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ANIMUS POSITIVO

No documento Christine Downing - Espelhos Do Self (páginas 38-40)

A descrição junguiana do "animus positivo" percorre uma ampla variação de tipos, desde espírito orientador, capacidade logos, ou de habilidade para pensar com clareza, até mediador do inconsciente, de forma bastante semelhante à da anima que tem a reputação de ser a mediadora do inconsciente para os homens. A idéia da anima como mediadora do inconsciente faz muito mais sentido do que o inverso. Se os homens produzem cultura, então o que se relegou ao plano inferior é "feminino". Nesse sentido, as mulheres de carne e osso assim como imagens de mulheres ajudam os homens a entrar em contato com aquela parte de sua natureza que foi desviada para o submundo, e possivelmente desempenham a mesma função para as mulheres. Uma vez que essas foram incumbidas de conter e representar o que é emocional e assustador na nossa natureza humana, então é lógico admitir que é por meio das mulheres que os homens podem chegar a resgatar essa parte de si mesmos. Eles podem tanto se sair bem como fracassar nessa empreitada. Fracassam se continuam projetando sua imagem do que significa ser fêmea ou feminino nas mulheres. Ainda prestam um desserviço às mulheres na medida em que seus supostos acerca do que significa ser mulher são provavelmente inexatos e nós, mulheres, continuamos numa espécie de inautenticidade acolhendo e contendo essas projeções. São bem-sucedidos se se dão conta de que estiveram olhando as mulheres através de um véu, de um filtro, dentro de suas próprias psiques, que desesperadamente precisam reconhecer como sua. Como constructo útil, porém, o animus não pode existir como a mera contraparte, na psique das mulheres, da anima que existe na psique masculina, por causa do status diferente atribuído aos homens e às mulheres na nossa sociedade.

As mulheres e as imagens femininas são o portão de acesso ao inconsciente numa sociedade dominada pelos homens — para ambos os sexos. O trabalho de James Hillman sobre a anima (Spríng, 1973 e 1974) fornece poderosos subsídios em favor dessa noção. As implicações para a mulher são que temos uma subcultura, uma cultura subterrânea, esperando para ser descoberta. Isso porém não quer dizer que o animus irá nos conduzir até lá. Chegaremos lá desvendando os contos das mulheres, construindo nossos rituais, e basicamente celebrando a dimensão feminina da vida e do ser.

E quanto ao animus que é o "espírito condutor"? Estamos mais uma vez em bases instáveis. O problema com essa imagem do "masculino" ou "animus" é que ele reforça a relação de poder entre os homens e as mulheres na sociedade, como Carol Christ assinalou.7 Se o "animus" é o nosso "espírito condutor", essa é a reconstituição espiritual do homem na nossa sociedade, que também nos dirige, nos diz quem somos e faz as regras. Não mencionarei aqui a dominação dos homens pelas mulheres que também pode ocorrer, mas em geral se dá de um modo diferente. As mulheres tendem a "dominar" pela manipulação, com os artifícios do subjugado, não é a dominação de quem foi criado para governar. (Veja o livro de Jean Baker Miller, Toward New Psychology or Women para mais argumentos em defesa deste ponto.) É certamente verdadeiro que o animus enquanto guia espiritual traz as mulheres para mais perto de um sentido de sua própria autoridade do que no estado pré-individuado, uma vez que o animus é concebido como parte da psique feminina. O problema, no entanto, está nas implicações sócio-culturais do gênero da imagem, se este ainda reforça a impotência da mulher na sociedade. Precisamos de imagens fortalecedoras de mulheres e precisamos nos desfazer da excessiva dependência em relação às figuras masculinas, mesmo a do animus, na medida em que replica o nosso já subdesenvolvido senso de autoridade e espiritualidade femininas.

A noção do animus como logos no sentido de capacidade para o pensamento racional é igualmente problemática, porque reproduz a visão que a sociedade tem do homem pensador, mesmo que desta vez se trate do homem interior nas mulheres. Conceber o animus desta forma foi um meio passo muito importante no caminho da libertação das mulheres em relação à impotência e ao pensamento inferior. Os junguianos viram a necessidade de as mulheres darem forma e concretude ao lado dito "masculino", o poder, a autoridade e o pensamento racional até então atribuídos ao homem. Mas não deram o meio passo seguinte, que deve ser dado por nós, e que consiste em legitimar o pensamento feminino, o poder e a autoridade das mulheres por si mesmos, e não somente como o outro contrassexual.

É crucial que nós, mulheres, reconheçamos a validação que a nossa sociedade outorga ao pensamento, à autoridade e ao poder masculinos e a possibilidade de inautenticidade no uso de um símbolo masculino para legitimar o nosso próprio poder. Se não encontrarmos imagens femininas de fortalecimento e pensamento, estaremos nos esquivando da questão do medo e da evitação presentes na nossa sociedade com respeito ao poder, à autoridade e à racionalidade femininas.

Não há dúvida de que precisamos de imagens tanto femininas como masculinas que sejam fortalecedoras e nos dêem apoio e energia. Não estou sugerindo que como mulheres rejeitemos todas as imagens masculinas, mas sim que não as usemos como uma forma fraudulenta de conquistar poder feminino e de legitimar o pensamento feminino. Replicar uma situação de poder que existe na nossa sociedade não é um uso libertário do animus. Toda possibilidade de incentivo do sexismo deve ser retirada das imagens, para que a psicologia analítica se torne congruente com as diretrizes apresentadas no início deste artigo, a saber, que para ser libertadora para uma mulher a terapia deve reconhecer o sexismo como fato e opor-se a ele com uma atenção sem tréguas.

Assim, se essas formas de animus são problemáticas, qual é a utilidade do conceito? Minha recomendação é que o conceito de animus precisa ser desontologizado e visto como específico à cultura. Essa noção pode ser proveitosa se nos dermos conta de que a psique internaliza as imagens tanto quanto as projeta. Psique e cultura existem numa relação dialética entre si, o que significa que a psique é não só a produtora de imagens, como sugerem os junguianos, mas também a consumidora das mesmas. É especialmente importante que nós mulheres percebamos que estamos consumindo imagens do feminismo — inclusive a do animus (um aspecto do feminino) — que vêm sendo projetadas pela psique masculina na nossa cultura ocidental. Sob esse prisma, o conceito pode ser útil. Cada mulher pode examinar

suas próprias imagens do animus, que devem vir representadas por figuras masculinas nos sonhos, ou estar contidas nos homens com os quais se relaciona, e ainda investigar seus sentimentos e percepções a respeito das instituições tipicamente "masculinas", observando de que maneira ela internalizou as definições da sociedade, no seu próprio detrimento ou benefício. O animus (e a anima, a propósito) pode ser usado como engenhoso recurso de exame da modalidade de luta que ocorre entre a nossa psique e os demônios internalizados de uma cultura sexista. É isso o que quero dizer com desontologizar. Parte do gênio de Jung está em desvendar o aspecto imaginai da nossa psique coletiva e de nossas psiques individuais. Em virtude de sua genialidade nesse campo, o conceito tem grande proveito, desde que seja especificamente inserido num contexto cultural, uma vez que aí demonstra a psique no seu processo de criação de imagens e processamento das mesmas.

O animus também é útil se for empregado pelas mulheres para desvendar nossas próprias perspectivas inconscientes dos homens e dos tipos de relacionamentos que tendemos a criar com eles. Dialogar com as imagens masculinas de nossos sonhos e fantasias do modo como os junguianos sugerem pode proporcionar-nos autoconhecimento na área de nossas expectativas em relação aos homens, além de nos ajudar a resgatar para nós mesmas capacidades que projetamos neles, fortalecendo-nos então. Nesse ponto, um dos usos do animus está em considerá-lo como fonte de esclarecimento que nos ajuda a enxergar as formas pelas quais internalizamos o sexismo (ou seja, como aprendemos a nos oprimir). O animus também é um símbolo da vida que a mulher não viveu,8 como o demonstram nossas expectativas em relação aos homens e às nossas possíveis idealizações, ou, ao contrário, ao nosso ódio e ressentimento deles.

Por fim, sendo entendidas, nossas imagens de animus lançam luz sobre o mistério do motivo pelo qual nos apaixonamos pelos homens, no caso de mulheres heterossexuais. Integrado, o animus pode nos ajudar a parar de nos apaixonarmos de uma forma impotente, para podermos então ser livres e, enfim, amar de igual para igual.

No documento Christine Downing - Espelhos Do Self (páginas 38-40)