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A Família Arquetípica

No documento Christine Downing - Espelhos Do Self (páginas 50-52)

Antes mesmo de Jung desenvolver sua teoria do inconsciente coletivo e dos arquétipos, já o intrigara o poderoso papel simbólico desempenhado pela mãe na psicologia, em especial na psicologia masculina. A ruptura entre Freud e Jung foi em grande medida ocasionada pela insistência deste último, em seu livro de 1913 intitulado A Psicologia do Inconsciente, de que o anseio incestuoso pela mãe por parte do filho realmente significa o anseio por restabelecer o contato com a fonte da renovação psicológica — não a mãe literal, e sim a mãe simbólica. Ao trabalhar mais em sua teoria em anos posteriores, Jung afirmou com ênfase ainda maior que o arquétipo da mãe não é um derivado de nossas experiências com a mãe biológica pessoal mas, ao contrário, que não podemos nos impedir de ver nossa mãe segundo esse arquétipo.

"Mãe, como a nossa psique a imagina, está associada à solicitude e à simpatia maternas; à autoridade mágica da mulher; à sabedoria e à exaltação espiritual que transcendem a razão; a todo instinto benéfico, a tudo o que é benigno, que acalenta e sustenta, que promove o crescimento e a fertilidade. O lugar da transformação e do renascimento mágicos, junto com o submundo e seus habitantes, são presididos pela mãe. Do lado negativo, o arquétipo da mãe pode conotar tudo o que é secreto, oculto e escuro; o abismo, o mundo dos mortos, tudo o que devora, seduz e envenena, aterroriza e é inescapável como o destino.1

. Pouco espanta, portanto, que Jung manifeste sua simpatia pelas mulheres que são "as portadoras acidentais" desse arquétipo.

Embora na psicologia junguiana e, como o sugeriu Hillman, em toda a psicologia profunda em geral, o foco tenha incidido sobre o arquétipo da mãe, também há o reconhecimento de que outras figuras da família habitam na nossa psique como arquétipos importantes: o pai, o filho, a filha, o marido e a esposa, o irmão e a irmã. Todas essas figuras vivem em nós de maneiras que não são inteiramente determinadas pelas nossas vivências pessoais (e, claro, não são inteiramente independentes destas pois, neste livro, estamos falando de imagens arquetípicas e não dos arquétipos em si). Essas imagens arquetípicas influenciam no modo como reagimos aos "portadores acidentais" dos arquétipos e que são os nossos pais, cônjuges e irmãos concretos. Projetamos pressupostos e sentimentos derivados dos arquétipos em pessoas que não pertencem ao nosso círculo familiar, como se de alguma forma fossem (ou devessem ser) nossas mães, pais e filhos. Esse dinamismo pode enriquecer as relações, acrescendo-lhes ressonância e significação, mas pode também (o que talvez aconteça com mais freqüência) danificá-las ao falsificar quem o outro realmente é e como ele está disponível para se relacionar conosco.

Todos nós, cientes disso ou não, podemos ser considerados possuidores de uma invisível e poderosa família arquetípica, ao lado daquela que costumamos admitir que temos; aliás, as duas estão quase que inextricavelmente mescladas entre si. O pai ou mãe que aparece nos nossos sonhos, por exemplo, é em geral uma confusa mistura dos pais arquetípico e pessoal.

Como observamos na Parte I, os arquétipos estão sempre vinculados a outros arquétipos. Em geral aparecem aos pares, mas esse pareamento não é sempre entre dois complementares, e isso faz diferença. Também faz diferença o arquétipo através do qual vivenciamos a

situação e o arquétipo para o qual olhamos. Assim, a ligação pai-filho parecerá diferente se nos detivermos na perspectiva do filho, ou na do pai. Para abrir essa parte do livro, T. Mark Ledbetter considera o modo como o percurso do filho rumo à maturidade é moldado pela sua relação ambivalente tanto com o pai arquetípico como com o pai pessoal. Ledbetter volta-se para a literatura contemporânea para "amplificar" seu tema, como outros autores influenciados por Jung costumam abrir-se para a mitologia e o folclore.

O analista junguiano Murray Stein, autor de Midlife, assume uma postura mais tradicional ao investigar o modo como os mitos gregos esclarecem a nossa vivência do arquétipo do pai. Stein não está interessado em saber como as imagens arquetípicas afetam o modo como o filho enxerga o pai e vice-versa. O que constitui o cerne de sua atenção é como um pai interior devorador abafa nossos impulsos criativos, assim como Kronos — segundo a lenda — engolia seus filhos imediatamente após nascerem. Zeus nos oferece a imagem de um pai interior mais tolerante, mais flexível, que só impede aquelas mudanças revolucionárias que de fato ameaçam a ordem e a harmonia psíquica. O ensaio de Stein sugere que pode existir desenvolvimento no seio do arquétipo, que não estamos necessariamente fixados na versão do arquétipo do pai que primeiro aparece.

Em sua discussão das dimensões arquetípicas do elo mãe-filha, Helen M. Luke, fundadora da comunidade terapêutica Apple Farm, também recorre à mitologia grega. Sua versão da história de Deméter e Perséfone nos ajuda a ver a pertinência deste mito para o auto-entendimento das mulheres. Em cada um de nós vive uma filha que deve romper o cerco do continente oferecido pela mãe, e em cada uma de nós também vive uma mãe que quer proteger a filha e sofre quando não o consegue. As mulheres anelam por crescer e resistir à mudança. Através desse mito descobrimos que o tempo passado no mundo inferior é uma parte necessária de toda vida humana, mas que a renovação psicológica permanece sendo uma possibilidade a cada idade.

A ex-professora de filosofia e analista junguiana Linda Schierse Leonard ajuda-nos a perceber as diferenças que marcam a presença do pai arquetípico na vida de uma filha e de um filho. Seu relato vivido e pessoal mostra uma filha adulta lutando para elaborar seu relacionamento com o pai histórico e com o pai arquetípico a fim de curar seu relacionamento ferido consigo mesma, assim como para tornar possível uma reconciliação com seu pai real. David DeBus apresenta um poema, escrito para a filha ainda não nascida, no qual expressa toda a ternura e toda a esperança evocadas num pai que está imaginando o que irá significar em sua vida ter uma filha.

Os arquétipos da mãe e do pai desempenham um papel tão poderoso na nossa psique que costumamos nos sentir dominados pelos mesmos. Em contraste com eles, a avó e o avô podem vir associados com muitos dos mesmos atributos e poderes, mas numa escala menos formidável e menos temível. Em sua contribuição, o professor de estudos religiosos David L. Miller escreve a respeito da razão por que isso acontece assim. A romancista e ensaísta Jane Rule, numa tonalidade mais pessoal, escreve sobre as experiências de sua infância com as avós e sobre como essas vivências moldaram seus sentimentos acerca da velhice e o que ela entende por amor. A poetisa Alma Luz Villanueva, em suas linhas líricas, exprime o quanto é profundamente fortalecedora a imagem da avó. E a terapeuta junguiana River Malcolm celebra os particulares incentivos que somente um avô pode proporcionar.

Mães e pais também são filhas e filhos e, com freqüência, esposas e maridos. O que enxergamos de nós mesmos quando olhamos para nossas vidas pelo prisma do casamento arquetípico é muito diferente daquilo que apreendemos por meio do casamento de nossos pais. Mas podemos constatar como é difícil desemaranhar esses arquétipos porque nenhum relacionamento concreto é influenciado por apenas uma imagem arquetípica. Em meu ensaio a respeito do casamento, sugiro que vejamos nossos cônjuges pelo prisma de muitos arquétipos. O marido constela o arquétipo do marido mas também o arquétipo do pai, do

filho, do irmão, do amante, e até o da mãe! Considero, inclusive, os problemas implicados na satisfação que esperamos receber do portador desses arquétipos que nos preencha a ponto de nos sentirmos completos através do relacionamento.

A família arquetípica também inclui irmãs e irmãos, que meu ensaio explora em termos gerais. O poema de Adrienne Rich investiga os intensos sentimentos de proximidade e distância que caracterizam sua relação com a irmã; o poema de Galway Kinnell expressa a tristeza dos irmãos que não têm nenhuma forma real de comunicar-se entre si. O psicólogo Howard Teich escreve sobre o significado arquetípico do mais próximo dos elos entre irmãos, o dos gêmeos.

Eu também quis incluir membros da família em geral não considerados quando refletimos de início sobre a família arquetípica mas que, não obstante, dela participam, a título de membros desacreditados ou não reconhecidos. Por isso incluí um excerto do livro Orphans de Eileen Simpson e um poema de Olga Cabral sobre a mulher solteira. Os ensaios do terapeuta junguiano Robert H. Hopcke, autor de Jung, Jungians and Homosexuality, e da analista junguiana Caroline T. Stevens, nos proporcionam relatos pessoais de como casais homossexuais e famílias de lésbicas são influenciados por imagens arquetípicas tradicionais da família, e como poderiam aprofundar e expandir o nosso entendimento do que abrange o arquétipo da família. Esses ensaios ajudam-nos a enxergar, mais uma vez, como estão intimamente interligadas as dimensões arquetípica e pessoal. Refletir sobre as experiências pessoais ajuda a ver como os arquétipos agem na nossa vida e, ao mesmo tempo, a ver como estar em sintonia com o plano arquetípico nos abre o acesso para dimensões mais profundas da nossa vida pessoal, de tal modo que nossas relações externas possam favorecer o crescimento interior.

T. Mark Ledbetter

No documento Christine Downing - Espelhos Do Self (páginas 50-52)