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As Definições e os Axiomas nos Principia

Os Principia de Newton ∗

3. As Definições e os Axiomas nos Principia

Eis os enunciados, em português, das leis de Newton6:

«I - Todo o corpo permanece no seu estado de repouso, ou de movimento uniforme rectilíneo, a não ser que seja compelido a mudar esse estado devido à acção de forças aplicadas.

II - A variação de movimento é proporcional à força motriz aplicada; e dá-se na direcção da recta segundo a qual a força está aplicada.

III- A toda a acção sempre se opõe uma reacção igual; ou, as acções mútuas de dois corpos são sempre iguais e dirigidas às partes contrárias.» (PRINCIPIA[TA]: 13)

Como facilmente se depreende dos enunciados apresentados, os três axiomas definem relações entre termos, ou grandezas, tais como movimento uniforme rectilíneo, variação do movimento, força aplicada, acção e reacção. Daí que, anteriormente à apresentação dos axiomas, a exposição newtoniana abra com um conjunto de oito definições prévias, incidindo fundamentalmente sobre os conceitos empregues nas leis do movimento.

A Definição I debruça-se sobre a noção de quantidade de matéria ou massa; Newton define esta grandeza como o produto da densidade pelo volume. É legítimo perguntar: o que é a densidade? A esta questão não é dada qualquer resposta, parte-se do princípio que a densidade é um dado a priori. No seu comentário à definição de quantidade de matéria, o autor dos Principia escreve:

«É esta quantidade a que sempre me refiro de ora em diante sob a designação de corpo ou massa. E a mesma é conhecida como peso de cada corpo, pois é proporcional ao peso, como descobri através de experiências, cuidadosamente feitas, com pêndulos, que serão mostradas em seguida.» (PRINCIPIA: 1).

Sublinhe-se para já a referência à relação entre massa e peso (Newton no Livro II demonstrará esta proporcionalidade à custa da sua a segunda Lei). Começam logo aqui alguns dos escolhos lógicos na edificação dos Principia.

A Definição II caracteriza a grandeza quantidade de movimento ─

«A quantidade de movimento é a medida do mesmo, resultando conjuntamente da velocidade e da quantidade de matéria» (PRINCIPIA: 1) ─

6 O enunciado das Leis em Inglês: «I- Every body continues in its state of rest, or of uniform motion in a

right line, unless it is compelled to change that state by forces impressed upon it. II- The change of motion is proportional to the motive force impressed; and is made in the direction of the right line in which that force is impressed. III- To every action there is always opposed an equal reactiopn: or, the mutual actions of two bodies upon each other are always equal, and directed to contrary parts» (PRINCIPIA: 13). Em latim, o enunciado das leis na edição de 1726 é o seguinte: «I─ Corpus omne perseverare in statu suo quiescendi vel movendi uniformiter in directum, nisi quatenus illud a viribus impressis cogitur statum suum mutare.II─ Mutationem motus proportionalem esse vi motrici impressae, et fieri secumdum lineam rectam qua vis illa imprimitur.III─ Actioni contrariam semper et aequalam esse reactionem: sive corporum duorum actiones in se mutuo semper esse aequales et in partes contrarias dirigi».

a sua expressão é, o produto da massa pela velocidade. As definições seguintes referem-se aos diferentes tipos de força.

A Definição III define a vis insita, isto é a natureza inerte da matéria que é concebida

como uma força de inactividade. Segundo Newton, a inércia é uma força inerente à própria matéria, insita, e latente enquanto não existir qualquer outra força aplicada ao corpo. Nesta

definição de força não se vislumbra qualquer relação entre esta grandeza, este tipo de força, e o movimento por si provocado, isto é a aceleração observada. Escreve Newton:

«Um corpo, devido à natureza inerte de matéria, tem alguma dificuldade em sair do seu estado de repouso ou de movimento. Devido a tal facto, esta vis insita pode, através de um nome assaz significativo, ser chamada inércia (vis inertiae) ou força de inactividade. Mas um corpo só manifesta esta força quando outra força, impressa sobre ele procura alterar a sua condição e o exercício desta força pode ser considerado como resistência e como impulso (...)».7(PRINCIPIA: 2)

Assim, de acordo com Newton, a vis insita é a capacidade que cada corpo tem de

resistir à alteração do seu estado de movimento. Diferentes corpos oferecerão diferentes resistências, mas esta propriedade será constante para cada um deles. A característica individual de cada corpo é a sua inércia ou, como se virá a designar em mecânica clássica, a massa inercial. O comentário de Newton a esta definição termina do seguinte modo:

«(...) mas movimento e repouso, como são geralmente concebidos, distinguem-se unicamente de um modo relativo, pois não estão verdadeiramente em repouso os corpos que normalmente se julga estarem » (PRINCIPIA: 2).

A noção relativa de movimento, bem como o repouso entendido como um estado particular do movimento, é aqui, nos Principia, colocado pela primeira vez, sendo a

diferença entre estes estados associada à existência de uma força particular, a vis insita.

As definições I e III apontam para duas grandezas que são, respectivamente, a quantidade de matéria ou massa gravítica (grandeza presente na expressão da Lei da Gravitação universal) e a massa inercial. Newton tem necessidade de postular a existência de ambas: a primeira tem para ele um significado físico (material) muito preciso, enquanto que a segunda corresponde a uma necessidade conceptual da sua teoria. Para Newton estas «duas massas» de um mesmo corpo são iguais.

A Definição IV centra-se no conceito de forças aplicadas, vis impressa, como sendo as

forças que, actuando sobre um corpo, são responsáveis por modificar o seu estado de movimento, ou, bem entendido, de repouso. Newton clarifica que este estado de movimento é uniforme e rectilíneo. Para outros tipos de movimento Newton definirá outros tipos de forças. Três aspectos distinguem as forças aplicadas das forças inatas:

«(...) primeiro do que tudo são uma acção pura, de carácter transitivo, passageiro; segundo, não permanecem no corpo se a acção termina; terceiro, enquanto que a inércia é uma força universal da matéria, as forças aplicadas possuem diferentes origens, tal como “percussão, pressão, força centrípeta”» (JAMMER, 1957: 121) O carácter efémero destas forças traduz a ideia escolástica cessante causa cessat effectus.

As forças aplicadas resultam de uma acção exterior sobre o corpo, enquanto que as forças inatas constituem uma característica do próprio corpo, residem nele.

Na Definição V Newton introduz o terceiro e último tipo de força, o de força centrípeta, e o seu enunciado é o seguinte:

«Uma força centrípeta é aquela através da qual os corpos são atraídos ou impelidos, ou de qualquer modo tendem em direcção a um ponto como para um centro» (PRINCIPIA: 2).

A designação newtoniana de força centrípeta corresponde às forças ditas centrais. Nas Definições VI, VII, VIII introduzem-se conceitos directamente relacionados com a força centrípeta. Uma questão se impõe: no comentário de Newton à Definição IV já tinha sido colocado como exemplo de uma força aplicada a força centrípeta, qual o motivo para uma definição particular deste tipo de força? Resposta: «Parece que Newton olhava para a força centrípeta como uma força de maior importância que todas as outras» (JAMMER, 1957: 122). A nota

à Definição V, conforme escreveu Newton, inicia-se deste modo,

«Desta espécie é a gravidade, pela qual os corpos tendem para o centro da terra; é o magnetismo, através do qual o ferro tende para a magnetite(...)» (PRINCIPIA: 2),

o que é bastante revelador do que motivava o autor dos Principia a dar uma especial atenção

à força centrípeta.

Assim pode concluir-se: primeiro, as considerações tecidas por Newton sobre o conceito de força estão metodologicamente relacionadas com os seus estudos sobre a gravitação (a explicação dinâmica dos movimentos planetários, dados pelas três leis de Kepler, era o grande problema da época, ocupava Newton, Hooke, Halley, Leibniz e já ocupara Huyghens e Descartes); segundo, Newton é impreciso na definição do conceito de força, jamais o define, procurando associar a certos efeitos a existência de uma grandeza que passa a designar por força, é um conceito dado a priori, surge intuitivamente de uma

certa analogia com a força muscular e a percussão; terceiro, também o conceito de massa aparece definido de uma forma bastante equívoca, ao ponto de, como já se escreveu, definir duas grandezas que são a quantidade de matéria ou massa gravítica (grandeza presente na expressão da Lei da Gravitação universal) e a massa inercial. Sobre estas duas grandezas (massa inercial e massa gravítica):

«Devemos salientar o carácter experimental de uma tal identificação . A sua razão profunda, teórica, é inexplicável no domínio da mecânica newtoniana. A Mecânica Clássica aceitou como um facto da experiência a identidade das duas massas mas nunca pôde explicá-lo. A explicação só apareceu com Einstein no desenvolvimento da sua teoria da relatividade». (SILVA, s.d: 22)

Entre as definições referidas e o enunciado dos três axiomas, Newton desenvolveu um conjunto de considerações num scholium, talvez as páginas dos Principia até hoje mais

analisadas, com o propósito de caracterizar o que é tempo absoluto, verdadeiro e matemático, espaço absoluto e relativo, movimento absoluto e relativo. Porque nos comentários aqui desenvolvidos por Newton está implícito o conhecimento das leis de mecânica, passaremos à discussão do significado destas leis. Em seguida retomar-se-á a análise do scholium.

O primeiro axioma, ou Primeira Lei, é vulgarmente interpretada como a Lei da Inércia. Esta lei é o culminar de um ponto de ruptura muito importante com a física pré- galileana ou aristotélica. Nesta concepção o movimento era entendido como um processo, um desenvolvimento, que alterava as características inerentes ao corpo, opondo-se ao repouso que correspondia à ausência desse processo. Depois de Galileu movimento e repouso são indiscerníveis, deixaram de afectar os atributos dos corpos, só podem ser definidos quando em relação com outros corpos. No universo newtoniano, esta lei associa a alteração do movimento de um corpo, enquanto estado, ao aparecimento de uma grandeza denominada força aplicada. Ou, outra importante inovação, os corpos oferecem resistência em, por si só, alterarem o seu estado de movimento (tendo sempre presente o repouso como um estado particular de movimento); para conseguirem esta alteração é necessário o aparecimento de causas exteriores que produzam tal efeito (as forças aplicadas).

A Definição III preparou o caminho para esta lei. A inércia deixou de ser, pura e simplesmente, a resistência ao movimento; a inércia passa a ser a resistência à mudança do estado de movimento. A permanência do movimento deixou de implicar a acção contínua de uma força, tal como se assinalou no comentário à Definição III, o corpo pode estar em movimento sem ser sob a acção de uma força. Contudo, a esta primeira lei, para se constituir como tal, falta-lhe a relação entre grandezas. O seu enunciado corresponde à forma física de definir determinados sistemas privilegiados de referência. De acordo com este axioma, a ausência de força aplicada implica que o corpo esteja em repouso ou em movimento uniforme e rectilíneo. Então, para que tal seja observado requere-se um referencial em que se verifique o enunciado dado: o tal referencial privilegiado (referencial inercial) que é aquele no qual é verdadeira a primeira lei. Newton explicita esta ideia ao enunciar o Corolário V,

«Os movimento dos corpos num dado espaço [em relação a um determinado referencial] são os mesmos entre si, quer o espaço esteja em repouso, ou se mova uniformemente para a frente segundo uma linha recta sem movimento circular» (PRINCIPIA [TA]: 20),

mostrando que não existe um só referencial que satisfaça as condições requeridas, mas sim um conjunto de referenciais, uma classe de espaços, que se designam por referenciais inerciais nos quais é verdadeira a lei da inércia.

O segundo axioma relaciona a força aplicada com a variação de movimento

(

F ∝∆mv

)

ou, de forma mais correcta, com a variação da quantidade de movimento, o

produto da massa pela velocidade. Nos comentários a esta lei há dois aspectos que é importante focar: o primeiro diz respeito a uma análise do próprio enunciado e as suas implicações no desenvolvimento dos Principia; o segundo liga-se com a apresentação mais

moderna desta lei.

Como se sabe, dizer que a força é proporcional à variação da quantidade de movimento, não fazendo qualquer referência ao tempo ─ esta grandeza está ausente do enunciado newtoniano ─ implica que a forças aplicadas, vis impressa, tenham características

de impulso, ou, de acordo com o comentário já apresentado à Definição IV, estas forças têm

um «carácter transitivo, passageiro»; parece não se observar uma persistência na sua aplicação.

de ∆t =1. Porque Newton vai ter necessidade de aplicar a segunda lei a forças com carácter permanente, será obrigado a introduzir nos Principia um processo que permita passar

do F∆ para o resultado de uma sucessão de impulsos (ou a soma de uma série…). t

Passando ao segundo comentário. Relembre-se que se deve a Euler a escrita matemática mais actual desta lei, 2 2( )

dt t r d m ma

F = = . Dela se infere que existe, enquanto

lei, uma relação entre grandezas, entendidas estas, evidentemente, como entidades físicas mensuráveis. Mas, como anteriormente se escreveu, Newton, nas suas definições prévias, nada disse em como medir massa e força, muitos autores entendem esta Lei como a forma de definir a grandeza física força: a força é a grandeza que resulta do produto da massa pela aceleração. Sublinhe-se ainda, no conteúdo deste segundo axioma, a ausência prévia de uma definição clara do conceito de massa.

Apesar de todas as limitações conceptuais e insuficiências axiomáticas, Newton consegue dar a ligação matemática, ou geométrica, entre a vis impressa (força aplicada) e os

efeitos cinemáticos. Do conhecimento da força aplicada passa a conhecer-se as características de movimento. Não esquecer que Newton conhece a expressão analítica de uma força, a força gravítica (aquela que mais lhe interessa), podendo, então, estudar o movimento causado por ela; este era o seu objectivo principal!

Galileu é o primeiro autor a ser citado nos Principia: «Pela primeira e segunda Leis e os dois primeiros Corolários, Galileu descobriu que a descida de dois corpos variava segundo o quadrado do tempo(...)» (PRINCIPIA[TA]: 21) ou de como Newton partira do estudo da cinemática,

objecto dos Discorsi, para extrair as suas duas primeiras Leis.

O terceiro axioma acrescenta uma característica nova ao conceito de força: o seu aspecto dual; a existência de acção e reacção simultâneas e interdependentes. Esta é uma conclusão nova e muito importante. Há, no entanto, que chamar a atenção para o facto de esta terceira lei não ser uma Lei Geral da Natureza, isto é, não é válida para qualquer tipo de forças. Esta lei só se aplica a forças que resultam da interacção de dois pontos materiais e cuja direcção coincide com a linha que une os pontos, ou seja, só se aplica às chamadas forças centrais. A importância desta lei é manifesta, mesmo em formulações diferentes e mais recentes da mecânica clássica. No scholium às três leis, Newton escreve, já depois de ter

referido Galileu,

«(...) em conjunto com a Lei III, Sir Christopher Wren, Dr. Wallis e o Sr. Huygens, os maiores geómetras dos nossos tempos, elaboraram rigorosamente as regras do choque e reflexão dos corpos duros (...)» (PRINCIPIA[TA]: 22).

O que evidencia que a percepção do choque, do contacto entre os corpos foi a base desta lei: as determinações da lei dos choques constituem a base empírica do enunciado do terceiro axioma newtoniano. Sucedem-se às três leis, seis corolários que descrevem as propriedades dos movimentos dos corpos, dos quais se destacam três: a regra do paralelogramo para a composição de forças (Corolário I); o centro de massa de um sistema de corpos sujeitos exclusivamente às suas interacções mútuas permanece em movimento uniforme e rectilíneo ou em repouso (Corolário IV); as características de um referencial inercial (Corolário V).

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