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1 CONCEITUAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E DOS DIREITOS

2.2 O Direito Natural na Patrística e na Escolástica

2.2.4 Direito Natural: a relevância do princípio da dignidade da pessoa humana

No contexto da concepção do Direito Natural, é de se reafirmar a importância do princípio da dignidade da pessoa humana. Tal princípio encontra fundamento no que se conheceu como Direito Natural, anteriormente à positivação da Declaração de 1789.

Preleciona Maria Cristina Irigoyen Peduzzi que cabe referência à Encíclica Rerum Novarum, “considerada a sua importância como instrumento de valorização do trabalhador, no contexto da Revolução Industrial”.140 Claro que limitada ao âmbito religioso. Mas de inegável repercussão geral inclusive nas concepções doutrinárias e no Direito positivo das nações então vigentes.

Os efeitos nefastos das revoluções industriais — no sentir da autora —, sobretudo a precariedade das condições de trabalho dos operários, exigiu a edição da encíclica, “conforme o ideário político liberal do seu tempo, propugnando direitos sociais mínimos”.

O homem econômico se orienta para a utilidade (ophélimos) que é valorizada nos diversos momentos e em ambientes diversos: valoração esta quantitativa, mas que deve estar subordinada a outra valoração qualitativa; em torno da qual é estabelecida a diferenciação fundamental de endereço prático e da doutrina.

Em percuciente análise, esclarece Mangano141 que a doutrina liberal considera o cumprimento do contrato econômico como fato que se exaure em si. Logo, não tem em conta outros elementos, sobretudo o substrato ético, do qual a escola social cristã toma o movimento. Tal escola considera sempre a natureza ética do sujeito (e também do objeto, no contrato de trabalho) e da eticidade do sujeito deduz a norma necessária para que o ato econômico, jurídico, político, não cause ofensa à suprema lei ética, mas antes com esta permaneça em conformidade, tanto quanto possível.

A lei hedonística de procurar a maior vantagem com o mínimo esforço é considerada prescindindo de todo e qualquer valor ético, ao qual o homem econômico não deve ser subtraído. Em nada difere da tese socialista da “maximização da utilidade” proclamada no Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels. Contudo, se deve reconhecer que a lei hedonística permanece lei fundamental do fato econômico enquanto resultado, produto, uma utilidade que está economicamente medida segundo seja obtido o

140 PEDUZZI, Maria Cristina Irigoyen. O princípio da dignidade da pessoa humana na perspectiva do

Direito como integridade. São Paulo: LTr., 2009, p. 25.

141 MANGANO, Vincenzo. Il pensiero Sociali e Político di Leone XIII. Isola Del Liri, Itália: Soc. Tip. A.

máximo, ou médio, ou mínimo meio. Este mínimo no foro externo, ou seja, em face da sociedade civil, deve conservar o caráter de meio legal; mas no foro interno, ou seja, no campo da consciência, deve satisfazer a exigência do justo e do honesto. Significa que deve não ter superado os limites do respeito ao fundamental direito do outro.

A doutrina leoniana, com a necessária ampliação e aplicação exigida pelas novas condições, coincide com a doutrina tomística e aquela dos escritores escolásticos, das quais é derivada.

O ser humano, enquanto tal e porque tal, não poderia ser medido com régua idêntica à dos demais viventes sem diminuição do seu valor sociológico e da sua dignidade ética. Isto porque há um sistema de Direito aplicável ao ser humano, que decorre tão somente da sua humanidade, sistema este bastante diverso e muito mais amplo do que aquele que (admitindo-se que se possa falar de Direito relativo aos seres irracionais) possa ser atribuído e reconhecido a todo vivente e que não vai e não pode ser outro senão o do imediato direito à vida, vale dizer, à conservação desta, também com a forma compreensiva da reprodução.

Como o ser humano tem uma finalidade que deve ser alcançada e uma função para preencher, que não é material, é necessário que lhe sejam asseguradas todas as condições e todas as possibilidades por essa exigência: condições e possibilidades que, relativamente ao sujeito, tornam-se matéria e objeto de direito natural subjetivo, ao qual não há o direito de renúncia, mesmo que para o fim de ordem mais elevada, e menos ainda de alienar, e ainda de limitar o dos outros ou de privar ou limitar de quem quer que seja.

Prossegue Mangano afirmando que o mesmo “jus persistendi in esse suo”, que compreende o mínimo e fundamental termo da expressão para todos os viventes, quando se trata do ser humano, ressente-se da extensão e ampliação da natureza peculiar do homem e compreende imediatamente o direito ao progresso, ao buscar melhoria, que se encontra sobre a linha que conduz ao fim imediato e à ordem superior dessa mesma finalidade.

A objetividade do autor já mencionado encontra-se nas afirmações seguintes.

Trata-se, então, relativamente ao terreno prático da aplicação, de precisar quais são esses direitos naturais do ser humano com referência ao indivíduo e, portanto, na referência desses em face da sociedade doméstica, da sociedade civil e da sociedade política.

Gioacchino Pecci (Leão XIII) não demorou a enfrentar essa obra grandiosa e difícil, para precisar ao século XX todos aqueles conceitos éticos e toda aquela doutrina que no pensamento católico vinham sendo formuladas e desenvolvidas, para esclarecer ainda mais, especialmente em confronto com toda aquela série de erros e desvios, que, do século

XVI até nossos dias, se sucediam com negação, ofensa e limitação dos direitos dos indivíduos.

A noção fundamental desses direitos naturais do indivíduo importa imediatamente outra, de igual condição, da possibilidade de exercitá-los, de modo que ao fim desse primeiro e remoto momento conceitual encontramos a igualdade, que é igualdade de direito e que corresponde a uma desigualdade de fato. Esta só é, portanto, admissível no terreno jurídico e ético desde que não venha a constituir-se em dificuldade gravíssima ou impedimento invencível para se conseguir, por ordem da finalidade, aquele melhoramento ao qual qualquer individuo tem direito.

Diz o Catecismo da Igreja de 1992 sobre a lei moral natural:

1954 - O homem participa da sabedoria e da bondade do Criador que lhe confere o domínio de seus atos e a capacidade de governar-se com vistas à verdade e ao bem. A lei natural expressa o sentido moral original que permite ao homem discernir mediante a razão o que são o bem e o mal, a verdade e a mentira:

A lei natural está inscrita e gravada na alma de todos e cada um dos homens porque é a razão humana que ordena fazer o bem e proíbe pecar... Mas esta prescrição da razão humana não poderia ter força de lei se não fosse a voz e o intérprete de uma razão mais alta a que nosso espírito e nossa liberdade devem estar submetidos. (Leão XIII, enc. “Libertas

praestantissimum”).

1955 - A lei “divina e natural” (GS 89) mostra ao homem o caminho que deve seguir para praticar o bem e alcançar seu fim. A lei natural contém os preceitos primeiros e essenciais que regem a vida moral.

De conformidade com a publicação do jornal L’Osservatore Romano, de 6 de fevereiro de 2004, na audiência que concedeu à Congregação para a Doutrina da Fé, o Papa João Paulo II destacou a necessidade de recuperar a importância da lei natural como fonte de certeza moral para toda a humanidade.

Segundo o Papa, a lei moral natural “pertence ao grande patrimônio da sabedoria humana, que a Revelação, com sua luz, tem contribuído para purificar e desenvolver ulteriormente”. “A lei natural, acessível por si mesma a toda criatura racional, indica as normas primeiras e essenciais que regulam a vida moral”, acrescentou.142

O Pontífice lembrou que “hoje, como conseqüência da crise da metafísica, em muitos ambientes já não se reconhece que haja uma verdade gravada no coração de todo

142 JOÃO PAULO II. Discurso aos participantes na Sessão Plenária da Congregação para a Doutrina da Fé.

L’Osservatore Romano, n. 47, 6 fev. 2004. Disponível em: <http://www.vatican.va/holy_father/

john_paul_ii/speeches/2004/february/documents/hfjp-ii_spe20040206_congr-faith_po.html>. Acesso em: 21 nov. 2012.

ser humano”. “Assistimos por um lado à difusão entre os fiéis de uma moral de caráter fideísta, e por outro, falta uma referência objetiva para as legislações que freqüentemente se baseiam somente no consenso social”, explicou.143

O Papa convidou a promover “iniciativas oportunas a fim de contribuir para uma renovação construtiva da doutrina sobre a lei moral natural, buscando também convergências com representantes das diversas confissões, religiões e culturas”.144

A crítica contundente que se costuma formular a propósito da concepção eclesiástica do Direito Natural é exposta por Luiz Felipe Pondé:

É comum apontar para uma crise na “qualidade intelectual” das camadas recém-chegadas ao clero, e muitos afirmam que essa “carência intelectual” serve à revolução conservadora estabelecida desde 1978. Em meio a escândalos de pedofilia e posturas intransigentes com relação a “evidentes avanços modernos” (direito ao aborto, ao uso de contraceptivos, ao casamento do clero, à “eutanásia carinhosa”, à abertura para o outro, etc.), a igreja estaria imersa num momento de escuridão. Muita gente bem intencionada e com razoável repertório cultural percebe que a Igreja Católica e seu oficialato está aquém das demandas de um mundo que se revira no abismo de mudanças vertiginosas, oferecendo nada mais além de variedades de “marxismo à la Cristo” ou de “aeróbicas de Jesus”, fincada numa espiritualidade preocupada com o “marketing do contentamento”.145

Pondé acrescenta que a “pobreza de espírito” não é exclusiva daqueles que atuam frente à Igreja católica, mas que esse fato pode ser constatado em qualquer instituição que apresente vocação formadora, seja ou não de caráter religioso. Para Pondé, o problema não é desta ou daquela religião, mas reside na “grosseira e risível ideologia da felicidade”, da qual padeceriam desde o metafísico até o professor, passando pelo psicoterapeuta — “todos querem agradar”, completa:

É como se o árduo trabalho da inteligência estivesse órfão. Talvez fosse interessante pensar que o freio que parece ter significado este longo papado (na realidade, tudo que se refere à Igreja Católica e seus 2.000 anos pede cuidado e lentidão na apreciação dos fatos) representa um excelente momento para nos indagarrmos sobre algumas dessas “obviedades conservadoras”, principalmente quando grande parte das atitudes “progressistas” fazem uso da mesma violência ideológica discriminatória no plano da militância.146

143 JOÃO PAULO II. Discurso aos participantes na Sessão Plenária da Congregação para a Doutrina da Fé.

Op. cit.

144

Ibidem.

145 PONDÉ Luiz Felipe. Momento pode expor progressismo risível. Folha de São Paulo, 4 abr. 2005. 146 Ibidem.

Entre as correntes que digladiam, o autor indicado afirma que vivemos num mundo dramático. E os adeptos das diversas opções não apresentam qualquer linha de pensamento ou sistema filosófico apto a fundamentar soluções. Conclui que a tendência é ficar na anomia ou no ecletismo retórico. Ou assumir que não dá para fazer diálogo só em festa.