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OS USOS POLÍTICOS DO TERRITÓRIO NO CARNAVAL DAS TRIBOS

Mapa 7 – Redes socioespaciais da tribo de índios Tabajara

3. O CARNAVAL DAS TRIBOS: ARRANJOS E PRÁTICAS ESPACIAIS

3.2. OS USOS POLÍTICOS DO TERRITÓRIO NO CARNAVAL DAS TRIBOS

Compreender a rede de relações políticas ligadas ao carnaval das tribos de índios conduz a um importante contexto espacial141. É no nível político “que são feitas as escolhas que repartem entre os cidadãos as possibilidades de agir sobre o espaço” (CLAVAL, 2001a: 299). O uso político do território define diferentes territorialidades, implicando em práticas que congregam inúmeros agentes e revelam vários campos de poder, interesse e negociação:

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Neste sentido, Roberto Lobato Corrêa (2003b) nos afirma que “o espaço organizado pelo homem desempenha um papel na sociedade, condicionando-a, compartilhando do complexo processo de existência e reprodução social” (CORRÊA, 2003b: 28).

“Toda sociedade é tecida de jogos de influência, de dominação e de poder na medida em que se trata de aspectos inerentes à vida de relações” (CLAVAL, 2008: 32). A proposta aqui analisada não se refere somente ao poder institucional das esferas legais – estado e município – mas também aos outros agentes que participam desta trama, delimitando e reorganizando o território, estabelecendo relações e interesses locais.

Tal rede de relações existente no carnaval das tribos de índios demonstra que, embora o evento seja sinônimo de lazer e divertimento, guarda tensões e conflitos, assim como projetos e discursos mediados pelos entes públicos e privados, em um espaço estruturado por posições “cujas propriedades dependem da sua posição nesses espaços e que podem ser analisadas independentemente das características de seus ocupantes” (BOURDIEU, 2003a: 119).

Essa rede de agentes que se estabelece no meio urbano os articula: o Poder Público, as tribos de índios – através dos seus representantes –, os políticos, as lideranças comunitárias – que, por sua vez, têm relação com partidos e políticos locais. Esta trama congrega uma variedade e pluralidade de agentes que “agem e, em conseqüência, procuram manter relações, assegurar funções, se influenciar, se controlar, se interditar, se permitir, se distanciar ou se aproximar e, assim, criar redes entre eles. Uma rede é um sistema de linhas que desenham tramas" (RAFFESTIN, 1993: 156).

O carnaval das tribos de índios atravessa circuitos que envolvem o Poder Público e as agremiações, cujo foco de atuação consiste em subvencioná-las, fomentando uma política de valorização cultural. Nas festividades momescas do ano de 2012, o auxílio do governo estadual ocorreu mediante edital que contemplou nove tribos de índios. O edital exigiu inúmeros documentos aos presidentes das tribos, impossibilitando algumas agremiações de participarem do processo editalício, devido à existência de dívidas com o erário, como ocorreu com Valdir, presidente da tribo de índios Tapuias. Já a prefeitura da cidade, menos exigente, subvencionou todas as tribos das chaves A e B, excetuando-se a agremiação que desfilou no grupo de acesso142.

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O desfile das tribos de índios é dividido em duas chaves e o grupo de acesso. Desfilam cinco tribos de índios na chave “A” e quatro agremiações indígenas na chave “B”. Quanto ao grupo de acesso, de acordo com o decreto regulamentador do desfile, não há indicativo do número de agremiações no grupo de acesso, porém, para o carnaval de 2012, assim como ocorreu em anos anteriores, somente uma agremiação desfilou, provavelmente pela falta de incentivo financeiro àqueles que saem no grupo de acesso. A tribo de índios Potiguares, por ser au

Um primeiro dado a ser apontado dentro de uma discussão jurídico-política que envolve as tribos de índios carnavalescas é a restrição espacial das agremiações. Conforme o Regulamento para o carnaval de 2012, a exemplo dos anos anteriores, as inscrições para os grupos de temática indígena restringe-se àqueles provenientes da Região Metropolitana de Natal – RMN. Observa-se, entretanto, a ausência de dois municípios que participam da RMN, Monte Alegre e Vera Cruz – incluídos em 2005 e 2009, respectivamente –, que não figuraram entre as cidades que poderiam ter grupos inscritos para o carnaval de 2012.

Temos, portanto, a construção de uma base social-geográfica do fenômeno num território jurídico-político restrito a sete municípios do estado (Natal, Extremoz, Macaíba, Parnamirim, São Gonçalo do Amarante, Ceará-Mirim, São José de Mipibu e Nísia Floresta). Destes, apenas dois – Extremoz e Nísia Floresta – não têm tribos de índios no desfile carnavalesco de Natal.

Na relação entre gestores e grupos indígenas – bem como os outros grupos carnavalescos – existem variações jurídicas, políticas e econômicas conforme o titular do Executivo (municipal e estadual), fato que reflete diretamente nas agremiações:

“Quando tem um governo que é transparente, temos um bom relacionamento. Há uma identificação diferenciada de um governo para outro. Neste governo agora [referindo-se à prefeita da capital Micarla de Sousa], tivemos os quatro anos de governo, quatro anos de sofrimento [...]. Agora nós estamos com dificuldades, não recebemos o prêmio de 2012. No ano passado saiu no mês de agosto e agora, a gente não sabe nem se sai esse ano” (Kerginaldo Alves – Presidente da AESTIN).

Se tomarmos como parâmetros os anos de 2011 e 2012, o Executivo Estadual não patrocinou o carnaval no primeiro ano de governo alegando inviabilidade financeira, o que gerou desconforto nas tribos de índios, conforme podemos perceber na colocação da presidente da tribo de índios Gaviões-Amarelo:

“Todo ano o Governo dá uma contribuição, dava né, até Rosalba entrar, que desde o começo que ela entrou, só fala em buraco. Num sei quando vai tapar esse buraco, mas ela tem que tapar e dar uma ‘abertinha’ pra colocar a cultura no meio, que é botar o carnaval” (Zeneide Diniz – Presidente da tribo de índios Gaviões-Amarelo).

Já no carnaval de 2012, foi publicado edital que contemplou várias categorias carnavalescas – escolas de samba, tribos de índios, festas, blocos e troça. Como promotor das festividades na capital, o Governo do Estado buscou legitimar essa participação promovendo um evento para a entrega simbólica dos recursos financeiros aos grupos carnavalescos e as

tribos de índios, ocorrida no Palácio da Cultura – antiga sede do governo do RN – em ato público, com a participação da Governadora Rosalba Ciarlini que, através de suas “próprias mãos”, entregou os cheques aos grupos vencedores da concorrência editalícia. Ato político e ritualístico, o evento atraiu inúmeros olhares, sobretudo os da imprensa local.

Figura 1 – “Ritual” de entrega da subvenção estadual para o carnaval de 2012

Foto: Autor, 2012

A Prefeitura de Natal, por seu turno, como principal promotora do evento carnavalesco, dispõe recursos às agremiações e monta a estrutura utilizada na festa. Para garantir o efetivo controle, o executivo municipal promove reuniões com as tribos de índios e escolas de samba. Nelas, trata-se dos aspectos necessários para a realização do carnaval. Numa das reuniões, que contou com a participação de funcionários da FUNCARTE, membros da AESTIN e os presidentes – ou seus representantes – das agremiações, foram discutidos os valores a serem repassados às agremiações.

Com momentos de tensão, a reunião demonstrou o claro conflito existente entre escolas de samba e tribos de índios – apontadas pelas escolas de samba como uma espécie de “escolas de samba de pequeno porte” –, revelando que os conflitos existentes não se dão somente entre as agremiações e a administração pública. A Prefeitura disponibilizou um valor

global para as tribos e escolas, que foi repassado à AESTIN. Esta, por sua vez, montou três tabelas de repasse aos grupos de carnaval, pelo que foram debatidas na reunião com o intuito de escolher qual seria efetivamente aplicada.

Notamos imensas discussões, sobretudo pelos membros das tribos de índios que insistiam nos repasses de forma igualitária com as escolas de samba. Dissensões internas também foram verificadas, como os conflitos referentes aos valores entre as chaves A e B dos respectivos grupos (escolas e tribos). Vimos, pois, diferentes interesses na rede de agentes, que não nos permite imprimir uma ideia de homogeneidade e unidade das agremiações carnavalescas.

Fórum privilegiado para a reflexão sobre a ordem de desfile e composição da comissão julgadora, novos impasses ocorreram. No que concerne à ordenação, foi possível compreender as peripécias de alguns presidentes de tribos de índios em desfilar em primeiro ou último, no sábado ou domingo, em virtude do “aluguel” de pessoas às outras agremiações. O mote para que se colocasse, por exemplo, a tribo de índios Potiguares para desfilar no sábado, abrindo o carnaval tradicional, ao invés de entrar na avenida no domingo, junto com as tribos da chave A, residiu no fato de que os participantes foram os mesmos que desfilaram na tribo de índios Tabajara, garantindo um bom retorno financeiro para o presidente desta, Paulo Lira.

Quanto à contribuição da prefeitura destinada às agremiações carnavalescas, Paulo Lira fala, com infelicidade, do prêmio destinado aos vencedores do carnaval de 2011:

“Quando eu entrei no carnaval já existia [apoio], só que a prefeitura dava essa ajuda. Agora, infelizmente, nosso município é de acordo como o povo merece: elegeram Micarla de Souza. A premiação do carnaval deste ano veio sair no mês de setembro. Então olhe o quanto esse povo sofre pra fazer cultura. Se eu esperar só esse dinheiro eu não consigo fazer não” (Paulo Lira – Presidente da tribo de índios Tabajara).

A ausência de investimentos e apoio traduz no que Dozena (2009) chamou de “condição de mendicidade”, fato observado nas tribos de índios do carnaval natalense. Se, por um lado, tal condição inviabiliza o crescimento estrutural da agremiação, por outro, permite que o grupo busque, justamente pela escassez, alternativas que torne exequível a pretensão de desfilar no carnaval. Alguns presidentes de tribo, por meio de ajustes locais, adquirem, ainda que momentaneamente e sem prazo certo, locais que possam colocar os artefatos da

agremiação, outros, porém, não conseguem tais ajustes e utilizam suas próprias residências como barracão.

Mapa 2 – Barracões e os agenciamentos socioespaciais

A tribo de índios Potiguares, do bairro Rocas, guarda suas alegorias e fantasias na Escola Estadual Café Filho, porém, o agenciamento estabelecido com a diretoria da escola não é tão amistoso, conforme podemos perceber na colocação do presidente da agremiação: “A gente guarda tudo junto ali no Café Filho; é uma briga danada aqui com a gente lá do Café Filho, tira num tira, [...] fui na Secretaria de Educação, falar lá, pra nós ficar” (Raimundo Brasil – Presidente da tribo de índios Potiguares).

Por outro lado, a agremiação Tabajara, localizada no bairro Felipe Camarão, conseguiu o apoio do Clube de Mães Sali Farias, que cedeu o espaço e hoje é a atual sede do grupo carnavalesco. Já a Gaviões-Amarelo não conseguiu lugar para depositar os artefatos entre os agenciamentos locais, muito embora tenha recebido ajuda do Conselho Comunitário local.

A condição de mendicidade funciona como engate aos engajamentos políticos pelas agremiações. No ano eleitoral de 2010, por exemplo, muito embora não tenha ficado muito satisfeita, a presidente da tribo Gaviões-Amarelo, Zeneide Diniz, informa que foi ajudada por políticos:

“Ano passado foi ano político, ninguém pôde ajudar, porque estava todo mundo em política, gastando demais e eu fiquei a ver navios, mas mesmo assim, eu tive ajuda ainda de Cláudio Porpino, porque eu trabalhei pra ele, eu pedi voto pra ele. Iberê ainda deu um pouco de ajuda, mas não porque é pra sua tribo assim; deu porque eu trabalhei pra ele, porque eu fui atrás de voto pra ele. Não é que ele compre alguma coisa, é que eles têm esse trabalho. Como eu tenho um grupo desses, é interesse pra ele, é interesse pra qualquer político. Tem eleitor no meio; tendo eleitor você tem voto. Os meus meninos, muitos deles votaram” (Zeneide Diniz – Presidente da tribo de índios Gaviões-Amarelo).

Em 2012, a mesma presidente apoiou, novamente, o candidato a vereador Cláudio Porpino, relacionando inúmeros votos. De acordo com Zeneide Diniz, o elegível garantiu que, caso assumisse uma cadeira na Câmara dos Vereadores de Natal, viabilizaria um terreno para a construção da sede da tribo de índios.

Se pensarmos em uma rede de poder, percebemos que na correlação de forças entre a representante da tribo de índios e o político, eles se encontram em planos diversos, não obstante haja interesses de ambos. O candidato necessita dos votos, todavia, pela própria ausência de recursos, a agremiação carnavalesca tem um maior interesse em jogo, até mesmo para a própria subsistência do grupo carnavalesco. Ademais, a votação é anterior à promessa do terreno para a construção do barracão, isto é, ainda que o candidato consagre-se vereador da cidade, não há a garantia do espaço físico, estando, tão somente, no plano ideológico.

Podemos perceber que no interior dos grupos sociais, incluindo-se as agremiações carnavalescas, é verificada a construção de modernos “currais eleitorais” e mecanismos de trocas de favores: auxílio pecuniário por voto. Esta prática é conhecida no Brasil desde a República Velha e adotada ainda hoje por meio de outras vias, como os pequenos grupos em bairros dos grandes centros urbanos.

Esta dimensão política enquanto uma rede de relações espacialmente estabelecidas espacialmente propõe a instrumentalização de territorialidades a partir dos interesses dos agentes que participam deste complexo relacional. Ainda com relação à tribo de índios Gaviões-Amarelo, foi possível observar os raios de ação que convergiam para candidatos locais: Rafael Motta e Cláudio Porpino. Em busca de melhorias para a tribo de índios, a

presidente da agremiação Zeneide Diniz se permitiu adentrar neste “imbróglio”, de modo a apoiar os dois políticos para as eleições de 2012.

Já vimos alhures os interesses que permearam a relação entre a tribo carnavalesca e o vereador eleito Cláudio Porpino. Quanto ao também eleito à Câmara Municipal de Natal pelo Partido Progressista, Rafael Motta, não se tratou substancialmente de interesses vindouros, mas de retribuição à ajuda e empenho da presidente do Conselho Comunitário do Conjunto Cidade do Sol.

Expressa espacialmente no Conselho Comunitário, a territorialidade da entidade representativa do conjunto Cidade do Sol, por meio de sua presidente Judinéia Belchior, abrange toda a localidade, definindo o controle e os limites de ação das redes políticas estruturadas em torno do conselho. E a tribo de índios, por se encontrar localizada em seu raio de abrangência e, sobretudo, pelas relações estabelecidas com a entidade, foi colocada nos planos de orientação política do ente comunitário. Tal relação possibilita-nos identificar a multidimensionalidade do poder, construída a partir de uma rede hierarquizada entre o político, o conselho comunitário e o grupo carnavalesco.

A presidente da tribo carnavalesca ao não agir nos moldes esperados pela presidente da entidade representativa do conjunto, isto é, não desenvolver o apoio político a contento, ocasionou uma dissenção que, certamente, será sentida pela agremiação no próximo carnaval, a não ser que o vereador eleito Cláudio Porpino supra as necessidades que outrora foram realizadas pelo Conselho Comunitário. Entendemos, pois, que as territorialidades definiram- se pelas articulações políticas que envolveram diversos agentes sociais.

Tais territórios políticos são configurados de forma descontínua e dinâmica, sendo definidos pela influência dos agentes e pelas relações políticas estabelecidas. Assim, se no ano de 2012 a relação entre o Conselho Comunitário e a tribo de índios Gaviões-Amarelo foi positiva, para o ano de 2013, possivelmente, não será tão amistosa pela dissenção ocorrida em virtude das escolhas políticas.

Pelo exposto no presente tópico, podemos perceber que o carnaval das tribos de índios figura-se como palco para negociações e agenciamentos políticos em vários níveis, desde a participação efetiva dos governos estadual e municipal até relações que se estabelecem no interior dos bairros, mas que se refletem externamente.