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1 CONCEITUAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E DOS DIREITOS

2.2 O Direito Natural na Patrística e na Escolástica

2.2.2 Direito Natural: concepção dos autores mencionados

Em linhas gerais, a decorrência da criação divina (nunca é demasiado utilizar o pleonasmo: realizada por Deus), a partir do nada, por livre e soberana manifestação da Sua vontade, os fatos naturais e suas leis são entendidos como integrando um plano divino supremo para a realidade criada em seu conjunto.128

Assim, há um destino sobrenatural para o universo e para o homem (nos termos doutrinários católicos). À indagação de como, no período anterior ao do Iluminismo, era enunciada a assim chamada lei moral natural, responde-se com a visão dos então doutores da Igreja.

Santo Agostinho, o bispo de Hipona, defendia a existência de normas de caráter universal; utiliza a expressão “lei eterna” para se referir à lei moral natural que se encontra gravada no coração de todos os homens. A lei eterna manda conservar a ordem natural e proíbe perturbá-la. As leis temporais, ou civis, devem fundar-se nas leis eternas, respeitando-as.

São Tomás de Aquino, afirma a existência de uma lei universal que regula o comportamento de todos os seres, incluindo o comportamento humano. O homem, em decorrência da liberdade de sua vontade, está submetido também às leis morais, as quais na

127 BROOKS, David. Os santos capitalistas. O Estado de São Paulo, Economia, 18 dez. 2005. O autor é

colunista do jornal The New York Times.

128 JOBIM, Everton. Teoria política e sociológica. Disponível em: <http://politicasociologia.blogspot.com.br

sua totalidade são denominadas “Lei Natural”.

O Aquinate afirma que o ser humano, como qualquer ser, tem certas tendências inerentes à sua natureza. Tomás busca a síntese de Aristóteles. O homem distingue-se dos demais animais pela faculdade da razão, e por ser capaz de reconhecer as suas próprias tendências naturais e de procurar adequar a sua conduta às mesmas.

Nessa ordem, são três os princípios que informam a Lei Natural: a conservação da existência (e a reprodução), o conhecimento da verdade e a necessidade da vida em sociedade. A partir desses princípios, resulta um conjunto de normas complementares que devem ser codificadas pela lei civil.129

Os homens, não obstante, no uso indevido da vontade, podem contrariar a lei moral e incidir no que se conhece como pecado. Tanto em termos individuais quanto em termos coletivos.

Consoante Tomás de Aquino, as leis civis sujeitam-se aos preceitos do Direito Natural (expressão da natureza racional do homem). As leis civis devem estar em harmonia com as leis de Deus inscritas na realidade criada.

Na existência de conflito entre ambos, existe o direito de resistência, a reivindicação pelos homens de seus direitos naturais frente à arbitrariedade dos governantes. Ou seja, a exigência de elaboração e aplicação de leis civis compatíveis com a dignidade humana é, portanto, possuidora de legitimidade moral.

A Lei Natural, enquanto princípio ordenador da conduta humana, está em harmonia com a ordem geral do universo, baseada, em última instância, na Lei Eterna ou Divina. Nos Dez Mandamentos Deus confirma a existência da Lei Moral Natural que assume contornos de Lei Transcendente ou Revelada.

A Lei Moral Natural enuncia os seguintes princípios: a existência da família como sociedade natural; o direito à constituição de família pelo indivíduo; o respeito aos pais e aos mais velhos; o respeito ao próximo e a seus direitos; a existência do Estado; o Estado como a mais perfeita das instituições naturais; a obrigação do Estado de zelar pela paz, promover a justiça, a moral e o bem comum; o direito à vida da pessoa humana; o direito à propriedade; o direito de professar fé religiosa; o direito de defender-se de agressões e violações de direitos individuais e coletivos; e o respeito às autoridades civis.

Toda sociedade possui um grau de liberdade para organizar suas leis civis. Entre as

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JOBIM, Everton. Op. cit. Tais conceitos são ministrados pelo professor Everton Jobim. É professor de Ciência Política e Antropologia Social do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro e da Fundação Ford. São aqui admitidos em face da clareza e objetividade com que foram enunciados.

Leis Naturais e as leis civis existe efetivamente um grau de autonomia e liberdade, mas há limites que a lei civil deve respeitar obrigatoriamente. O Direito positivo, assim, exige (nos termos da conceituação escolástica) ponderação sobre o valor moral das leis e das instituições sociais e políticas que são elaboradas.

Todos os homens, independentemente de religião, raça, sexo ou demais diferenças devem respeitar a Lei Moral Natural, como forma de obedecer a Vontade de Deus e, assim, permitir a consecução digna da vida humana em sociedade. A Igreja admite que aquelas pessoas que nunca tenham ouvido falar de Cristo, caso tenham vivido segundo a Lei Moral Natural, ou seja, sob princípios éticos, amando a Deus e fazendo a caridade, podem encontrar a salvação, através do fenômeno extraordinário do “batismo de desejo”. Elas não têm culpa própria por não conhecer e, consequentemente, não acolher a mensagem salvífica de Cristo.

Nos documentos oficiais da Igreja, sobretudo na Constituição do Concílio Vaticano II sobre a Igreja no mundo de hoje, conhecida como “Gaudium et Spes”, a questão é apresentada nos termos seguintes:

16. No fundo da própria consciência, o homem descobre uma lei que não se impôs a si mesmo mas a qual deve obedecer; essa voz, que sempre o está a chamar ao amor do bem e fuga do mal, soa no momento oportuno, na intimidade do seu coração: faze isto, evita aquilo. O homem tem no coração uma lei escrita pelo próprio Deus; a sua dignidade está em obedecer-lhe, e por ela é que será julgado.130

O que diferencia a Lei Natural e a Lei Moral Natural da Lei Divina é a forma da revelação. A Lei Natural, ainda que também criação divina, é acessível ao conhecimento puramente natural do homem, ao passo que a Lei Sagrada é tornada conhecida por revelação sobrenatural, ou seja, é necessária a ação divina para que o homem possa conhecê-la. Nem tudo que é revelado na Lei Divina é diferente do que o homem já conhecia através da Lei Natural. O objetivo da reiteração é reafirmar a vontade divina manifestada na criação da lei e dos determinismos naturais, para que não haja dúvidas quanto aos propósitos divinos inscritos na Lei Natural.

Para Reale, com Tomás de Aquino:

[...] aperfeiçoa-se a teoria da justiça em termos de Direito Natural, tal como já havia sido formulada por Aristóteles em razão do binômio bom –

130 PAULO VI. Gaudium et Spes: Constituição Pastoral do Concilio Vaticano II sobre a Igreja no mundo de

justo, assinalando esses termos uma correlação essencial, visto como o

homem somente deve agir de conformidade com o que lhe parece justo como expressão em si do bem e, notadamente, do bem de todos que é o objeto da Política, assim como a virtude de justiça é o elemento fundamental da Ética.131

Os padres da Igreja em geral adotam a ideia estoica segundo a qual a natureza e a razão nos indicam quais são os deveres morais. Portanto, segui-los é seguir o Logos pessoal, o Verbo de Deus. 132 Todavia, modificam e desenvolvem aquela ideia: antropologicamente, consideram o ser humano imago Dei, o que proíbe a redução da pessoa humana a simples elemento do cosmo. A harmonia da natureza e da razão não está mais na visão imanentista de um cosmo panteísta, mas sobre a comum referência a uma sabedoria transcendente do Criador. Assim, agir contra a razão é falta contra as orientações que o Criador colocou na razão humana.

Refere Santo Agostinho que as normas de uma vida reta e justa estão expressas no verbo de Deus que as imprime depois no coração do homem “à maneira de um timbre, que do anel passa à cera, mas sem deixar de ser anel”.133

Tal doutrina patrística passou à Idade Média, tanto como o conceito do ius gentium: há princípios universais de Direito, que regulam as relações entre os povos e são obrigatórios para todos.134

Estes fundamentos persistiram ao longo da Idade Média e, na fase da alta Idade Média, antecedendo o Renascimento, passaram à interpretação estrita da voluntas Dei.

A ideia de um Direito Natural fora poderosamente afirmada na corrente socrático- aristotélica e na estoica, assim como na obra de Cícero e de jurisconsultos romanos, ensina Reale.135 Mas na cultura cristã adquire um sentido diverso porque se torna uma lei da

131 REALE, Miguel. Nova fase do Direito moderno. 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 1998, p. 12. 132 COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL. Op. cit., p. 31.

133 AGOSTINHO. Contra Faustum, XXII, c. 27 (PL 42, col. 418): “Lex vero aeterna est, ratio divina vel

voluntas Dei, ordinem naturalem conservari iubens, perturbari vetans”. Também no “De Trinitate”, XIV,

XV, 21 (“Corpus christianorum”, série latina, 50ª, p. 451): “Onde estas regras estão escritas, onde o homem, mesmo injusto, reconhece o que é justo, onde vê que necessita ter aquilo que ele não tem? Onde estão inscritas, senão no livro daquela luz que se chama a Verdade? Lá está escrita toda lei justa, e dali ela passa ao coração do homem que pratica a justiça, não que ela emigre nele, mas ela aí põe a sua marca, à maneira de um timbre, que do anel passa à cerra, mas sem deixar de ser anel” (Ubinam sunt istae regulae scriptae, ubi

quid sit iustum et iniustus agnoscit, ubi cernit habendum esse quid ipse non habert? Unib ergo scriptae sunt, nisi in libro lucis illius quae veritas dicitur unde omnis lex iusta describitur et in cor hominis que operatur iustitiam non migrando se tanquam imprimendo transfertur, sicut imago ex anulo et in ceram transit et anulum non reliquit?). (Cf. COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL. Op. cit., p. 32-33).

134 GAIO, Institutas, 1.1: “Quod vero naturalis ratio inter omnes homines constituit, id apud omnes populos

peraeque custoditur vocatur que ius gentium, quase quo iure omnes gentes utuntur. Populus itaque romanus partim suo próprio, partim communi hominum iure utitur”. (Cf. COMISSÃO TEOLÓGICA

INTERNACIONAL. Op. cit., p. 33).

consciência, uma lei interior, e porque é considerada inscrita no coração do homem por Deus.

O Direito Natural destinava-se a representar a afirmação da nova Lei contra a Lei velha, a mensagem instauradora de uma nova forma de vida.

Para o saudoso professor, a noção ou chave mestra da doutrina moral e jurídica de Tomas de Aquino é a de lex. Lei e ordem são conceitos que se completam e se exigem em sua doutrina.

E, por lei, entende ele “uma ordenação da razão no sentido do bem comum, promulgada por quem dirige a comunidade”.136