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1 CONCEITUAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E DOS DIREITOS

2.3 O positivismo jurídico e o Direito Natural

2.3.2 Direito Natural: a modernidade e o período precedente

A concepção jurídica da Idade Média estava fundamentada, essencialmente, na concepção do Direito, em sua fonte divina.

Assim, aos poucos, surgiu a necessidade de encontrar fundamento natural, secularizado e nacionalizado, de forma a fornecer base sólida, tanto quanto a que constava do conceito que até então vigia, ou seja, esteio na divindade.

Para Habermas, “A história da teologia cristã na Idade Média, especialmente a escolástica tardia espanhola, pertence naturalmente à genealogia dos direitos humanos”154 (itálico nosso).

Após o exame de algumas obras, encontro em manifestação eclesiástica um dos enunciados sintéticos que esclarecem os postulados básicos do Direito Natural, assim como a distopia/confronto das noções de Direito Natural e positivismo. A transcrição ad litteram afigura-se indispensável:

A concepção positivista do direito, juntamente com o relativismo ético, não só privam a convivência civil de um seguro ponto de referência, mas aviltam a dignidade da pessoa e ameaçam as próprias estruturas fundamentais da democracia. Estou persuadido de que, com coragem e clarividência, cada um saberá realizar o que lhe é possível, a fim de que as leis civis respeitem a verdade da pessoa, a sua realidade de indivíduo inteligente e livre, como também a sua dimensão espiritual e o caráter transcendental do seu destino.

A centralidade da pessoa humana no Direito é expressa eficazmente pelo aforismo clássico: “Hominum causa omne ius constitutum est”. Isto equivale a afirmar que o Direito é tal se e na medida em que tiver como próprio fundamento o homem na sua verdade. Quem é que não vê como este princípio basilar de todo o justo ordenamento jurídico é seriamente ameaçado por concepções redutivas da essência do homem e da sua dignidade, como o são as de inspiração imanentista e agnóstica? Concepções semelhantes ofereceram, no século que se está para concluir,

154 HABERMAS, Jürgen. Os secularizados não devem negar potencial de verdade a visões de mundo

legitimação a graves violações dos direitos humanos, em particular do direito à vida. [...]

Os postulados do Direito natural são válidos, com efeito, em todos os lugares e para todos os povos, hoje e sempre, porque são estabelecidos pela recta ratio na qual, como explica S. Tomás, reside a essência do Direito natural: “Omnis lex humanitus posita intantum habet de ratione

legis, inquantum a lege naturae derivatur” (Summa Theol., I-II, q. 95, a 2)

(AAS 86 [1994], 248). Este conceito já fora compreendido muito bem, precedentemente, pelo pensamento jurídico clássico. Cícero assim o exprimia: “Est quidem vera lex recta ratio, naturae congruens, diffusa in

omnibus, constans, sempiterna quae vocet ad officium iubendo, vetando a fraude deterreat, quae tamen neque probos frustra iubet aut vetat, nec improbos iubendo aut vetando movet” (De repubblica, 3, 33; LACT. Inst.

VI, 8 6-9).

Os elementos constitutivos da verdade objetiva sobre o homem e sobre a sua dignidade arraigam-se profundamente na recta ratio, na ética e no direito natural: são valores que precedem todo o ordenamento jurídico positivo e que a legislação, no Estado de direito, deve tutelar sempre, subtraindo-os ao arbítrio das pessoas individualmente e à arrogância dos poderosos.155

Um dos princípios em que o conceito de Direito Natural da pré-modernidade está assentado — senão o único princípio, fundamental — é o de que o homem é naturalmente capaz de conhecer determinado procedimento (ou ação) como verdade, isto é, aquilo que o homem conhece e assimila independentemente de qualquer esforço de aprendizado formal. Portanto, também sabe o que é justo porque a noção do reto e do justo é aptidão natural do homem.

O Direito Natural é proveniente da natureza racional das coisas. Seu conteúdo independe, em princípio, da vontade humana. Isto porque a vontade e o agir humanos estão incorporados à ordem natural das coisas por concepção divina.156

A pergunta essencial — como adverte Bobbio157 — consiste em esclarecer o que se entende por natureza (o que é a natureza?).

A resposta é examinada através do estudo de três definições: a de Aristóteles; outra, de Tomás de Aquino; e, a última, de Hobbes. São três períodos importantes para a história da Filosofia (e do Direito) e trazem três conceitos essenciais para exame das relações entre Direito Natural e Direito positivo.

155

JOÃO PAULO II. Discurso aos participantes no simpósio sobre “Evangelium vitae e Direito”, 24 maio 1996. L’Osservatore Romano, n. 22 (1.382), p. 8-9 (272-273).

156 NUNES, Cláudio Pedrosa Nunes. A supremacia do Direito Natural e a pirâmide normativa kelseniana.

Revista Complejus. Natal, v. 1, n. 1, p. 30. O autor é Juiz do Trabalho Substituto da 13ª Região. Doutor em

Direito do Trabalho e Seguridade Social pela Universidade de Salamanca.

157 BOBBIO, Norberto. Locke... Op. cit., p. 27 et seq. Cf. o capítulo “Algumas observações sobre o conceito

A distinção entre direito natural e direito positivo tem a ver, segundo a doutrina de Aristóteles, sobretudo com respeito ao seu conteúdo. Na doutrina de Santo Tomas, essa distinção concerne principalmente ao autor. Na doutrina de Hobbes, especialmente à função.158

Para os objetivos deste trabalho, urge estabelecer o conceito do segundo período, já referido.

Na Idade Média, considerava-se a natureza como produto da inteligência e da potência criadora de Deus: é categoria abrangente, portanto, reunindo tudo que não depende do homem.159 E o Direito Natural é tanto a lei inscrita por Deus no coração humano como o é a lei comunicada aos homens por Deus, por meio da razão.

A exposição clássica do conceito de Direito Natural, deste período, é a da Summa Theologica (q. 91). Quatro são as formas de lei:

1. aeterna; 2. naturalis; 3. humana; 4. divina.

A primeira é a razão divina, que governa o mundo; a segunda é a manifestação daquela, lex aeterna, no ser humano, criatura dotada de razão. Há um preceito único e genérico: bonum faciendum, male vitandum.160 Pela razão, o ser humano deduz todos os outros.

A lex humana (humanitas posita) é constituída de todos os preceitos particulares, elaborados para diferentes situações criadas no relacionamento entre os seres humanos, todos originados da lei natural.

O Direito positivo é o desenvolvimento interno, adaptação gradual à situação

158 BOBBIO, Norberto. Locke... Op. cit., p. 32.

159 É indispensável anotar que Bobbio, na obra mencionada, esquematizou o conceito. Estabeleceu que, nos

primórdios da especulação, pelo homem primitivo, quando ele começa a tomar consciência de sua posição no mundo, uma das primeiras descobertas que faz é justamente que todos os seres e todos os eventos podem ser divididos em duas grandes categorias: 1) A primeira, englobando tudo o que existia antes do homem e que continuará a existir sem o homem — como o Sol, as estrelas, a Terra, as plantas, os rios —; 2) A segunda diz respeito às coisas que só existem porque foram produzidas pelo homem: as casas, as armas, os utensílios, as roupas. Natureza, portanto, é o conceito generalíssimo que serve para designar tudo o que pertence à primeira categoria, em contraposição aos conceitos de arte ou de técnica.

160 E sobre este se fundamentam todos os demais preceitos das leis da natureza, pois tudo o que deve ser feito

ou evitado, segundo a razão prática dos homens, está sujeito aos seus princípios. “Et super hoc fundantur

omnia alia praecepta legis naturae, ut silicet omnia illa facienda vel vitanda pertineant ad praecepta legis naturae, quae ratio practica naturaliter apprehendit esse bona humana.”

concreta, já que todos os aspectos do procedimento estão submetidos à lei natural.

Finalmente, cumpre trazer a lição de Bobbio161 quanto ao aspecto essencial que confronta a doutrina positivista do Direito e a lei natural.

Para a corrente positivista, a lei positiva é válida ainda que não seja justa. Para o jusnaturalismo, ora sob exame, para ser válida a lei positiva deve também ser justa, adequada à lei natural.

A condição de validade da lei positiva é a sua adequação ao Direito Natural. Esta é a distinção básica entre o Direito positivo e o jusnaturalismo de que se trata, e, ainda, em confronto com as subsequentes concepções naturalistas.162

Resumindo o pensamento de Hobbes sobre a validade da lei natural e da lei civil, Bobbio afirma163 que a lei natural põe toda a sua força a serviço do Direito positivo e, desta forma, morre ao dar à luz o seu filho.

Hobbes assim distingue os vários tipos de leis:

Todas as leis podem ser divididas, em primeiro lugar, em leis divinas e humanas. As leis divinas são de duas espécies, conforme os dois modos como Deus pode manifestar sua vontade aos homens: natural (ou moral) e positiva. Natural é aquela que Deus manifestou a todos os homens por meio da sua palavra eterna, neles inata, isto é, por meio da razão natural. Positiva é aquela que Deus revelou mediante a lavra dos profetas [...] Todas as leis humanas são leis civis.164

O Renascimento e, sobretudo, o período subsequente, procurou fundar o Direito (Natural) na visão idílica do bom selvagem, ou seja, na própria natureza, concebida como espécie de paraíso terrestre. E independentemente da atuação da recta ratio. A partir do século XVIII, nos albores do espírito moderno, manifestou-se fonte mais estreita, o indivíduo.

Segundo Alceu Amoroso Lima,165 Rousseau (1712-1778) e Kant (1724-1804) foram os primeiros e grandes precursores imediatos do materialismo jurídico, que se iniciou por essa individualização do conceito de Direito.

A influência histórica da teoria do contrato social foi incomensurável, embora tenha

161 BOBBIO, Norberto. Locke... Op. cit., p. 39.

162 Qualquer lei estabelecida pelos homens é autêntica na medida em que deriva da lei da natureza: se

discordar desta, já não será uma lei, mas corrupção da lei. “Omnis lex humanitas posita intantum habet de

ratione legis inquantum a lege naturae derivatur; si vero in aliquo a lege naturali discordet, iam non erit lex, sed legis corruptio.”

163 BOBBIO, Norberto. Locke... Op. cit., p. 44. Cf. o capítulo “O Direito Natural segundo Hobbes”. 164

HOBBES, Thomas. De cive. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 181, apud BOBBIO, Norberto. Locke... Op. cit., p. 41.

falhado ao seu objetivo de construtora do Estado (segundo Jellinek).

A ideia de contrato social, de secundária que era, tornou-se fundamental em Rousseau. A teoria do consensualismo jurídico alcançou a repercussão mais ampla e a expressão mais pura. Na liberdade natural, o ser humano desconhecia regras de justiça. A associação originou o Direito, como livre criação da vontade dos indivíduos. Livremente decidiram a submissão à vontade coletiva, “vontade de todos”, vontade geral, ou vontade do povo.166

O predomínio absoluto da razão subjetiva, como única forma do Direito, é a manifestação do individualismo jurídico, em Kant. O mundo moral e jurídico gira em torno da liberdade. Esta é o único “direito inato” do homem.

O Direito Natural (Kant) repousa sobre o conceito de liberdade individual e está, como amoral, subordinado à sua concepção geral da autonomia da razão e da vontade, independentemente de qualquer finalidade.

Para Amoroso Lima,167 a origem consensual da sociedade — e o estado pré-jurídico, como foi estabelecido por Rousseau — e a “escola de Direito Natural” são aceitos por Kant, que atribui ao Direito uma origem também racional, e não apenas consensual.

Kant foi o “primeiro grande sistematizador” do esvaziamento do Direito de seu conteúdo espiritual superior, desespiritualização jurídica esta que foi ampliada no século XIX. E, desse tronco comum que era o Direito Natural autônomo, individualizado e arrancado das fontes originárias, estas de referência à instância da divindade, é que tiveram origem as demais correntes.