar outras cinco pessoas? A maioria das pessoas acha que isso seria errado. Qual a diferença entre os dois atos?207

Os consequencialistas não encontram diferença em ambas as situações. As regras morais são efeitos dos nossos atos. Salvar o maior número de vidas possível não seria justificativa suficiente para matar um paciente para retirar os órgãos que salvariam cinco vidas. Seria repugnante a sociedade na qual os médicos podem matar um paciente para salvar outros.

Na ordem do “consequencialismo” há a corrente do utilitarismo, de longa vida na história. Henry Sidgwick, filósofo britânico, afirma que ações e leis são corretas na medida em que maximizem o bem-estar comum. A teoria econômica da “escolha racional” é variação da corrente.

O critério para a ética, de Kant e do contratualismo, não admite a ordem do consequencialismo porque é dever incondicional a obediência à moralidade, quaisquer que sejam nossos desejos e interesses. O “imperativo categórico” kantiano “estabelece nunca tratar o outro apenas como meio, mas sempre como fim em si mesmo”.

A autora assim encerra suas considerações:

Em Uma Teoria da Justiça (1971), John Rawls estabelece os princípios do contratualismo moderno. Por meio de um experimento mental, ele deriva as regras justas para a sociedade. Elas resultam do acordo unânime entre pessoas livres, sob um “véu de ignorância”, que não lhes permite conhecer os fatos de seu nascimento, porque eles poderiam influenciar a posição do indivíduo na sociedade e, portanto, suas decisões. T. M. Scanlon, filósofo de Harvard, modifica o contrato social de Rawls e o aplica aos direitos individuais. O contratualismo de Scanlon diz que devemos honrar as nossas promessas e agir para não prejudicar os outros. Ele se aproxima de Kant: o certo e o errado resultam do reconhecimento do estatuto de igualdade entre as pessoas.

Ao pensar a ética como fundamentada nas relações entre pessoas e como