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O panorama científico no século

1. A Ciência e a Filosofia da Ciência na transição para o século XX ∗

1.1 O panorama científico no século

A matemática, durante o século XIX, caracterizou-se pelo empenhamento dos seus construtores em duas linhas principais de investigação: a primeira que se pode designar como a aritmetização da análise infinitesimal; a segunda representada pela libertação da matemática em relação ao mundo da filosofia natural e que corresponde à criação das geometrias não euclidianas.

Fitas, Augusto J., Marcial. E. Rodrigues, M. Fátima Nunes, 2008,Filosofia e História da Ciência em

A aritmetização, ou redução dos princípios da análise aos conceitos aritméticos mais simples, conduziu à fundamentação clássica da teoria dos números reais e, em particular, à redução da aritmética à teoria dos conjuntos, criando um instrumento teórico capaz de abrir as portas à possibilidade de unificação de toda a matemática. Dentro deste programa, no qual se destacaram os matemáticos Weierstrass, Kronecker, Cantor e Dedekind, apareceu uma outra orientação para a fundamentação da aritmética que sustentava a possibilidade de sujeitar ao procedimento algébrico não somente as grandezas, mas também as proposições que eram objecto da lógica clássica. Passou a traduzir-se a lógica tradicional em termos de simples equações, passo decisivo para a criação da «lógica simbólica», o ramo da matemática que garantia um controlo rigoroso das demonstrações matemáticas. A lógica, onde se salientaram os trabalhos de Frege e Boole, tornou-se o instrumento fundamental para erigir, de modo correcto e rigoroso, todo o edifício matemático. Peano, professor de matemática na Universidade de Turim, apresentou, em 1889, com o seu Arithmetices Principia Nova Methodo Exposita, uma ambiciosa construção, similar à de Frege, onde expõe os seus célebres cinco axiomas da aritmética e «desenvolve a formalização de uma linguagem que devia abarcar não só a lógica matemática mas também todos os ramos da matemática» (Boyer, 1989: 667).

Contemporaneamente ao desenvolvimento da análise e da álgebra, também a geometria, o segundo programa de investigação, vai ser objecto de importantes aprofundamentos. Esta disciplina que, através da obra de Euclides, Elementos, se constituíra ao longo de muitos séculos como o símbolo do rigor da exposição lógica dos trabalhos físico-matemáticos, vai ser sujeita, em particular o célebre quinto postulado (o postulado das paralelas), ao crivo de muitas interrogações. Os trabalhos de Gauss em Gotinga na Alemanha, de Bolyai em Budapeste na Hungria, de Lobachevski em Kazan na Rússia e de Riemann em Gotinga, deram origem às geometrias não euclidianas. É a este último que se ficou a dever a criação de uma geometria em que se usava um outro enunciado para o quinto axioma: duas rectas quaisquer de um plano têm sempre pelo menos um ponto comum. Uma geometria onde não existem rectas paralelas, ou onde a definição de paralelismo é diferente, e que se veio a revelar importantíssima para a física do século XX. Se já se conseguira separar a análise de toda a intuição geométrica que a sustentava, fundando-a na aritmética, uma espécie de libertação do mundo das formas, conseguia-se agora também que a geometria matemática se libertasse da

geometria do mundo físico, uma espécie de libertação da sensibilidade a priori em Kant.

As características da Física no século XIX podem definir-se, no essencial, pelo progresso na pesquisa segundo dois programas de investigação: o primeiro, o mais antigo e que já se vinha desenvolvendo na esteira da filosofia natural dos séculos passados, correspondeu ao triunfo das ideias mecanicistas enquanto quadro geral da explicação dos fenómenos naturais; o segundo, o mais jovem, porque nascido neste mesmo século e dificilmente filiável numa genealogia secular, era equivalente à afirmação do conceito de energia enquanto conceito unificador de toda a Física. Importa aqui sublinhar que estes dois programas não eram concorrentes, não disputavam entre si a primazia como quadro explicativo fundamental dos conceitos físicos. Inversamente, eles podem considerar-se como complementares: o desenho conceptual da ideia de energia foi a ferramenta que permitiu que os novos domínios do calor, da luz e da electricidade, em conjunto com a velha mecânica, fossem abarcados pela mesma estrutura conceptual, isto é, a explicação mecanicista da natureza. Foi neste século que novas disciplinas da Física se desenvolveram teórica e experimentalmente: a termodinâmica, a óptica e o electromagnetismo. Foi neste século que surgiu uma nova síntese teórica, entre o electromagnetismo e a óptica, construída por Maxwell e experimentalmente comprovada, nove anos após a morte deste, por Hertz. Esta construção é considerada como a primeira grande síntese na Física após o reinado de Newton e, na sua essência, não se afasta das ideias mecanicistas. Maxwell, ao estudar as linhas de força propostas por Faraday, propôs um modelo de um meio fluido e elástico que constituiria o suporte da acção electromagnética, traçando o retrato do seu funcionamento mecânico no Tratado publicado em 1873: «A tentativa que fiz para construir um modelo desse mecanismo, não deve ser tomada mais a sério do que realmente ela representa, a demonstração de que um mecanismo pode ser capaz de produzir uma relação mecânica equivalente à actual relação entre as partes do campo electromagnético» (Maxwell,1954: 470). Este esforço de Maxwell em elaborar o mecanismo de funcionamento do seu éter mostra quão arreigada estava ainda, nos meios científicos, a concepção mecanicista da natureza.

Desde o princípio do século XIX que os físicos exploravam experimentalmente a inter conversão entre diferente tipos de fenómenos: químicos e eléctricos com Davy,

eléctricos e magnéticos com Oersted e Faraday, luminosos e térmicos com Melloni. Foram estes trabalhos que permitiram a Mayer, Joule e Helmholtz o estabelecimento do princípio geral da conservação da energia ou primeiro princípio da termodinâmica. Foi no segundo princípio da termodinâmica (Carnot, Clausius e Kelvin) que se introduziu um novo conceito físico, a entropia, grandeza que exprime a desordem de um sistema isolado e que é forçada a aumentar quando sujeita a uma transformação irreversível. A noção de irreversibilidade, à qual a concepção mecanicista parece estar completamente alheia, provocou uma contradição entre o mecanicismo e a termodinâmica. Uma contradição que era aparente, tal como o demonstraram Maxwell, Gibbs e Boltzmann ao aplicarem métodos estatísticos aos sistemas termodinâmicos que supunham serem constituídos por um grande número de partículas. Mais uma vez a concepção mecanicista da natureza se impunha, contudo havia quem se opusesse a esta concepção que se manifestava triunfante. Oposição onde se destacava Ostwald, um dos fundadores da química-física, que desenvolveu uma teoria geral da «energética», procurando mostrar que a energia era a única entidade real da natureza, contrariando toda e qualquer explicação da termodinâmica que usasse os conceitos atómicos, isto é, os métodos da mecânica estatística.

A Biologia do século XIX era dominada pela grande revolução científica operada pela obra de Darwin, A Origem das Espécies, cujas repercussões se estenderam muito para lá do domínio desta ciência. Com o evolucionismo desapareceu a imagem que durante milénios fora construída sobre o homem e todo o reino animal, uma imagem em que todas as espécies eram fixas e imutáveis desde o acto da criação. Darwin colocava os animais submetidos à escala temporal de milénios, tal como Lyell já o fizera para o próprio planeta nos seus Princípios de Geologia. No essencial Darwin defendia: primeiro, há evolução das espécies, estas não são imutáveis e o seu desenvolvimento gradual dá origem a espécies diferentes; segundo, o mecanismo deste processo é a selecção natural.

Se a teoria de Darwin e todo o debate científico-filosófico que a envolveu marcam de uma forma determinante a Biologia do século XIX, uma outra descoberta científica, as Leis de Mendel, não foi menos importante no avanço futuro desta disciplina. Mendel, ao cruzar e fecundar artificialmente certas variedades de ervilhas, estudando os resultados obtidos, contribuiu de um modo decisivo para os primeiros passos da

genética. É a genética que, fora da teoria da evolução, fez progredir a compreensão dos mecanismos da herança biológica.

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