• Nenhum resultado encontrado

A FIGURA DO ÍNDIO NO CARNAVAL: COMO SURGIU?

Mapa 7 – Redes socioespaciais da tribo de índios Tabajara

1. INTRODUÇÃO

1.4. A FIGURA DO ÍNDIO NO CARNAVAL: COMO SURGIU?

É, no mínimo, curioso discutir a presença do índio no carnaval. Sabemos que o Brasil é um país de proporções continentais e que abrange mais de 230 povos indígenas, sendo, conforme o censo do IBGE, no ano de 2010, aproximadamente 817 mil pessoas e mais de 180 dialetos.

Diante dessas informações, poderíamos imaginar que os índios carnavalescos surgiram no Brasil, tratando-se de uma representação genuinamente brasileira e indígena. Inclinamos, todavia, a pensar de modo diverso. Tentaremos, no presente tópico, imiscuir acerca da presença dos índios no carnaval, ressaltando, porém, que não é nossa pretensão dizer e crer a “verdade” destes índios carnavalescos, podendo existir outras orientações com fontes, também, seguras.

Vários estudiosos do carnaval retratam o “homem selvagem” presente nas fantasias carnavalescas da Idade Média. Conforme Ferreira (2004), a fantasia deste homem selvagem “se referia a um personagem bastante conhecido na literatura medieval que, dizia-se, vivia no fundo das florestas, cercado de animais selvagens, com os cabelos desgrenhados e o corpo coberto de pelos” (FERREIRA, 2004: 31).

O próprio Boeuf Gras parisiense, antigo evento popular apropriado pela elite francesa que assumiu o papel da grande tradição carnavalesca de Paris, tem a figura do sauvage, que vai à frente do boi, com um cocar na cabeça, saia de penas e tacape na mão. Segundo Ferreira (2004), o selvagem do carnaval francês “possui forte semelhança com o ‘índio de cordão’ brasileiro” (FERREIRA, 2004: 293). Góes (2008) destaca a presença mesma do índio no Boi Gordo: “Na iconografia do desfile existente (a maioria em gravuras), é recorrente o boi ter como acompanhantes dois indivíduos vestidos de índio (selvagens) com saiote e coroa de plumas” (GÓES, 2008: 52).

O carnaval de Nova Orleans guarda algumas semelhanças com a festa brasileira, entre as quais, a presença do índio. Para Mitchell (2002), existem vários grupos conhecidos por “Índios do Mardi Gras” ou “índios negros”, desde o final do século XIX. As tradições do surgimento destas tribos carnavalescas remetem a negros que se vestiam de índios. Referenciando-se em Michael Smith – também estudioso do carnaval orleanês –, Mitchell

(2002) argumenta que há uma ligação aceitável dos índios do carnaval de Nova Orleans com Búfalo Bill23, que passou uma temporada naquela cidade em meados da década de 1880.

De igual forma, Góes (2008), partindo da hipótese de outro estudioso do Mardi Gras, David Elliot Draper, coloca que os índios do carnaval orleanês tiveram como inspiração os shows do Oeste Selvagem de Búfalo Bill. Todavia, é esclarecedora e importante a afirmação de Mitchell (2002): “Até essa afirmação pode ser exagerada, pois negros se fantasiam de índios em muitos lugares, no Caribe. Existem esses ‘índios’ em Trinidad, na Bahia e em Cuba” (MITCHELL, 2002: 51).

Assim como Michael Smith considera que “a tradição dos índios do Mardi Gras de New Orleans é provavelmente irmã, e não filha, da tradição pancaribenha” (SMITH apud MITCHELL, 2002: 51), também declinamos para a concepção de que a presença indígena no carnaval brasileiro teve um surgimento próprio e independente, mas que, tampouco, pode ser vista como única representação do índio nas festas carnavalescas. Da mesma forma, expõe Cunha (2002a):

[...] as tribos do Mardi Gras, com seus grupos organizados de negros vestidos de índios, rituais de violência e outras práticas centradas no princípio do desafio, teias de identidade e solidariedade, são irremediavelmente semelhantes a outras daqui, blocos e cordões que pensávamos estar na base de uma originalidade sambista e mestiça que só a nós pertencia (CUNHA, 2002a: 16).

Mitchell (2002) coloca que os negros de Nova Orleans, mantidos à margem da sociedade, mostram “seu orgulho ao assumir o disfarce de outro grupo marginalizado, que era, apesar disso, celebrado como bravos guerreiros que resistiam à invasão dos brancos” (MITCHELL, 2002: 64). Próximo desta leitura da sociedade orleanesa, Ferreira (2004) escreve que os cortejos, enquanto uma das várias expressões características dos negros, presentes desde o século XIX, “se destacariam desde cedo como uma das mais fortes manifestações permitidas aos escravos” (FERREIRA, 2004: 284), servindo “para articular seus contatos com as culturas dos brancos e abrir espaço para suas folias carnavalescas” (ibidem: 284). Tributamos da consideração de Góes (2008) de que:

É fundamental partirmos da premissa de que, quando falamos dos índios do carnaval, estamos nos referindo a uma representação, a uma idealização,

23

Búfalo Bill foi um caçador de búfalos norte-americano que ficou conhecido por estrelar o show sobre o Oeste Selvagem na segunda metade do século XIX. Ele chamava-se William Frederick Cody e nasceu no estado de Iowa.

isto é, a uma reinvenção do sujeito americano nas celebrações carnavalescas; um índio que porta uma coroa de penas. O curioso é que tanto nos Estados Unidos da América quanto no Brasil a presença do índio carnavalesco se destaca de forma vigorosa no seio das comunidades negras (GÓES, 2008: 125).

Ao pensarmos nas tribos de índios do carnaval natalense, não podemos afirmar que elas são provenientes de negros referenciando o índio genérico dos pintores europeus na época da colonização americana, entretanto, não devemos desconsiderar certa relação afrodescendente com a representação do índio no carnaval, sem, contudo, essencializar o fenômeno. Para Ferreira (2004), as fantasias de índios representados pelos negros nas congadas e cucumbis eram aquelas presentes nas pinturas europeias, de um “índio idealizado, misturando elementos das diferentes culturas indígenas presentes nas Américas” (FERREIRA, 2004: 291), simbolizando uma figura genérica. Este fato se dá, conforme Ferreira (2004), pela ausência do contato entre os negros e os silvícolas. Similarmente, em relação ao carnaval carioca, Cunha (2001) argumenta:

Índios, batuques e ‘retrocesso’ evidenciam um olhar negativo e temeroso sobre o mundo das tradições. Nas diferentes festas, no entanto, variando de tempo e lugar, índios de velhas folganças podiam ser brancos pintados a urucum para representar a conquista portuguesa em cima de elaboradas alegorias montadas em carroças, mas também participantes de reinados de congos patrocinados por seus próprios senhores, devotos de Nossa Senhora do Rosário – que não lhes pareciam, afinal, tão ferozes. Podiam ser também, claro, membros da Tenentes do Diabo de 1881, pensando que traziam Veneza para a Corte tropical. Aquilo que foi tomado como sinal inequívoco de má origem, assim, não fazia parte apenas de uma ‘herança’ africana – e por essa mesma razão é preciso cuidado para não reduzi-la a uma genérica prática de resistência dos dominados ou expressão de uma cultura unívoca e fundamentalista (CUNHA, 2001: 296).

No Rio de Janeiro, por exemplo, Meyer (2001) fala de um carnaval de rua paralelo, cujos negros “botavam cortejos na rua, trazidos nas lembranças, os cucumbis, com negros vestidos de índios, e os ranchos, reminiscências de pastoris, ternos de reis, coroações de reis congos” (MEYER, 2001: 179). Segundo Cunha (2001), nas apresentações, “os cucumbis desenrolavam um enredo que os folcloristas consideraram em tudo semelhante a outras formas consagradas em diversas partes do país – como as congadas, caboclinhos, caxambu, caiapós, maracatu ou quilombo” (CUNHA, 2001: 41).

Lara (2002) nos fornece importantes pistas de que danças e apresentações semelhantes às das tribos carnavalescas de Natal já existiam em vários festejos no século XVIII, como, por

exemplo, os caboclinhos pernambucanos, formado por grupos indígenas que “ocupavam lugares similares àqueles dos africanos” (LARA, 2002: 77), que homenagearam o mártir São Gonçalo Garcia, em 1745. A historiadora verifica a presença de pequenos caboclos no arraial da Conceição, em Minas Gerais, no início do século XIX, desfilando com animais entre os participantes.

Ferreira (2004) remete a representação indígena presente no carnaval aos cordões carnavalescos e cucumbis, denominado pelo estudioso do carnaval de “cordões tranquilos”, presentes na folia carioca desde finais do século XIX, que foram desenhados por Angelo Agostini em seu quadro Carnaval de 188124. Tanto Ferreira (2004) quanto Cunha (2001) trazem importantes definições destes grupos no que concerne às vestimentas e adornos:

As vestimentas dos “índios” que desfilavam nos grupos carnavalescos populares do Rio de Janeiro tinham pouca semelhança com a indumentária usada pelos silvícolas brasileiros. Escudos africanos e representação de animais empalhados eram comuns nas fantasias (FERREIRA, 2004: 292). As fantasias envergadas pelos participantes do cucumbi eram também bastante características: para os índios, círculos de penas nos joelhos, cinturas, braços e pulsos; cocares e plumas com palas vermelhas, colares de miçangas, corais e dentes. [...] Cobras, jabutis ou lagartos, às vezes vivos, outras empalhados, adornavam o feiticeiro e evidenciavam seu poder de controlar a natureza25 (CUNHA, 2001: 42).

O que importa é compreender que estes cordões tinham três importantes referências: presença de negros vestidos de índios, batuques com instrumentos percussivos e o estandarte com o nome do grupo carnavalesco. Moraes Filho (2002), em importante obra, nos traz a seguinte definição: “[...] grupo de negros, vestidos de penas, tangendo instrumentos rudes, dançando e cantando, que, nos dias de festas populares, percorre as ruas das grandes cidades e pequenos povoados, associando-se destarte aos nossos folguedos nacionais” (MORAES FILHO, 2002: 141)26. Inicialmente, conforme o autor, os cordões eram constituídos de negros africanos, cuja denominação de cucumbis reservava-se aqueles “de face lenhada e nariz deformado por uma crista de tubérculos” (ibidem: 141), enquanto que os provenientes das

24

O quadro foi publicado na Revista Ilustrada, ano 6, n. 241, 1881.

25 Cunha (2001) traz, também, a descrição dos índios dos cordões pelo folclorista Luiz Edmundo: “com vastos

cocares de penas longas e coloridas, emoldurando rostos cor de canela, pintados a urucum, brincos de metal e colares de vidrilho; na boca sempre traziam um apito de barro, por onde silvam, aos pulos; traziam atravessando nas costas um lagarto seco, uma serpente ou uma pele dura de jacaré” (CUNHA, 2001: 177).

26 “O vestuário geral consiste em círculos de vistosas e compridas penas aos joelhos, à cintura, aos braços e aos

punhos, rico cocar de testeira vermelha, botinas de cordovão enfeitadas de fitas e galões, calça e camisa de meia cor de carne, e ao pescoço das mulheres e homens, miçangas, corais e colares de dentes, dando uma ou mais voltas” (MORAES FILHO, 2002: 144).

demais províncias os chamava de congos. Quanto às tribos de índios carnavalescas, não encontramos registro nas páginas da importante obra de Moraes Filho (2002), talvez porque, na época, estes grupos ainda não fossem autônomos em relação aos cucumbis.

Tais referências são encontradas nas tribos de índios do carnaval de Natal atualmente, sobretudo o estandarte. Havia a presença de animais “vivos” nas agremiações indígenas da cidade, porém, foi proibido após a regulamentação do carnaval local em 2008. Do ponto de vista folclórico, Real (1967) define interessantemente as tribos de índios:

As tribos de índio saem com uma lancinha na mão direita e um escudo na mão esquerda. Não conduzem arco e flecha (preaca) como os Caboclinhos recifenses. Vestem camisas de cetim, […] com um “papo” (um pequeno escudo) no meio, das cores da Tribo. Algumas usam vistosos cocares de pena de garça branca, em vez de penas de ema, como é o caso nos Caboclinhos. Todas as Tribos de índio se pintam de tinta vermelha (porque são “peles vermelhas”) e apresentam uma série de danças complexas e interessantíssimas, dentre as quais sempre aparece o tema de “morte e ressurreição” (REAL, 1967: 113).

Real (1967) informa que estas agremiações indígenas são “a presença da Paraíba no carnaval do Recife” (REAL, 1967: 113). Mário de Andrade, em brilhantes trabalhos sobre as manifestações culturais brasileiras27, frutos das pesquisas etnográficas realizadas entre os anos de 1927 e 1929, surpreendentemente, deixou de registrar as tribos de índios. É curioso o fato de haver sido acompanhado por Câmara Cascudo em suas andanças por terras potiguares, na segunda viagem etnográfica – que durou entre novembro de 1928 e fevereiro de 1929. Assim, se, de fato, as tribos de índios de carnaval tiveram seu “início” nos anos 1920, em conversas realizadas entre o folclorista e Augusto Brasil, por qual motivo o intelectual potiguar deixaria de mencionar esta manifestação carnavalesca ao amigo Mário de Andrade?

Identificamos nos índios do carnaval de Natal um híbrido de vários folclores, como a presença do caçador, muito parecido com aquele dos ursos recifenses: “um tipo de folião ou palhação, que conduz uma velha espingarda e dá tiros cada vez que parece que o 'urso' vai escapar” (REAL, 1967: 122). A tribo de índios Guaranis, de Macaíba, parece ter “incorporado” a figura do folclore la ursa, ao introduzir em sua apresentação a figura do urso de carnaval, fato que me pareceu bastante inusitado.

A dramatização da morte e ressureição, representada pela luta do caçador com os índios, também nos remete às congadas africanas e aos cucumbis. De acordo com Lara

27

(2002), “os cucumbis dançavam, no entanto, um balé que encenava a morte e a ressurreição, pelo feiticeiro, do príncipe do Congo – trama que incluía ainda uma luta entre tribos rivais, com guerreiros armados com arcos e flechas” (LARA, 2002: 92)28

. A história contada por estes grupos carnavalescos “representa um cortejo de príncipes, princesas, feiticeiros, embaixadores de outras nações africanas e o povo, levando para o rei do Congo seu filho recém-circuncidado” (CUNHA, 2001: 41-42).

Muito embora não tenhamos verificado a loas – versos recitados pelo cacique – na maioria das tribos de índios carnavalescas, uma das agremiações mais tradicionais, os “índios Potiguares”, ainda recita esta espécie de poesia popular, ao que Real (1967) chamou de folclorização de literatura.

Outro caso recorrente no carnaval potiguar é a referência à originalidade dos grupos indígenas carnavalescos, como podemos observar na nota d’A República, ainda em 1938:

“É talvez, o mais original dentre os blocos que se apresentarão no carnaval deste anno.

Os índios [Guaranys] a exemplo das outras vezes, merecem realmente a nossa admiração e os nossos aplausos. Com as suas indumentárias de penas, seus cocares, arcos e flechas, eles dão realmente a impressão de legítimos habitantes do Brasil primitivo [...]”29

Importante colocação de Cunha (2001) expressa o nosso entendimento com relação às tribos de índios de carnaval. A historiadora, ao afirmar que os cucumbis desapareceram na última década do século XIX, pergunta sobre o que explicaria a sobrevida dos índios de carnaval. Em seguida, ela nos dá a resposta:

Se não queremos enveredar pela resposta fácil que associa essas tradições à ‘resistência’, podemos tomá-la como mote para um outro tipo de aproximação com o modo como tradições (nada imutáveis) operam no interior do tenso movimento da história. [...]

É possível que a manutenção dessa figura destacada de seu conjunto original, tenha significado uma espécie de estratégia dos adeptos da brincadeira para mantê-la ‘viva’ em alguns de seus aspectos, quando a dança completa era crescentemente malvista e perdia os apoios no mundo dos senhores (CUNHA, 2001: 297).

28 “A morte do príncipe, atacado por tribo inimiga que se veste de penas, como os índios do Brasil, dá origem a

uma série de peripécias, encerradas pela ressurreição do jovem por intermédio da mágica do feiticeiro” (CUNHA, 2001: 42).

29

As tribos de índio do carnaval podem ser vistas, portanto, como estratégias de sobrevivência de uma cultura popular, deixando visíveis pequenos grupos marginalizados pela globalização. É ação política a partir de uma manifestação cultural que ressignifica um passado indígena.