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Dimensões Arquetípicas do Ciclo Vital

No documento Christine Downing - Espelhos Do Self (páginas 101-103)

Passamos da infância para a adolescência, desta para a maturidade e depois para a velhice a menos que nossas vidas sejam prematuramente interrompidas. Parece que passamos com toda suavidade de um estágio para o seguinte, obedecendo a uma trajetória linear progressiva. Na realidade, em certo sentido, todos esses estágios estão simultaneamente presentes. A criança continua viva dentro do adulto, e em nós, quando crianças, existem imagens do adulto que imaginamos vir a ser um dia. A figura da criança interior tornou-se familiar aos profissionais que trabalham com a perspectiva junguiana. Falamos menos do Self adulto interior, do velho sábio ou da velha sábia interiores, embora eu suspeite que atuam em nós de maneira igualmente poderosa. Também estas são imagens arquetípicas: numinosas, ambivalentes, potencialmente transformadoras.

A Parte III começa com Jung e um ensaio sobre o arquétipo da criança, que enfatiza a ambivalência inerente ao arquétipo da criança: a vulnerabilidade e a invencibilidade da criança, seus aspectos masculinos e femininos, o modo como representa tanto o nosso passado como o nosso potencial, a nossa renovação, a nossa esperança. Freud, ao concentrar sua atenção sobre o impacto vitalício de nossos períodos reais de infância, apresentou-nos à criança ferida que ainda vive em nós, quando já somos psiquicamente adultos. Jung, cuja ênfase recai mais sobre a criança arquetípica ou divina, enxerga-a como representante, não do nosso trauma essencial mas, ao contrário, da nossa capacidade de recuperação, de ludicidade, de espontaneidade, de deslumbramento, de criatividade. Essa perspectiva de cunho positivo surtiu um imenso impacto sobre a psicologia popular contemporânea pois promete que os recursos que necessitamos para a transformação de nós mesmos encontram-se dentro de nós.

Dedicamo-nos, a seguir, aos estágios do desenvolvimento masculino, segundo a visão arquetípica. Como assinala Jung, "O arquétipo não procede dos fatos físicos, mas descreve como a psique vivência o fato físico, e, ao proceder dessa maneira, a psique em geral comporta-se de modo tão autocrático que nega a realidade palpável ou faz afirmações que voam diante da mesma."1 A analista suíça Marie-Louise von Franz apresenta a sua descrição clássica do puer aeternus, o eterno menino, e o apresenta repleto de belas promessas e, no entanto, lamentavelmente, tão apegado às intermináveis possibilidades que, para ele, decisão, concretização e compromisso transmitem mais um senso de traição do que de realização. (Embora o modelo seja masculino, o padrão muitas vezes também aparece em mulheres; nesse caso, o equivalente feminino do puer é a puella.)

O puer costuma vir associado ao senex, o ancião, com tanta probabilidade de mostrar-se o velho rígido e encarquilhado como o mentor sábio e experiente. James Hillman escreve com grande perspicácia a respeito desse par e de como cada uma destas figuras define e complementa a outra. Começa com uma amplificação mitológica, usando a figura do deus grego Kronos, com a finalidade de colocar em pauta os aspectos positivos e negativos do arquétipo do senex. Mas o que realmente interessa a Hillman não é a mitologia mas a psicologia, ou a nossa vivência pessoal do poder do arquétipo para moldar nossas vidas não só nos anos da nossa maturidade mas também e sempre que se tornar predominante o anseio pela certeza, pela perfeição e pela ordem. Ele observa quão provável nos é o contato com apenas o lado negativo desse arquétipo. O acesso ao lado positivo implica que seja superado e integrado o processo de cisão que exclui o puer.

O ensaio sobre a psicologia do homem, extraído do livro do analista junguiano Robert M. Stein, Incest and Human Love, mostra como o foco típico do homem na sua potência fálica obscurece muitas das necessidades mais profundas da sua alma. Stein ajuda-nos a enxergar a diferença entre o pênis como um órgão fisiológico e Phallos, o deus que corporifica uma modalidade particular de energia impulsiva e explosiva à qual os homens são particularmente suscetíveis. Mas, a menos que o homem também esteja numa relação correta com suas qualidades receptivas ''femininas'', com seu "útero", sua alma não pode ser renovada nem fertilizada por Phallos.

Enquanto fazia essas escolhas, fui tomando consciência de como de fato não temos uma palavra para expressar o conceito "idade adulta do homem" — talvez porque esse estágio seja quase invisível. Este não tem sido tão freqüentemente considerado porque costuma ser o ponto típico de partida a partir do qual consideramos tudo. Não obstante, observo que, recentemente, a masculinidade tem se tornado problemática, assim como a feminilidade o foi há algumas décadas. Escritores como Robert Bly, com sua imagem do "homem selvagem", e Robert Moore, com sua investigação dos quatro arquétipos masculinos (rei, guerreiro, mágico e amante), estão contribuindo com os referenciais básicos para o surgimento daquilo que poderíamos denominar "o masculino consciente".

Quando examinamos os estágios do ciclo de vida da mulher, temos nomes familiares para todas as três fases: virgem, mãe e "coroa". No entanto, como várias feministas deixaram claro, a identificação da fase adulta da mulher com a maternidade é profundamente problemática. Existem muito mais dimensões na vida adulta da mulher, mas de alguma maneira o arquétipo da mãe (e estereótipos culturalmente específicos sobre a maternidade) tende a prevalecer. Para as mulheres adultas, desembaraçar-se das amarras desse arquétipo, abençoando ao mesmo tempo o modo como ele enriquece a nossa vida, pode ser uma tarefa dolorosa e difícil. Connie Zweig, organizadora de To Be a Woman, descreve como as mulheres contemporâneas estão empenhadas em dar à luz um novo arquétipo: o da mulher madura, consciente.

Em Os Mistérios da Mulher, a destacada analista junguiana M. Esther Harding apresenta-nos a imagem da virgem como alguém una-em-si-mesma, motivo esse que tem sido inspiração para gerações de mulheres, e por isso o incluímos aqui. Mais recentemente, feministas como Mary Daly e Barbara Walker ofereceram-nos imagens da "coroa" que representam a força e a coragem das mulheres auto-suficientes, de mais idade, capazes de desafiar todas as convenções. O texto que eu mesma apresento tanto aceita como amplia essas afirmações. Concordo que, em certo sentido, a virgem representa uma inocência irrecuperável (porque jamais foi literalmente possível), uma inviolabilidade, uma auto-suficiência, e a "coroa", a realização longamente ansiada — mas até certo ponto não alcançada — de uma sabedoria e de um poder enfim atingidos. Essas visões, contudo, só enfocam o lado positivo dos arquétipos, ignorando a confusão, a solidão, a vulnerabilidade e o vazio da virgem e a incompletude, a impotência e a vulnerabilidade da "coroa". Essa evitação do lado escuro parece ocorrer quando consideramos os arquétipos à margem da vida real.

Quando os aspectos arquetípicos e pessoais do ciclo de vida estão integrados, descobrimos a alternância recorrente entre mágoas e bênçãos em cada fase, e como todas as fases se interpenetram e se enriquecem entre si. Nunca somos apenas puer ou apenas senex, nunca apenas donzelas ou apenas "coroas". Pelo contrário, como sugere o ensaio de Jung sobre a criança, nunca somos apenas masculinos ou femininos. Assim, aquilo que aqui está contido acerca de puer, do senex, de Phallos, pode esclarecer o entendimento de mim mesma como mulher, tal como os ensaios sobre a virgem, a mulher e a "coroa" podem mostrar-se elucidadores para os homens.

C. G. Jung

No documento Christine Downing - Espelhos Do Self (páginas 101-103)