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Mapa 7 – Redes socioespaciais da tribo de índios Tabajara

1. INTRODUÇÃO

1.3. DE QUAL CULTURA ESTAMOS FALANDO?

Hodiernamente, a cultura é bastante debatida na seara acadêmica, não se atendo apenas à ciência antropológica. A Geografia, ainda no século XIX, já compreendia a importância cultural para a análise da sociedade. Todavia, congelava-se na materialidade para o estudo dicotômico do homem-meio. O próprio Sauer (1998), quando trata da paisagem cultural, compreende-a como formas a partir de obras humanas, e completa afirmando que, baseado neste entendimento, “em Geografia não nos preocupamos com a energia, costumes ou crenças do homem, mas com as marcas do homem na paisagem” (SAUER, 1998: 57).

Para os geógrafos alemães, franceses e americanos das primeiras décadas do século XX, a cultura era compreendida em seu aspecto material, como “um conjunto de artefatos utilizados pelos homens em sua relação com o espaço” (CLAVAL, 2001b: 22). Esta noção reificada internalizava uma forma homogênea nos grupos, numa visão global e estática da sociedade16.

Uma abordagem supra-orgânica17 da cultura não interessa atualmente, dada a heterogeneidade da sociedade, a coexistência de línguas, etnias, gêneros, posições políticas, econômicas e sociais diversificadas em seu interior. Além disso, o indivíduo não é um recipiente passivo determinado por certa cultura – a “força ativa” que fala Duncan (2003) – absorvida em sua totalidade e somente reproduzida, mas ele é passível de mudá-la. Assim, a “passagem da descrição de lugares e momentos para uma interpretação de espacialidades e temporalidades exige a observação sensível e crítica do sítio onde o grupo humano constrói sua existência” (RATTS, 2003: 41).

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A presente passagem de um importante texto de Sauer (1998), precursor da geografia cultural norte-americana, demonstra essa visão materialista e estática da cultura: “a paisagem cultural é modelada a partir de uma paisagem natural por um grupo cultural. A cultura é o agente, a área natural é o meio, a paisagem cultural o resultado. Sob a influência de uma determinada cultura, ela própria mudando através do tempo, a paisagem apresenta um desenvolvimento, passando por fases e provavelmente atingindo no final o término do seu ciclo de desenvolvimento. Com a introdução de uma cultura diferente, isto é, estranha, estabelece-se um rejuvenescimento da paisagem cultural ou uma nova paisagem se sobrepõe sobre o que sobrou da antiga” (SAUER, 1998: 59).

17“O supra-orgânico implica uma visão de homem como relativamente passivo e impotente. Se o indivíduo é

considerado atomístico e isolado, então as forças aglutinadoras entre os homens devem ser externas a eles. Os supra-organicistas não entendem que ‘a cultura é o trabalho da humanidade’; temos a impressão de que ela é autônoma só porque é anônima’” (DUNCAN, 2003: 77).

Devemos, no entanto, reconhecer a importante contribuição daqueles teóricos dos séculos XIX e XX, mas transpor a visão de gênero de vida para a análise dos papéis da sociedade, pois, no “mundo urbano e industrial, faz-se necessário executar estudos mais refinados: a descrição dos papéis permite isto” (CLAVAL, 2001a: 51). Tal descrição, seja das pessoas, empresas, instituições ou grupos, nos auxilia a compreender e analisar o conjunto de teias de significados existentes no meio social. Cosgrove (2000) salienta que o geógrafo cultural busca compreender a relação entre os homens e o mundo a partir da cultura, lidando com a interrelação e ações dos grupos humanos, reconhecendo o pluralismo cultural e interessado em submeter as culturas modernas “à análise crítica e o reconhecimento de que elas são compostas de uma pluralidade de vozes que constroem, de formas diferentes, o significado para o mundo” (COSGROVE, 2000: 53).

A cultura é uma realidade mutável, “concebida como o conjunto daquilo que os homens recebem de herança ou que inventam [...]; ela é feita de tudo aquilo que é transmissível” (CLAVAL, 2002: 141). Seguindo o mesmo raciocínio, Santos (1987) entende- a como uma “forma de comunicação do indivíduo e do grupo com o universo, é uma herança, mas também um reaprendizado das relações profundas entre o homem e o seu meio, um resultado obtido através do próprio processo de viver” (SANTOS, 1987: 61). A postura teórica destes geógrafos é aquela já trazida por Raymond Williams (1992), para quem a cultura consiste num sistema de signos que transmite, reproduz, experimenta e explora uma ordem social, encontrando-se presente nos sistemas sociais, nos campos discursivos dos grupos que compõem a sociedade. Esclarecedora é a compreensão de Cunha (2001) ao filiar tradição, tradução e cultura:

As tradições, afinal, como todos os elementos da cultura, são parte dos repertórios gestuais e simbólicos disponibilizados para diferentes sujeitos pelo hábito e pelas linguagens conhecidas. Elas se traduzem a cada momento, adquirindo significados novos em diferentes temporalidades, situações, lugares e dependendo de quem as mobilize para expressar seus próprios valores (CUNHA, 2001: 293).

Esses traços culturais podem ser aceitos, rejeitados ou modificados. Portanto, a cultura “não é vivenciada passivamente por aqueles que a recebem como herança” (CLAVAL, 2001a: 13), podendo assumir novas significações, comportando, assim, a atividade inventiva do homem com a inserção de elementos novos. Daí porque concordar com Williams (1992) ao perceber que a cultura é ordinária – da ordem de todos, é o modo de vida cujas práticas são

dotadas de sentidos18 – e constitui um conjunto de significações, que devemos apreender na análise geográfica dos fenômenos.

Por essa capacidade de mutação e diante da diversidade cultural encontrada na sociedade devemos ter em mente que a “cultura” tem limites indefinidos, sendo construída “socialmente e, portanto, requer explicação e interpretação social e histórica” (BURKE, 1989: 21). O historiador a define, resguardando-se dos limites ao abordar a conceituação, como “um sistema de significados, atitudes e valores partilhados e as formas simbólicas (apresentações e objetos artesanais) em que eles são expressos ou encarnados” (BURKE, 1989: 25).

Tal acepção de Burke (1989) leva em conta o cotidiano a partir das construções culturais (artefatos) e as formas de comportamentos (apresentações) e sugere que este cotidiano é consumido através de produção e criação, imprimindo uma significação aos objetos, ao que ele chamou de bricolage, isto é, “a prática de fazer as coisas por si próprio” (CLAVAL, 2001a: 303)19.

Verificamos que é possível um estudo da cidade e do urbano a partir da perspectiva cultural em Geografia, pois as várias culturas existentes na sociedade espacializam suas dinâmicas na urbe. Neste sentido, “[...] a cultura – entendida como o conjunto de saberes, técnicas, crenças e valores – é vista como associada à vida cotidiana e re-elaborada constantemente no seio das relações sociais. A cultura é ao mesmo tempo um reflexo, uma mediação e uma condição social” (CORRÊA, 2003a: 181).

O espaço carrega a marca da cultura e serve de matriz cultural, contribuindo “para a transferência, de uma geração para outra, dos saberes, crenças, sonhos e atitudes sociais” (CLAVAL, 2002: 146), funcionais e/ou simbólicas provindas do passado e impregnadas de valores a serem transmitidos:

[...] paisagem é uma marca, pois expressa uma civilização, mas é também uma matriz porque participa dos esquemas de percepção, de concepção e de

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Segundo Claval (2001), a reconstrução da geografia cultural esboçada no início dos anos 1970 manifesta uma outra forma de “fazer geografia” ao constatar que “os lugares não têm somente uma forma e uma cor, uma racionalidade funcional e econômica. Eles estão carregados de sentido para aqueles que os habitam ou que os frequentam” (CLAVAL, 2001a: 55).

19 O termo bricolage foi, primeiramente, cunhado por Lévi-Strauss (1989), n’O Pensamento Selvagem: “O bricoleur está apto a executar um grande número de tarefas diversificadas porém, ao contrário do engenheiro,

não subordina nenhuma delas à obtenção de matérias-primas e de utensílios concebidos e procurados na medida de seu projeto: seu universo instrumental é fechado, e a regra de seu jogo é sempre arranjar-se com ‘meios- limites’, isto é, um conjunto sempre finito de utensílios e materiais bastante heteróclitos, porque a composição do conjunto não está em relação com o projeto do momento nem com nenhum projeto particular mas é o resultado contingente de todas as oportunidades que se apresentaram para renovar e enriquecer o estoque ou para mantê-lo com os resíduos de construções e destruições anteriores” (LÉVI-STRAUSS, 1989: 32-33).

ação – ou seja, da cultura – que canalizam, em um certo sentido, a relação de uma sociedade com o espaço e com a natureza” (BERQUE, 1998: 85). É, portanto, nesta relação da sociedade no/com o espaço que compreendemos a dinâmica das tribos de índios do carnaval natalense, considerando indissociável do espaço a inscrição de uma identidade territorial20 formada por processos inconscientes e em permanente construção (HALL, 2003), cujas transformações espaciais provocam questionamentos identitários, com a necessidade de reformulá-los ou reconstruí-los sobre novas bases. É possível, neste prisma, perceber como os sujeitos constroem e reivindicam identidades. E, nesta discussão, os geógrafos “se interessam particularmente pela identidade dos lugares e pelos papéis que eles desempenham na formação de consciências individuais e coletivas” (BOSSÉ, 2004: 158).

Cabe-nos responder a pergunta que iniciou o tópico, “de qual cultura estamos falando?”. Como vimos, a cultura é ordinária e presente na sociedade. Se, por um lado, existe uma cultura de massas, cujo movimento vertical tende à homogeneização social, não se preocupando com as diferentes realidades dos lugares, por outro, existe uma cultura resistente a esta tentativa de imposição hegemônica que Santos (2008) denominou de cultura popular:

[...] exerce sua qualidade de discurso dos ‘de baixo’, pondo em relevo o cotidiano dos pobres, das minorias, dos excluídos, por meio da exaltação da vida de todos os dias. Se aqui os instrumentos da cultura de massa são reutilizados, o conteúdo não é, todavia, ‘global’, nem a incitação primeira é o chamado mercado global, já que sua base se encontra no território e na cultura local e herdada (SANTOS, 2008: 144).

Santos (2008) acrescenta que a cultura popular é gerada a partir das relações de vizinhança, valorizando-se a experiência da escassez, da convivência e da solidariedade que integra o território dos pobres com seu conteúdo humano21. Nestas relações vicinais, conforme Santos (1996a), não devemos apreender tão somente as relações econômicas, mas a

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Importante anotar a exímia observação de Gomes (2010), ao colocar que o que importa ao estudo geográfico não é perguntar “o que é identidade territorial?”, mas o que significa, em um dado momento ou numa determinada situação, manifestar uma solidariedade construída em torno de uma vizinhança ou de um espaço que qualifica as pessoas como semelhantes, ou seja, a significação que essa contiguidade espacial ganha dentro de um contexto específico, e é isso o que estamos querendo aqui.

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Cunha (2001) alerta ao perigo em adotar a designação de “cultura popular” para um conjunto heterogêneo e tão diversificado. A historiadora afirma que se “há algo que nos autorize a designá-los assim será apenas a necessidade transitória de delimitar um certo universo social como foco de interesse, descartando tudo aquilo que não caiba nessa imagem” (CUNHA, 2001: 298). Tal aviso se dá pela utilização do termo como uma qualificação, instrumento de análise ou caracterização dos pobres. Ao utilizar neste sentido de caracterizar os “menos favorecidos” estaremos “reiterando o mesmo tipo de discurso excludente que tratou de homogeneizar sob esse rótulo tudo aquilo que era visto como inferior, atrasado ou – na versão mais positiva – ingênuo ou infantil, ignorando suas diferenças internas e suas intenções” (CUNHA, 2001: 298).

totalidade das relações que este vínculo engendra. As pessoas reunidas, no sentido do re-

ligare maffesoliano, criam cultura e, de forma paralela, criam, também, “uma economia

territorializada, [...] um discurso territorializado, uma política territorializada” (SANTOS, 2008: 144). E, para não cairmos no discurso qualificador de uma cultura popular enquanto instrumento que caracteriza os de baixo (CUNHA, 2001), apontaremos no trabalho as diferenças, conflitos e intenções que, internamente, permeiam o carnaval das tribos de índios. Não é outro o entendimento de Cavalcanti (2006) sobre o carnaval:

[...] a natureza ambivalente e tensa de toda troca social, sempre a um só tempo, embora em graus muito diversos, permeada de acordo e conflito. Com isso, o carnaval revela também, com especial clareza, a importância das passagens e mediações na vida social, iluminando o papel dos mediadores na tessitura de redes de relações extremamente complexas. São esses atores sociais que, com abertura e criatividade, agenciam múltiplos códigos e articulam o conjunto vivo que desemboca anualmente num desfile (CAVALCANTI, 2006: 18).

Os símbolos produzidos por essa cultura popular portam a verdade da existência e revelam a sociedade em seu movimento, contrariamente àqueles da cultura de massas, voltados para o mercado e ideologicamente implantados na sociedade22, cuja linguagem deste espetáculo carnavalesco é constituída por “signos da produção reinante que são ao mesmo tempo o princípio e a finalidade última da produção” (DEBORD, 2003: 10). Os signos da produção relatados por Debord (2003) são globalizados pelo moderno sistema de produção cultural, deveras global e dinâmico, desenvolvido pela indústria cultural, e têm como finalidade manter predominante a função de produção/distribuição de massas e suplantar as práticas de criação ligadas aos bens e manifestações locais (como, por exemplo, as tribos de índios do carnaval natalense).

Se, por um lado, a moderna cultura urbana, que valoriza o mercado e o consumo globalizado, tendendo a uma homogeneização da sociedade – pelo menos para aqueles que podem adquirir os produtos globais de consumo – e ao fechamento (ou até exclusão) dos usos deste mercado por alguns grupos e agentes (as camadas pobres), por outro, encontramos neste mesmo meio social outras expressões culturais que, paradoxalmente, conduzem-nos a um produto cultural nascido nos de baixo, que nos permite considerar a cultura urbana e a cidade

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Se pensarmos em cultura de massa no carnaval, rapidamente somos reportados ao carnaval elétricos baianos ou das luxuosas escolas de samba cariocas. Não que a espontaneidade e a convivência solidária estejam ausentes dessas manifestações momescas, mas que o capitalismo já se encontra impregnado e ditando as regras do jogo, conforme podemos ver em inúmeros trabalhos acadêmicos que discorrem sobre a temática.

como realidades permeadas por inúmeras culturas; os quais são, verdadeiramente, cidades dentro de uma cidade.

Sabemos do perigo em se cair na armadilha de uma visão dicotômica e maniqueísta do carnaval “tradicional” das tribos de índios de um lado e do carnaval “moderno” de outro, posto que os indivíduos que participam da cultura popular podem ser os mesmos que aderem à cultura de massas. Não pretendemos fazer um discurso “essencializante” da cultura popular, mas demonstrar que o devir da História criou um mercado carnavalesco de bens simbólicos, normatizado e politizado, mas que guarda em seu cerne o aspecto popular do carnaval. Também não devemos dicotomizar cultura popular e cultura de elite – próximo do modelo de Redfield: “pequena tradição” e “grande tradição” – pois aquela, dada a informalidade, é aberta a quem quiser participar, sejam aqueles das classes populares quanto os mais abastados (BURKE, 1989).

No processo de produção do carnaval, os agentes que participam das tribos de índios experienciam vivências coletivas, produzindo um conhecimento e uma cultura territorializada. É neste sentido que Santos (1996a) afirma a existência de um novo debate promovido pelos pobres, seja silencioso ou ruidoso:

É assim que eles reavaliam a tecnoesfera e a psicoesfera, encontrando novos usos e finalidades para objetos e técnicas e também novas articulações práticas e novas normas, na vida social e afetiva. [...]

Diante das redes técnicas e informacionais, pobres e migrantes são passivos, como todas as demais pessoas. É na esfera comunicacional que eles, diferentemente das classes ditas superiores, são fortemente ativos (SANTOS, 1996a: 326).

É, portanto, no estudo do cotidiano, que atentamos para uma compreensão do conceito de cultura enquanto uma categoria que nos permite entender o que ocorre na sociedade, de modo a interpretar a vida social. A concepção de “cultura” tem em seu sentido “um mapa, um receituário, um código através do qual as pessoas de um dado grupo pensam, classificam, estudam e modificam o mundo e a si mesmas” (DAMATTA, 1986: 123). Tal código reside dentro e fora do agente, pois não se trata de uma simples escolha do indivíduo, tampouco é algo dado pela sociedade.

A dinâmica da cultura comporta a capacidade inventiva do homem, a forma como as relações sociais são construídas, por ser portadora de códigos que permitem aos indivíduos se relacionarem.