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Trajetória ritualizada da Tupi-Guarani

Ao som da conhecida toada, os “índios” realizam o deslocamento, andando e dançando na própria rua e, durante o percurso, inúmeras pessoas saem do interior de suas casas para ver a agremiação passar. Este colocar-se à rua, do privado ao público, é entendido como um rito; e a ida da tribo ao local de ensaio torna-se ritualizada, pois carrega em si uma performance teatralizada e espetacularizada do próprio trajeto.

Após o ensaio, o grupo retorna à residência do presidente, com seus arcos e flechas à mão para o momento de socialização, onde, entre um copo d’água e outro, os jovens conversam e se divertem, mas, também, ouvem com atenção as orientações de Paulo Sérgio dos Santos.

Verificamos uma disputa territorial entre os usos normatizados, através da utilização da rua como espaço de fluxo, nos parâmetros legais, e o uso paralelo, lugar da cotidianidade e espontaneidade, ultrapassando a lógica formal e recriando a normatização. Neste sentido, os indivíduos tornam-se agentes do cenário por escreverem novas dinâmicas no espaço, através de outros usos possíveis, para além do funcional/racional, tornando-se, a rua, um lugar de

ações e intencionalidades, modificando-se o estatuto e a finalidade do espaço público168. Pari

passo, reorganiza-o através de um novo cenário improvisado por outras práticas.

Esta dinâmica estabelecida pelas tribos carnavalescas em Natal nos autoriza a afirmar diferentemente de Carlos (1996) em que, analisando a realidade das metrópoles do mundo moderno, afirma estar havendo uma atenuação das sociabilidades, em virtude do fim das atividades que ocorriam nos bairros. A geógrafa constatou “o fim dos encontros nas esquinas, os ensaios das escolas de samba que antes ocorriam nas ruas dos bairros, hoje ocorrem em quadras cobertas e fechadas” (CARLOS, 1996: 88). No entanto, esta realidade revelada pela autora não deve ser contemplada de forma absoluta, visto que a rua tem, também, o sentido da festa, da reivindicação e do encontro 169.

Ademais, não são as quadras das agremiações carnavalescas que definirão o fim das sociabilidades, mas, pelo contrário, a quadra passou a ser ela mesma este espaço para os encontros. Analisando as territorialidades do samba em São Paulo, Dozena (2009) demonstra claramente esta perspectiva das apropriações dos espaços a partir de um imaginário relacionado ao samba, enquanto representações da vida urbana:

São estas apropriações do espaço geográfico que o transforma em “territórios do samba”, apropriações assumidas como mediação de representações construídas a partir de um imaginário ao samba relacionado, onde os próprios bairros passam a fomentar representações da vida urbana. Não somente eles como também as quadras e barracões das escolas de samba, os viadutos apropriados para ensaios, os fundos de quintal, as lajes de casas simples, os centros culturais e praças públicas, os bares, as feiras e ruas onde as rodas de samba acontecem. Mais do que simples edificações ou áreas situadas em algum ponto da cidade, estes lugares adquirem uma diversidade de significados e valores subjetivamente projetados e territorializados (DOZENA, 2009: 25).

É interessante frisar que além da apropriação da via pública pela tribo de índios, para os ensaios, existem outras apropriações deste mesmo espaço público por outros indivíduos e grupos, demonstrando a existência de múltiplas territorialidades presentes e coexistentes num

168 Conforme Luchiari (2001), “As mudanças morfológicas na paisagem não são inócuas e não podem ser

analisadas independentemente das práticas sociais. A produção de um novo contexto material altera a forma/paisagem e introduz novas funções, valores e objetos. Esses objetos, formas dotadas de conteúdo, permeadas pelas ações e contextualizadas por um sistema de valores, são imbuídos de significação e intencionalidade. A noção de intencionalidade estabelece uma estreita relação entre ação e objeto” (LUCHIARI, 2001: 12-13).

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Na mesma obra, Carlos (1996) coloca que o sentido do lugar de encontro e da reunião na metrópole paulistana não se perdeu definitivamente, mas que se tornou esporádico (CARLOS, 1996: 88).

mesmo espaço e com finalidades diversas170. A partir daqueles que seguem às ruas para produzir a encenação carnavalesca, agregam-se outros usos do território por aqueles que saem à rua para assistir, permitindo relações de sociabilidade e de vizinhança no interior do grupo, mas, também, exterior a ele. Neste sentido, os “significados que um determinado suporte material (esquina, calçada, quintal, rua, etc.) pode assumir, resultam da sua conjugação com uma atividade e mudam de acordo com ela” (SANTOS, 1985: 49).

A única alternativa de ensaiar na rua traduz-se na visibilidade, ou seja, no ver e ser visto pela sociedade. As relações de vizinhança são importantes no bairro, na rua, enfim, nos ambientes sociais. É neste sentido que se verifica o diálogo existente nas tribos de índios com o seu entorno, conforme podemos perceber nas palavras de Valdir: “Aqui mesmo eu faço, aqui mesmo eu fico, aqui mesmo eu ensaio. Peço licença a esse pessoal aqui, peço licença, em virtude do barulho, para não perturbar” (Valdir– Presidente da tribo de índios Tapuias).

Note-se o respeito com os vizinhos ao enfatizar que solicita às pessoas que ali moram a permissão para realizar o ensaio. Também, nos dias em que há culto religioso (evangélico) em alguma residência do entorno, o ensaio é feito no interior da casa do presidente da agremiação. No presente caso, verificamos a relação dialógica entre aqueles integrantes da tribo de índios com o entorno. Trata-se de uma disputa territorial, um lugar de negociação, seja por meio do diálogo ou do conflito, dependendo dos ritmos e sentidos dos agentes. Neste sentido, ensina Haesbaert (1999): “É no encontro ou no embate com o outro que buscamos nossa afirmação pelo reconhecimento daquilo que nos distingue, que pode promover tanto o diálogo quanto o conflito com o outro” (HAESBAERT, 1999: 175).

As dissenções e discordâncias nas apropriações que as tribos fazem dos espaços públicos são condições sine qua non para o viver em sociedade, pois o choque é próprio da dinâmica social. Mas, o mais importante, é a negociação a partir do dissenso. Restabelecer o equilíbrio é pensar na flexibilização das normas sociais (morais) criadas pelos apropriadores dos espaços, sempre na lógica do acordo.

É no sentido aqui esboçado que compreendemos os usos da rua em sua processualidade, cujas regras encontram-se sempre em construção, tanto do espaço quanto das relações sociais estabelecidas. Nesta combinação percebemos a rua não só como um suporte

170 Neste sentido, Gomes (2001) explicita: “[...] cada um destes grupos desenvolve formas próprias de agenciar

sua territorialidade, ou seja, de impor uma presença identitária sobre uma certa extensão espacial, definida pelo contraste e pelo conflito, e que por isso se define como um território” (GOMES, 2001: 100).

espacial, mas como um conjunto de ações determinadas e determinantes deste espaço, valorada pelos agentes que desempenham papéis diversos: os participantes da tribo, os transeuntes, os que assistem o ensaio, entre outros.

Entre os participantes, enquanto alguns estão dançando, outros se acham no apoio. Aos que assistem, alguns se encontram na rua ou na calçada, sentados ou em pé, e outros permanecem no interior de suas casas, assistindo através da janela171. São nestes momentos de interação que verificamos, sobretudo no substrato mais pobre da cidade, as sociabilidades fundadas nos laços vicinais, existindo, pois, uma interpenetração do espaço público com o espaço privado que pode ser compreendida como o entrelaçamento destes dois domínios que convidam à sociabilidade, enquanto lócus da convivência por excelência.

O ensaio, muito embora ocorra na rua, cria um espaço que atravessa o público e adentra a casa do presidente da tribo, que, neste momento, perde o status de residência e assume o caráter de “sede do bloco”. As palavras de Milton Santos (1987) resumem o que estamos querendo dizer, pois o território no qual vivemos “é mais que um simples conjunto de objetos, mediante os quais trabalhamos, circulamos, moramos, mas também um dado simbólico” (SANTOS, 1987: 61).

O presente tópico buscou, em linhas gerais, entender o “espaço da rua”, a partir da análise da sua apropriação pelas tribos de índios, bem como o entrecruzamento e as relações que são estabelecidas entre os vários agentes na rua, enquanto espaço de interação e de uso, escrevendo sociabilidades e tornando públicas e visíveis as ações, propriedades do espaço público. Ultrapassando a rua e ampliando para o bairro, procuraremos, no próximo tópico, analisar as relações de vizinhança existentes nas tribos.

4.3. AGENCIAMENTOS ESPACIAIS: O COTIDIANO DO BAIRRO

Ao tratar das tribos carnavalescas de Natal/RN, em uma perspectiva geográfica, é imprescindível identificar a dimensão espaço-temporal da manifestação em análise, que se

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É interessante notar que aqueles indivíduos que assistem da janela encontram-se no limbo entre o público e o privado, entre a visibilidade e a invisibilidade. Esta zona fronteiriça é material, concreta, mas, sobretudo, simbólica.

passa no centro urbano “atravessado, perfurado pelo tempo, pelos fluxos de pessoas e imagens, por sons e variados ruídos” (ROCHA, 2008: 92).

As tribos de índios do carnaval, em sua projeção no espaço citadino, caracterizam-se pelo papel da vizinhança, edificando identidades e estabelecendo relações que são vivenciadas na sua cotidianidade, forjando um sentimento de pertença social. Estes comportamentos compreendem algumas dimensões apontadas por Castells (1983):

[…] as atividades relativas à vizinhança (a ajuda e o empréstimo mútuos, as visitas, os conselhos, etc.) e as relações sociais propriamente ditas (a saber, a ligação entre relações de amizade, familiares, de vizinhança, participação em associações e centros de interesses, etc.). O conjunto destes comportamentos exprime a definição cultural do papel do vizinho; este papel varia em intensidade e intimidade, segundo as dimensões e segundo as normas culturais interiorizadas pelos diferentes grupos sociais (CASTELLS, 1983: 125).

Aqui acionamos uma perspectiva que aprecia a dimensão material e não-material da cultura, numa escala local, mas que não desvincula-se do regional e do global, considerando “tanto aspectos concebidos como vivenciados, tanto espontâneos como planejados, tanto aspectos objetivos como intersubjetivos” (ROSENDAHL; CORRÊA, 2003: 13).

Dentro da análise, nos filiamos à nova abordagem cultural em Geografia, cujas transformações em curso no espaço urbano devem ser apreciadas como marca e matriz cultural (BERQUE, 1998); a paisagem urbana expressa um grupo – marca – e contribui para a transferência da cultura – matriz. Dentro desta perspectiva, podemos entender que a sociedade é dependente de uma cultura não homogênea, visto que “uma sociedade pode incluir culturas tão radicalmente diferentes que parecem incompatíveis” (COSGROVE, 1998: 104)172

. A cultura “não é uma categoria residual, mas o meio pelo qual a mudança social é experienciada, contestada e constituída” (COSGROVE; JACKSON, 2003: 136).

No presente tópico pretenderemos analisar as tribos carnavalescas e suas relações com o entorno, a partir de uma leitura hermenêutica das práticas socioespaciais, de modo a compreender a teia de significados que circunda esta relação, tecida pelos indivíduos (os “de

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Partilham desta compreensão inúmeros antropólogos, geógrafos, sociólogos e teóricos do cultural studies que se dedicam às abordagens culturais, dos quais podemos citar: Raymond Williams, Clifford Geertz, Marshall Sahlins, Augustin Berque, James Duncan, Fredric Jameson, Paul Claval, Denis Cosgrove e Peter Jackson. No Brasil, podemos enumerar: Silviano Santiago, Renato Ortiz e Roberto Lobato Corrêa. Dentre os teóricos atuais, que abordam temas culturais, temos Alessandro Dozena.

dentro” e os “de fora”)173

. Interessamo-nos pelas ações e intenções humanas insertas no espaço174, especificamente, no bairro, que nos revelará significados atribuídos pelo grupo, permitindo-nos relacioná-los às condições de existência dos indivíduos.

Buscando discutir os agenciamentos espaciais que são observados nas agremiações, percebemos que a leitura das práticas ordinárias destas tribos nos conduziu a importantes debates. Nesse sentido, temos que os “significados das diversas práticas espaciais associadas ao cotidiano, envolvendo as coisas correntes, e as manifestações menos frequentes ou periódicas estão, com raras exceções, a serem evidenciados pelos geógrafos brasileiros” (ROSENDAHL; CORRÊA, 2003: 17).

É certo que existe limitação na proposta empreendida, pois a dinâmica social – regras de conduta, comportamento, linguagem, valores e significados – modifica-se na proporção que se muda o lugar onde enxergamos as práticas sociais. Quero dizer com isso que as tribos carnavalescas não se diferenciam somente espacialmente, mas, sobretudo, quanto a práxis cotidiana. Todavia, as semelhanças quanto à carência, experiência da escassez, ausência da oferta de lazer nas comunidades em que se inserem estas tribos de índios nos possibilita realizar uma leitura de aspectos genéricos relevantes e particularidades no interior dos grupos carnavalescos estudados.

Se cada lugar – uma rua, uma praça, um bairro – é diferente quanto aos objetos e ações, tentar entender as dinâmicas espaciais das tribos no interior da cidade consiste em uma ação restrita e incompleta, pois “à cidade são dados forma e sentido a partir do momento em que os espaços são vivenciados como um todo [...] um complexo conjunto de elementos concretos e abstratos” (VAZ DA COSTA, 2005: 85).

Esta complexidade do espaço citadino enquanto matriz do urbano é de difícil apreensão, se pensarmos a cidade como um complexo símbolo que exprime uma tensão entre a racionalidade geométrica e o emaranhado de existências humanas. Cada ângulo dela nos permite visualizar uma determinada paisagem urbana, a depender das “lentes” de quem a vê e a vivencia, em suas diferentes localidades e sentidos; em qualquer sociedade “não há um único contexto e, sim, uma série de contextos em uma variedade de escalas” (DUNCAN, 2003: 88), por ser “uma realidade objetiva com suas ruas, construções, monumentos, praças,

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Aqui nos aproximamos da ideia de cultura e sua interpretação das práticas sociais presentes nas obras de Geertz (A interpretação das culturas) e Williams (Cultura).

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Nossa proposta é um pouco diversa daquela de Sauer, pois consideramos a existência do elemento simbólico, não sendo, o espaço, somente as obras humanas inscritas na superfície terrestre, como entendia Sauer (2003).

mas sobre este ‘real’ os homens constroem um sistema de ideias e imagens de representação coletiva” (PESAVENTO, 1997: 26), podendo ser representada de inúmeras formas e adquirir vários significados.

O bairro, por sua vez, organiza-a, delimitando fronteiras e representando divisões no interior da urbe, congregando, numa escala menor, um conjunto de objetos e ações, onde as pessoas podem “ancorar as suas identidades na realidade circundante” (CLAVAL, 2003: 162). Conforme Mayol (1996), o bairro consiste no “lugar onde se manifesta um 'engajamento' social ou, noutros termos: uma arte de conviver com parceiros [...] que estão ligados a você pelo fato concreto, mas essencial, da proximidade e da repetição” (MAYOL, 1996: 39). Mayol (1996), em seu brilhante trabalho, continua:

A cidade é, no sentido forte, ‘poetizada’ pelo sujeito: este a re-fabricou para o seu uso próprio desmontando as correntes do aparelho urbano; ele impõe à ordem externa da cidade a sua lei de consumo do espaço. O bairro é, por conseguinte, no sentido forte do termo, um objeto de consumo do qual se apropria o usuário no modo da privatização do espaço público. [...] o espaço urbano [no bairro] se torna não somente o objeto de um conhecimento, mas o lugar de um reconhecimento (MAYOL, 1996: 45).

Devido à complexidade da nossa sociedade, torna-se difícil manter vínculos permanentes com as pessoas, mas, no bairro ainda é possível manter esse laço. De acordo com Magnani (1998), “é principalmente o lugar de moradia que concentra as pessoas, permitindo o estabelecimento de relações mais personalizadas e duradouras que constituem a base da particular identidade produzida no espaço” (MAGNANI, 1998: 116). Faz coro com esta perspectiva a assertiva de Serpa (2007b), ao compreender que no bairro “se elabora o sentimento de pertencimento ao ‘lugar’, espaço das práticas cotidianas e aparentemente banais” (SERPA, 2007b: 10)175

. Neste sentido, Dozena (2011b) argumenta:

Os próprios bairros passam a fomentar representações da vida urbana. Não somente eles, como também as quadras e barracões das escolas de samba, os viadutos apropriados para ensaios, os fundos de quintal, as lajes de casas simples, os centros culturais e praças públicas, os bares, as feiras e ruas onde as rodas de samba são realizadas (DOZENA, 2011b: 18-19).

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Entendemos que o bairro é composto de movimentos contraditórios que se compensam e se combinam para além do poder panóptico das estratégias socioeconômicas e políticas, proliferando astúcias e combinações de poderes locais e contrarracionais, que escapam ao discurso homogeneizador e racional, nos conduzindo ao caminho quase oculto pelos dispositivos e discursos alienantes das “práticas microbianas, singulares e plurais, que um sistema urbanístico deveria administrar ou suprimir e que sobrevivem a seu perecimento” (CERTEAU, 1994: 175).

Dozena (2011b) demonstra a importância do bairro em estudos de grupos carnavalescos. Poderíamos claramente substituir quadras e barracões das escolas de samba por sede das tribos de índios e rodas de samba por toadas dos ensaios para aplicar ao caso ora estudado.

Muito embora não seja o objetivo do presente trabalho, compreendemos, também, esta porção da cidade enquanto um espaço vivido cotidianamente, com uma lógica própria, caracterizado pelos arranjos, práticas sociais e representações simbólicas, compreensíveis pelo caráter topofílico – construído e vivenciado – do bairro, cuja afetividade é propulsora da relação entre as pessoas e o lugar (TUAN, 1983), desencadeando um sentimento de aproximação “despertado pelo espaço apropriado, da convivência e da felicidade” (MELLO, 2001: 88). Esta experiência176do bairro implica na “capacidade de aprender a partir da própria vivência” (TUAN, 1983: 10), tratando-se, portanto, de “um espaço público que conjuga certa funcionalidade com uma inegável carga simbólica” (MAFFESOLI, 2000: 33).

Se por um lado, percebemos nas cidades modernas – receptáculos do capital e da mercadoria – uma intensa urbanização, diante do atual estágio que passa o capitalismo, por outro, em seu interior, nos “pedaços” da cidade177

, podemos encontrar as inúmeras experiências banais da vida social – e aqui incluímos a relação das tribos de índios com o bairro – que é visto com uma extrema beleza pelo flâneur baudelairiano178, passíveis de serem apreendidas com o próprio movimento da sociedade. Reproduzimos o entendimento de que a vida cotidiana não se baseia tão somente na divisão do trabalho e nas instituições sociais, mas, sobretudo, em pequenos sistemas e realidades sociais cuja apropriação espacial produz campos simbólicos e práticas culturais.

Buscando os aspectos concretos da existência da população, nas formas de entretenimento possibilitados pelas tribos de índios nos bairros da periferia enquanto parte

176 A experiência, para Tuan (1983), consiste num termo “que abrange as diferentes maneiras através das quais

uma pessoa conhece e constrói a realidade. Estas maneiras variam desde os sentidos mais diretos e passivos como o olfato, paladar e tato, até a percepção visual ativa e a maneira indireta de simbolização” (TUAN, 1983: 09).

177 Conforme Magnani (2002), um dos elementos constitutivos do “pedaço” é de ordem espacial correspondente

a uma rede de relações sociais.

178“A multidão é seu universo, como o ar é o dos pássaros, como a água, o dos peixes. Sua paixão e profissão é desposar a multidão. Para o perfeito flâneur, para o observador apaixonado, é um imenso júbilo fixar residência

no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito. Estar fora de casa, e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo, eis alguns dos pequenos prazeres desses espíritos independentes, apaixonados imparciais, que a linguagem não pode definir senão toscamente. O observador é um príncipe que frui por toda a parte o fato de estar incógnito” (BAUDELAIRE, 1996: 19-20).

integrante do cotidiano, procuraremos entender a composição social, destacando elementos e ingredientes sociais mobilizados no contexto de duas tribos de índios – Tabajara e Gaviões- Amarelo – em seus respectivos ambientes urbanos.

Preferimos não optar pela escolha de tribos até com grande tradição, como a Potiguares e Tupinambás, pelo fato de não identificarmos nela uma relação com o bairro, fincadas nos laços de solidariedade e amizade. Pelo contrário, os componentes, em sua quase totalidade, são provenientes de outras tribos de índios, “alugados” para desfilarem179

. Para a escolha das agremiações Tabajara e Gaviões-Amarelo, consideramos as sociabilidades delas com o seu entorno e a receptividade encontrada, que foram preponderantes para a compreensão das minúcias na preparação para o desfile, cujos dados coletados foram provenientes da observação participante.

4.3.1. A tribo de índios Tabajara e o bairro Felipe Camarão

O bairro Felipe Camarão, localizado na Zona Oeste da capital, é estigmatizado como um local pobre e violento, não havendo a preocupação do Poder Público com o lazer na localidade, fato exemplificado pelo reduzido número de praças públicas e equipamentos desportivos, conforme dados informados pela SEMURB (2009). Esta situação é fruto do modelo de urbanização e desenvolvimento econômico adotado, geradores de desigualdades socioespaciais, contrastando com o contexto da cidade, que se torna fragmentada e a população dos bairros pobres passa a conviver com a precariedade de infraestrutura e