• Nenhum resultado encontrado

Mapa 7 – Redes socioespaciais da tribo de índios Tabajara

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Buscou-se no presente trabalho compreender a complexa rede de relações existentes no contexto social das tribos de índios do carnaval natalense, resgatando os significados impressos nas territorialidades, sobretudo no uso do território e nas intencionalidades a eles inerentes, que esteiam táticas de cotidianidade.

Discutimos, ao longo do estudo, a participação de vários segmentos da sociedade, delimitando as posições e papéis dos agentes nas ocasiões sociais geradas em torno do carnaval das tribos, desde o surgimento, através de um resgate histórico da formação destas agremiações, até o atual momento, revelando uma profusão de atividades que permitem uma leitura cultural do espaço, englobando aspectos políticos, econômicos e simbólicos.

No primeiro capítulo não tivemos por objetivo proceder a uma arqueologia do carnaval em Natal, mas identificar alguns princípios estruturadores desta diversão e lazer, procurando elementos e caraterísticas ainda presentes, bem como as mudanças ocorridas no decorrer do tempo, focando, também, os conflitos que sempre existiram na festa carnavalesca, afastando-nos de uma perspectiva comunitas do carnaval.

Desde o início do século XX, os festejos carnavalescos encontravam-se envoltos numa dialética socioespacial, seja com a repulsa às brincadeiras entrudísticas e os “ares de civilização” do carnaval “moderno”, até as manifestações populares – como as tribos de índios – e as soirées das elites locais. Argumentamos, pois, a ideia de “tudo junto e misturado”: coexistentes e simultâneos, porém, espacialmente separados.

Não deixamos de considerar as condições estruturais da sociedade, refletindo sobre a composição do mundo social, ressaltando as relações de poder que agrupam o Poder Público, outros agentes e as agremiações indígenas, revelando a dependência destes para a feitura do desfile, sob dois enfoques: político e econômico, conforme vimos no segundo capítulo.

Compreender certas marcas da “brasilidade” não é, ainda, o foco dos estudos das ciências sociais brasileiras. Contudo, ao serem abordadas, os estudiosos voltam-se para o ângulo político e ideológico, sobretudo as relações de poder e dominação do Estado e do sistema capitalista, desconsiderando – ou simplesmente não abarcando – algumas dinâmicas sociais, políticas e econômicas que, também, merecem estudos sob esta ótica, a exemplo do carnaval.

Vários agentes engendram relações típicas do meio social, apontando para uma formação hierarquizada, seja numa perspectiva macro de poder exercida pelo agente público sobre as tribos de índios, seja no interior dos bairros, cujos mecanismos políticos relativizam e propõe uma leitura de menor abrangência e de diálogo, mas que guarda o seu caráter de um campo de forças bourdieusiano, com dominantes e dominados.

Do ponto de vista econômico, a tribo de índio é uma espécie de empresa, com certa divisão do trabalho, deslocamentos e pesquisas mercadológicas. Apesar de determinada informalidade, existe uma produção que sugere um estudo de sua infraestrutura e organização com vistas à sua finalidade: produzir um espetáculo carnavalesco.

Para o desfile de carnaval, as tribos de índios recorrem a vários ajustes econômicos, envolvendo agentes do circuito superior e inferior da economia urbana, bem como mecanismos financeiros que permitem a confecção das alegorias e fantasias, estabelecendo uma racionalidade específica para suas necessidades que dialoga, de forma complementar e dialética, com a racionalidade hegemônica.

Da prática carnavalesca emerge o sentimento de pertencimento ao grupo, calcado na vicinalidade e nas sociabilidades geradas, tecendo condições determinantes da vida social, pois possibilita uma tríplice função enunciativa: é um processo de apropriação, é uma realização espacial do lugar e implica relações culturais (sociais, políticas, econômicas e simbólicas). Através das táticas cotidianas, as tribos de índios atualizam a ordem espacial, ao transformarem o significante espacial, o que chamamos de refuncionalização dos objetos. Este foi o objetivo do terceiro capítulo do presente trabalho.

A rua foi discutida como um local público que, para além do controle e normatização das forças impessoais que dominam a nossa sociedade individualista, é prenhe de uma relação com o cotidiano que a refuncionaliza, dotando de novos usos e significados, através das territorialidades manifestadas pelos ensaios das tribos de índios, seja como dominação do espaço – categoria material e concreta desta territorialidade – seja enquanto apropriação simbólica.

A via pública funciona, também, como um lugar intermediário entre a “casa” e a “rua”, através das privatizações pelo uso cotidiano do espaço público, a exemplo das pessoas que assistem aos ensaios e colocam cadeiras nas calçadas ou mesmo na rua, demarcando um território. Vimos que as tribos espraiam suas territorialidades, sobretudo nos ensaios gerais,

quando se apropriam, ainda que momentaneamente, de outros espaços – ruas –, simulando o desfile na “avenida”.

Enxergando o desfile – pensado de modo abrangente – como um ritual dramático, verificamos que as agremiações indígenas reforçam o bairrismo e os vínculos vicinais, inscrevendo uma identidade territorial com o bairro ou o município, por meio dos discursos que tendem a ser tratados com irrelevância nos estudos do mundo moderno, sobretudo quando se tenta compreender o urbano. Mas é justamente nestes momentos de festividades da sociedade brasileira que visualizamos o fenômeno de uma espécie de agrupamentos humanos autênticos e espontâneos – as tribos de índios –, que dialogam com outros inúmeros agentes que compõem o mundo social, estabelecendo relações intermediadas pela cultura e, negocialmente, afirmando seus projetos.

Muito embora exista uma racionalidade que conduz as pessoas, inclusive aqueles pertencentes às camadas populares, a outras formas de entretenimento e lazer no período carnavalesco, o carnaval tradicional do desfile de tribos de índios e escolas de samba, de certa forma, interessa a estes setores populares, pois, de algum modo, fala uma linguagem que eles aceitam e compreendem.

Nos ensaios que ocorrem na rua ou no desfile carnavalesco em si, as pessoas estão se relacionando com o espaço e a partir dele, exercendo sociabilidades mediadas por vínculos de amizade, parentesco, vizinhança, produzindo e reforçando identidades sociais e, porque não dizer, territoriais. A representação dramática da manifestação cultural ultrapassa a própria performance corporal e nos conduz a um ritual mais amplo, que envolve inúmeros agentes num sistema espacial que abarca várias territorialidades, num foco multiescalar e multidimensional.

Nesta interrelação espacial com o espaço público ocorrem três fenômenos importantes, que são propriedades espaciais: ordem, co-presença e visibilidade. Encontrar-se no espaço é estabelecer uma ordem, conforme vimos na configuração espacial do desfile de carnaval: trabalhadores informais, espectadores e consumidores, amigos e vizinhos, encontros, namoros, alegria e lazer, e tudo isso ordena o território, conduzindo a territorialidades múltiplas, que são, a um passo, concretas e simbólicas.

As várias significações dão as indicações de como os objetos e ações são organizados, ordenando, qualificando e, sobretudo, propondo comportamentos. A rua é um espaço público por excelência e nela podemos vislumbrar esta ordenação das coisas e das pessoas, como

ocorre no ensaio das tribos de índios; na fronteira estabelecida – porém transponível – entre o grupo carnavalesco e os outros agentes que participam daquela cena pública; no universo da casa (privado) e da rua (público), para ver e ser visto, permitidos pela co-presença.

Quando estamos tratando de relações e suas dimensões, estamos dizendo que elas são culturais, pois permeiam a estrutura social e se inscrevem no espaço. Daí porque não podemos dissociar as instâncias, tampouco o tempo e o espaço. Diríamos, pois, que podemos entender a sociedade, sempre em processo e movimento, dotada de um espaço-tempo específico.

No interior desta formação socioespacial, sublinhamos que há uma existência social escapando da racionalidade hegemônica, inscrevendo outras temporalidades e territorialidades, numa multiplicidade de situações, criadoras de uma riqueza material e imaterial, isto é, de cultura. Presentes estão, portanto, os três componentes do espaço urbano: sua morfologia (formas concretas), os comportamentos (maneiras de estar) e os significados dados às ações.

Estas experiências vislumbradas nas tribos de índios carnavalescas permitem-nos pensar que é necessária a continuidade destas formas de lazer popular, aproximando-se da cultura que permeia os de baixo, e não propriamente das atividades racionais e do capital. As instituições e os governos devem estimular esta produção, enquanto projeto político, unindo a economia, a cultura e a sociedade, a partir dos hegemonizados.

A participação das tribos de índios no carnaval, enquanto grupos provenientes das camadas menos abastadas, permite-nos compreender a passagem de uma resistência destes grupos nos carnavais das primeiras décadas do século XX, para relações de negociação, sobretudo com os agentes políticos – Poder Executivo, políticos locais e conselhos comunitários, demonstrando um movimento dialético porque passaram estas agremiações, sinalizando o reverso desta resistência para um momento, até mesmo, de cooptação social.

Também, como verificamos no decorrer do trabalho, é patente a cooptação destes grupos de carnaval pelos agentes políticos, sobretudo em época de eleições, formando uma espécie de “curral eleitoral”, justificada na contrapartida de ajuda e apoio às agremiações.

Este desenho atual das agremiações indígenas delimitou-se pelas modificações do carnaval natalense, com uma crescente participação do Poder Público através da subvenção aos grupos carnavalescos e a organização institucionalizada do desfile de escolas de samba e tribos de índios.

Experienciar o cotidiano em torno do carnaval das tribos de índios é vislumbrar procedimentos criativos que envolvem táticas do dia-a-dia, funcionando como uma verdadeira bricolagem, ao produzir novas formas-conteúdos através de objetos passados e finitos refuncionalizados. As bricolagens podem ser desde a apropriação das vias públicas, fazendo delas sua quadra de ensaio, até a confecção das alegorias e fantasias, adquirindo produtos usados a baixos preços que se somam aos artefatos utilizados no carnaval anterior para a produção de novas fantasias e alegorias, elaborando, artesanalmente, objetos que são, a um só tempo, materiais e de conhecimento, pelo que expõe o universo carnavalesco destas agremiações, comunicando-se com a sociedade.

Por tais razões, entendemos que produzir o desfile carnavalesco para estas agremiações remete a uma profusão de táticas e agenciamentos marcados pela negociação, reciprocidade e solidariedade, mantendo o grupo coeso, sob uma base identitária que o conduz ao lugar em que se encontra estabelecido, definindo aspectos territoriais, sociais e culturais.

Propusemo-nos compreender o carnaval das tribos de índios como um fato social, sob a análise geográfica, sem a intenção de exaurir a temática, pela própria complexidade do conteúdo e por não se tratar de algo estanque e facilmente esgotável. Preferimos dizer que o estudo buscou lançar proposições e sugerir novas discussões, dentro de uma perspectiva que une cotidiano, espaço e cultura e, caso ocorra de se suscitarem outros questionamentos, esta dissertação já terá cumprido seu objetivo.