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Esther Harding

No documento Christine Downing - Espelhos Do Self (páginas 116-119)

Phallos e a Psicologia do Masculino

M. Esther Harding

A Virgem

A Grande Mãe é sempre representada como Virgem, a despeito do fato de ter muitos parceiros e ser mãe de muitos filhos, ou de um só filho, que morre apenas para ser ressuscitado seguidas vezes, ano após ano. Esse termo "virgem" necessita certa investigação pois, evidentemente, diante da sua conotação moderna de casta, inocente, não pode ser usado para a Magna Mater, a menos que presumamos que ela permanece milagrosamente virgem apesar das experiências por ela vividas e que tornariam o termo inaplicável. Frazer, no entanto, tem uma afirmação iluminada a esse respeito: "O termo grego parthenos aplicado a Ártemis, que comumente traduzimos como virgem, significa apenas uma mulher não casada e, naqueles tempos, as duas coisas não eram em absoluto o mesmo... não havia adoração pública de Ártemis, a Casta. Até onde seus títulos sagrados se referem à relação entre os sexos, eles demonstram que, pelo contrário, como Diana na Itália, ela dizia respeito especialmente à perda da virgindade e à geração de filhos... Nada porém deixa mais claro o verdadeiro caráter de Ártemis como deusa da fecundidade, embora não como fruto de laço Conjugal, do que sua constante identificação com as deusas asiáticas do amor e da fertilidade, não casadas mas não castas. Estas eram adoradas com ritos de notória libertinagem em seus santuários públicos."1 Numa nota de rodapé, Frazer comenta a esse respeito citando o Profeta Isaías, "e uma virgem conceberá", e diz que o termo hebreu aqui traduzido como "virgem" não significa mais do que "mulher jovem" e que "uma tradução correta teria evitado a necessidade de um milagre". Esse comentário não explica a contento, porém, o ponto de dificuldade, pois o que quer que o profeta Isaías tenha querido dizer com essas palavras não há dúvida de que a Virgem Maria era venerada pela igreja medieval e ainda é venerada pelos católicos de hoje como uma mulher virgem no nosso sentido atual do termo, mesmo que a tradição tenha reconhecido que ela deu filhos de carne e osso a José depois do nascimento virginal de seu Filho Mais Velho, e que também seja glorificada nos hinos em latim como esposa e também mãe de seu Filho. Todos esses elementos constelam uma flagrante contradição ou exigem a presença de um outro milagre impossível, para que possam ser tidas

como verdadeiras no plano objetivo. Se, contudo, temos os conceitos religiosos como simbólicos e interpretamos essas contradições no plano psicológico, damo-nos conta de que o termo "virgindade" deve referir-se a uma qualidade, a um estado subjetivo, a uma atitude psicológica, e não a um fato fisiológico ou externo. Quando aplicado na expressão Virgem Maria, ou para citar as deusas virgens de outras religiões, não pode ser empregado como denotação de uma situação de fato, pois a qualidade de virgem persiste de uma maneira até certo ponto inexplicável apesar das experiências com a sexualidade, com o parto e com o avanço da idade.

Briffault aponta uma solução para esse enigma. Diz ele que "o termo virgem" é sem dúvida usado nesses títulos em seu sentido primitivo, para denotar "não casada" e para conotar o próprio inverso daquilo que o termo passou a implicar. A virgem Ishtar também é freqüentemente chamada de "A Prostituta", e ela mesma diz: "Uma prostituta compassiva é o que sou." Ela veste o "posin" ou véu que, entre os judeus, era o sinal distintivo tanto de "virgens" como de prostitutas. As hieródulas, ou prostitutas sagradas dos templos, também eram denominadas "as santas virgens"... os filhos nascidos fora do casamento eram chamados "parthenioi", "nascidos de virgem". O termo "virgem" em si não tem, estritamente falando, o significado que lhe atribuímos. A expressão em latim que corretamente descreve a donzela não tocada não é "virgo", mas "virgo intacta". A própria Afrodite era uma Virgem.2

A deusa mãe dos esquimós tem a mesma característica de virgindade no antigo sentido do termo. Os esquimós chamam-na de "Aquela que não terá marido". Deméter também teria "execrado o casamento". Ela presidia não o casamento, mas o divórcio. A virgem chinesa sagrada, Shing-Moo, a Grande Mãe, concebeu e deu à luz um filho permanecendo virgem. É venerada como padrão de pureza. Sua concepção da Criança Sagrada é tida como imaculada, mas seu caráter ancestral é revelado no fato de ela ser a padroeira das prostitutas.

O termo virgem, então, quando usado a respeito das deusas ancestrais, tem claramente um significado que não é o de hoje. Pode ser usado para descrever uma mulher que tenha tido muitas experiências sexuais. Pode ser aplicado, inclusive, a uma prostituta. Seu significado real será encontrado no seu uso como antônimo de "casada".

Nos tempos primitivos, uma mulher casada era propriedade do marido, geralmente comprada por um preço considerável, pago ao pai. A idéia básica que justifica esse costume sustenta-se de algum modo até entre nós. No período dos "casamentos arranjados" e dos "acordos de casamento", o pressuposto de que a mulher era um bem adquirido pode ser detectado nas decorosas negociações, e o costume de "entregar" a noiva lembra o mesmo conceito psicológico subjacente, ou seja, o de que uma mulher não é dona de si mesma, e sim a propriedade de seu pai, que a transfere como propriedade para o marido.

Segundo o nosso sistema patriarcal ocidental, a moça solteira pertence ao pai, mas, antigamente, como ainda acontece em certas comunidades primitivas, ela era a sua própria dona até casar-se. O direito de dispor de sua pessoa até casar-se faz parte do conceito primitivo de liberdade. Existem muitas evidências de que as moças eram em geral cuidadosamente guardadas nas sociedades primitivas, tanto dentro como fora da tribo; por exemplo, eram guardadas da violência, e, em especial, do "incesto" com seus "irmãos de clã", mas com os homens do clã com quem se casarão podem dar livre vazão aos seus desejos. Essa liberdade de ação implica o direito de recusar ou de aceitar intimidades. A moça pertence a si

mesma enquanto é virgem — não casada — e não pode ser forçada, seja a preservar sua

castidade, seja a ceder a um convite sexual indesejado.

Enquanto virgem, ela pertence apenas a si própria; ela é "una-em-si-mesma". Gauguin observa esse aspecto nas mulheres do Taiti e fala dele em seu livro Noa Noa. Para ele isso era estranho. Ele relata como qualquer mulher prontamente se entregava a um desconhecido se ele a atraísse mas não ao homem com quem tinha tido a relação sexual e sim a si mesma, ao

seu próprio instinto, de tal modo que, mesmo depois de a relação terminar, ela continuava una-em-si-mesma. Não dependia do homem, não se apegava a ele nem exigia que a relação fosse permanente. Ainda era dona de si mesma, virgem no sentido ancestral, original.

É nesse mesmo sentido que as deusas da lua podem ser corretamente consideradas virgens. A qualidade da virgindade é, aliás, característica dessas deusas. Outras deusas das religiões ancestrais e primitivas não partilham dela, não são unas-em-si-mesmas. Aparentemente, não têm uma existência própria, separada, mas são concebidas apenas como esposas ou consortes dos deuses dos quais derivam tanto seu poder como seu prestígio. Assim é que a deusa tem o mesmo nome que o deus, os mesmos atributos e poderes, ou talvez tenha a versão feminina de suas qualidades mais masculinas. Formam um par, indiferenciados exceto quanto ao sexo. A deusa é tão-somente a parceira do deus, como a mulher o é do homem. Seu nome não era nem questão de interesse; ela era designada apenas pela forma feminina do nome do deus masculino. Por exemplo, a esposa de Fauno era Fauna; Dio era o feminino de Zeus e Agnazi, de Agni; Nut corresponde a Nu e Hehut, a Hehu. Até mesmo os deuses primitivos do céu e da terra formavam um par unido nos casamentos, o Sr. Céu e a Sra. Terra.

As deusas que existem dessa maneira, como consortes dos deuses, são de um tipo diferente. Representam o ideal da mulher casada e personificam aquele aspecto da natureza feminina apegado e dependente. Divinizam as virtudes domésticas da esposa, voltada apenas para os interesses do marido e dos filhos.

Esse é o ideal latente em expressões tais como "e os dois serão uma só carne". Também é esse o arquétipo que está na base da história da criação de Eva a partir da costela de Adão. Nessa situação, a "entidade" ou a unidade é o par, o casal casado, a família. Os membros que compõem essa unidade não têm existência separada ou completa, assim como também não têm um caráter ou personalidade próprios, completos e distintos. Nesses casamentos, o homem representa a parte masculina da entidade e a mulher, a feminina. Todo ser humano contém em si próprio potencialidades que vão em ambas as direções. Se a pessoa não assume os dois aspectos e os desenvolve e disciplina dentro de si mesma, é só meia pessoa, não pode ser uma personalidade completa. Quando duas pessoas formam um casamento de complementaridade, em que tudo o que é masculino compete ao homem, e tudo o que é feminino à mulher, segue-se que as duas pessoas permanecem unilaterais pois o lado não vivido da sua psique, sendo inconsciente, é projetado no outro. Essa condição pode ser relativamente certa enquanto os dois estiverem vivendo em bons termos. Mas quando um dos parceiros falece, o outro sentirá uma perda séria e, talvez só então, quando já for tarde demais, ele perceberá o quanto sua vida foi limitada e unilateral.

Na sociedade ocidental patriarcal, ao longo de muitos séculos, o homem se preocupou em ser dominante e superior, ao passo que a mulher foi relegada a uma posição de dependência e inferioridade. Por conseguinte, o princípio feminino não tem recebido o reconhecimento e o valor que lhe são devidos na nossa cultura. E até mesmo hoje, quando as manifestações exteriores dessa unilateralidade já passaram por uma mudança considerável, persistem os seus efeitos psicológicos, e tanto os homens como as mulheres sofrem com uma psique mutilada, que deveria ser inteira. Essa condição é representada pela deusa que é tão- somente a contrapartida do deus masculino, nada mais.

A relação entre a Mãe Lua e o deus que lhe é associado é inteiramente diferente. Ela é a deusa do amor sexual mas não do casamento. Não há um deus masculino que, como marido, governa a sua conduta ou determina as suas qualidades. Em vez disso, ela é a mãe de um filho a quem controla. Quando ele fica crescido, torna-se seu amante e depois morre, para nascer novamente como seu filho. A Deusa Lua pertence ao sistema matriarcal, e não ao patriarcal. Ela não está vinculada a nenhum deus como esposa deste ou sua "consorte". Ela é a sua própria senhora, virgem, una-em-si-mesma. As características dessas grandes e poderosas

deusas não são o reflexo de nenhum dos atributos dos deuses masculinos, nem representam a contrapartida feminina de características originalmente masculinas. Suas histórias são independentes, e suas funções, insígnias e ritos pertencem apenas a si mesmas, pois representam a essência do feminino no seu mais acentuado contraste com a essência da masculinidade.

No documento Christine Downing - Espelhos Do Self (páginas 116-119)