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A filosofia da ciência na mudança de século: Mach, Poincaré e Duhem

1. A Ciência e a Filosofia da Ciência na transição para o século XX ∗

1.3 A filosofia da ciência na mudança de século: Mach, Poincaré e Duhem

O progresso científico no século XIX, o aparecimento de novas teorias científicas, afectou profundamente o pensamento filosófico que lhe era contemporâneo. Problemas como a origem do homem, o livre arbítrio, a imagem da natureza ou, até mesmo, a ideia de verdade fizeram com que muitos filósofos, mesmo aqueles que se encontravam mais

língua inglesa data de 1893 e corresponde à edição por nós utilizada (Mach, 1974a). Não existe nenhuma edição em língua portuguesa.

distanciados da mentalidade e das preocupações da investigação científica, se preocupassem bastante com o desenvolvimento da ciência e todas as suas implicações nas várias esferas do pensamento. Foi no século XIX que surgiu o positivismo, doutrina filosófica caracterizada por um optimismo geral nascido da certeza de que o progresso científico-tecnológico era imparável e que desembocaria inevitavelmente numa sociedade de bem-estar generalizado. No positivismo poder-se-ão destacar como traços marcantes: primeiro, a aplicação do método das ciências da natureza também ao estudo da sociedade; segundo, a afirmação de que o método científico é uno, atribuindo-lhe o estatuto do único instrumento capaz de atingir o conhecimento; terceiro, a exaltação da ciência enquanto único meio capaz de solucionar ao longo do tempo todos os problemas humanos e sociais. O positivismo, no seu combate às concepções idealistas e espiritualistas da natureza, afirmava-se antimetafísico, no entanto a radicalização do seu discurso obrigá-lo-ia também a cair numa postura metafísica e dogmática.

A filosofia das ciências é, no final do século XIX e princípios do século XX, a herdeira histórica do positivismo oitocentista, distinguindo-se desta corrente filosófica pela sua visão crítica da própria ciência e pelo esforço em determinar os limites da validade desta. A filosofia da ciência demarcar-se-á do positivismo metafísico, começando por exercer uma crítica baseada na própria evolução histórica da ciência; dos seus próprios problemas, a ciência passou a interrogar-se sobre o seu método, a natureza deste e os próprios limites do conhecimento científico. Estas são algumas das questões que foram pela primeira vez tratadas pelos filósofos da ciência, filósofos que assumem uma característica peculiar: são compelidos à conjectura filosófica pelo seu labor científico ou, de uma forma mais prosaica, o seu recrutamento enquanto filósofos é feito no seio das fileiras científicas.

Avultam, nesta transição de século, três personagens que, pela sua investigação científica e reflexão filosófica, podem ser consideradas como os principais mentores da filosofia da ciência no século XX; são eles: Ernst Mach3 (1838-1916), Henri Poincaré4 (1854-1912) e Pierre Duhem5 (1861-1916).

O pensamento filosófico de Ernst Mach assenta em três pilares: o darwinismo científico, o princípio da economia de pensamento e a purga dos elementos metafísicos

3 Foi professor de Física em Graz e Praga e, mais tarde, de Filosofia em Viena.

4 Formado em Engenheiro na École des Mines, foi professor nas Universidades de Caen e Paris. 5 Formado em Ciências pela École Normale Superieure, foi professor em Lille, Rennes e Bordéus.

da Física. Mach possui uma noção «biológica» do conhecimento: o conhecimento é uma adaptação progressiva aos factos da experiência, uma adaptação imposta por necessidades biológicas. Como ele próprio afirmou, «as ideias científicas transformam- se e adaptam-se do mesmo modo que Darwin assumiu para o caso dos organismos vivos» (Mach, 1974b: 350); é neste sentido, enquanto generalização a todo o campo da ciência, que se deve entender a noção de darwinismo científico. O princípio da economia de pensamento corresponde à ideia seguinte: os conceitos científicos, as leis, as teorias devem ser entendidas como uma forma de economizar o trabalho intelectual de tal modo que a experiência adquirida fique registada, podendo ser transmitida através de uma teoria formulada matematicamente. É este princípio geral que se constitui como trincheira contra os pretensos avanços das especulações ou, por outras palavras, das pretensas teorias científicas sem uma base empírica sólida. Este princípio é arvorado como o único critério para determinar a validade dos conceitos, separando-os entre científicos e metafísicos. Segundo o princípio da economia de pensamento, uma boa teoria científica é aquela que permite a classificação e previsão dos fenómenos sem o recurso a um excessivo número de ideias sem correspondência com o que é observado pelos sentidos, a lei científica corresponde a um enunciado económico, formulado na linguagem matemática (a mais económica e geral), dos resultados experimentais6. Na purga dos elementos metafísicos, Mach efectuou uma revisão importante dos fundamentos da mecânica e elaborou um corpo de princípios que conduzisse esta disciplina à pureza antimetafísica. Da necessidade de quatro conceitos fundamentais (espaço, tempo, massa e força) na formulação newtoniana, a mecânica clássica passa a precisar somente de dois conceitos essenciais: espaço e tempo.

Mach é um dos primeiros físicos a sustentar os seus pontos de vista filosóficos em relação à Física num estudo cuidado da evolução histórica dos seus conceitos. Uma preocupação que não tocava particularmente o matemático e físico francês Henri

Poincaré, autor de uma obra vasta e muito importante nestas duas ciências, e que

também se sentiu atraído pela teoria do conhecimento científico7. Enquanto físico-

6 Por este motivo a hipótese atomista, supondo o átomo como entidade real, constitui uma teoria física

muito complicada. Além disso um átomo nunca se observara, o que implicava a impossibilidade da sua comprovação experimental, logo esta teoria não teria sentido. Este princípio não se preocupa com a constituição da natureza nem com a explicação causal dos fenómenos observados.

7 Autor, neste domínio, das obras seguintes: (1902) La Science et l’Hypothèse, (1905) La Valeur de la

matemático, Poincaré é especialmente inspirado por toda a problemática das novas geometrias; a correcção das suas construções teóricas conduzia à pergunta: o espaço físico possui uma estrutura euclidiana ou não euclidiana? Para ele a resposta não estava na natureza dos axiomas formulados, eles não constituíam nem juízos sintéticos a priori nem factos experimentais, deveriam ser entendidos como convenções, livremente assumidas, desde que não contraditórias, escolhidas mediante as necessidades ou as observações experimentais. Não há uma geometria mais verdadeira que outra. Para Poincaré existem na ciência elementos «convencionais», todavia ela própria não tem um carácter convencional, pois a sua capacidade de previsão confere-lhe uma natureza objectiva. Objectividade que radica no facto de a ciência traduzir uma realidade comum a todos os homens, exprimindo-a através de um sistema de relações que são as leis científicas. Estas leis são submetidas ao controle empírico, a experiência é a única fonte de «verdade». Para o físico e matemático francês, renunciar a uma hipótese não era nada de dramático, bem pelo contrário, correspondia à ocasião inesperada de poder vir a efectuar uma descoberta. O convencionalismo defendido por Poincaré radica nas suas reflexões sobre o mundo físico e a natureza das leis da Física. A sua apreciação sobre todo edifício da Matemática construído ao longo do último século, levou-o a aceitar todo o programa de aritmetização, mas a levantar algumas dúvidas sobre a redução da aritmética à teoria dos conjuntos e à axiomática de Peano. Para Poincaré «os números naturais constituíam uma noção intuitiva fundamental» (Dieudonné, 1981: 60) que deveria ser entendida como o ponto de partida, não estando, portanto, sujeitos a fundamentações subsequentes.

Em Pierre Duhem encontram-se traços comuns aos dois filósofos anteriores8. Partidário do convencionalismo, tal como Poincaré, defendia que uma teoria física era um sistema de proposições matemáticas, deduzidas de um número restrito de princípios com o objectivo de representar observações experimentais. Todavia esta teoria deveria estar sujeita, tal como Mach defendia, ao princípio da economia intelectual. A teoria seria tanto mais potente quanto mais numerosas fossem as leis que dela se pudessem derivar. Duhem descreveu as quatro operações sucessivas que permitiam construir uma teoria física (Duhem, 1981: 26): (1) escolha das propriedades físicas simples e dos símbolos das grandezas que as representam; (2) elaboração das hipóteses que podem ser

formuladas de forma arbitrária, não podendo esta arbitrariedade ser consentida perante a contradição lógica entre os termos duma mesma hipótese; (3) desenvolvimento da teoria segundo as regras da análise matemática; (4) verificação experimental.

Partilhou, com Mach e Ostwald, as ideias sobre o energetismo, rejeitando a concepção mecanicista da Física e manifestando o seu cepticismo sobre a realidade de certas entidades físicas, opondo-se de um modo decidido ao atomismo. Um ponto muito importante do pensamento de Duhem reside na negação da possibilidade de existência das experimenta crucium que levassem à escolha alternativa entre uma hipótese falsa e uma hipótese verdadeira. Para este físico e filósofo francês não existia uma experiência que permitisse decidir claramente entre teorias verdadeiras e falsas.

É a Pierre Duhem que se deve um grande impulso à história da física, uma história radicada na procura de um nexo lógico para a progressão dos conceitos físicos. Foram fundamentais para a história e filosofia da ciência os seus trabalhos sobre as contribuições científicas no período medieval9, mostrando-as como precursoras da revolução científica do século XVII. É também a Duhem que se deve o ter feito sair da obscuridade as contribuições de Mersenne e Malebranche.

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