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Fermat, Descartes e os cartesianos

O Princípio da Menor Acção: uma resenha histórica

2. Fermat, Descartes e os cartesianos

As discussões e reflexões relativas à elaboração do Princípio da Menor Acção,

ou de um princípio de mínimo que regulasse determinadas propriedades da natureza, iniciaram-se num debate que opôs Descartes a Fermat a propósito das leis da refracção óptica. Se estas leis foram o pretexto anunciador de uma polémica importante, outras razões, de carácter quer matemático quer filosófico, alimentaram o debate até ao ponto de se questionar o quadro geral de entendimento da natureza.

Foi o Padre Marin Mersenne (1588-1648), introdutor das ideias de Galileu em França e autor de uma das primeiras e mais importantes teias de contacto entre os eruditos da época, que desencadeou todo o processo. Dentro dos seus múltiplos interesses de matemático e filósofo da natureza, correspondente assíduo de Descartes, Pascal (1588- 1651), Roberval (1602-1675), Gassendi (1592-1655) e muitos outros, fez chegar às mãos de Fermat as páginas da Dioptrica de Descartes, pedindo-lhe uma opinião sobre esta obra.

Fermat, com uma formação em Leis, interessava-se por matemática e, entre outros temas, estudou métodos algébricos para resolver problemas geométricos e na obra «Método para determinar os máximos e mínimos e as tangentes a linhas curvas»2 desenvolveu um

método de determinação de máximos e mínimos o que lhe permitia determinar analiticamente a tangente a uma curva3. Em 1636 iniciara a sua correspondência com

Roberval e Marin Mersenne, o que corresponde á sua entrada na República das Letras. Na primeira carta que Fermat enviou a Mersenne é manifesta a sua oposição aos argumentos cartesianos, pondo em causa a justificação geométrica da lei da refracção, encarregando-se o seu interlocutor de dar a conhecer a sua opinião a Descartes. O que opôs Fermat a Descartes foi o facto do raio luminoso, ao passar de um meio (menos denso) para outro (mais denso), aumentar a sua velocidade, apesar do último meio oferecer maior resistência ao movimento. Este será sempre o ponto central da discordância, em matéria de Física, entre Fermat e os cartesianos. Em Janeiro de 1638 Descartes responde a Fermat, dirigindo- se a Mersenne, não propriamente sobre o que este escrevera contra a demonstração da refracção, mas pronunciando-se sobre o livro « Método para determinar os máximos e mínimos».

O facto desta obra estar relacionada com métodos analíticos aplicados à Geometria, suscitará, da parte de Descartes, uma certa animosidade contra a proposta matemática de Fermat, chegando mesmo a conseguir que a obra deste não fosse publicada pelo seu editor holandês, Elsevier (CALINGER, 1999: 517).

Em 1657, o médico e conselheiro do rei Luís XIV, De La Chambre (1596-1669), reconhecido cartesiano, publicou em Paris uma obra, La Lumière, e enviou a Fermat um

exemplar no sentido de recolher a sua opinião. Este respondeu, apresentando a defesa que a natureza age pela via mais simples:

2

Título original: Methodus ad disquirendam maximam et minimam

3 O método de determinação dos máximos e mínimos de Fermat corresponde a uma forma avant la lettre

de calcular a primeira derivada; com base naquilo que chamaríamos a razão incremental determina-se a tangente á curva num ponto (GILLESPIE ,1970: 570).

«Mais il faut passer plus outre et trouver la raison de la réfraction dans notre principe commun, qui est que la nature agit toujours par les voies les plus courtes et les plus aisées.» (FERMAT, 1891, II : 354)

Depois de ter escrito a De La Chambre, Fermat encetou correspondência com Clerselier, o primeiro editor da correspondência de Descartes, pois este pedira-lhe para que, segundo as próprias palavras de Fermat, «je refasse mes réponses d’alors qui se sont égarées» (refere-

se a respostas a cartas de Descartes). E na primeira carta que lhe enviou, datada de 10 de março de 1658, refez todo o seu raciocínio que punha em causa a demonstração apresentada por Descartes sobre o percurso do raio luminoso no fenómeno da refracção óptica. Clerselier e Rohault (1620-1672) respondem-lhe separadamente, tomando a defesa de Descartes. Retorquindo, Fermat dirige-se a De La Chambre, resume toda a polémica, entretanto havida, na frase:

«M. Descartes n’a jamais démontré son principe : car outre que les comparaisons ne servent guère à fonder des démonstrations, il emploie la sienne à contre-sens et suppose même que le passage de la lumière est plus aisé par les corps denses que par les rares, ce qui est apparemment faux» (FERMAT, 1891, II : 457)

E acrescenta no parágrafo seguinte:

«Pour sortir de cet embarras et tâcher de trouver la véritable raison de la réfraction, je vous indiquai dans ma lettre que si nous voulions employer dans cette recherche ce principe si commun et si établi, que la nature agit toujours par les vois les plus courtes, nous pourrions y trouver facilement notre compte.» (FERMAT, 1891, II : 458)

E este caminho mais simples corresponde a uma determinação de mínimo feita por intermédio do seu método geométrico. Desta determinação extrai Fermat, para a refracção, a lei dos senos, mas com um resultado físico inverso do encontrado por Descartes: a velocidade de propagação da luz seria menor no meio mais denso, o que estaria de acordo com aquilo que intuíra e de que já chamara a atenção ao autor da

Dióptrica.

Clerselier, na carta seguinte, de 6 de Maio de 1662, responde-lhe em nome de todos os cartesianos4 e pronuncia-se sobre o princípio utilizado por Fermat

«Le principe que vous prenez pour fondement de votre démonstration, à savoir que la nature agit toujours par les voies les plus courtes et les plus simples, n’est qu’un principe moral et non point physique, qui n’est point et qui ne peut être la cause d’aucun effet de la nature.» (FERMAT, 1891, II : 465)

A natureza não sabe como agir, portanto não pode tomar essa decisão de tempo mínimo, fisicamente a natureza só pode agir através da acção do movimento sobre os

4 «C’est par l’ordre de l’Assemblée qui se tient toutes les semaines chez M. Montmort» (FERMAT, 1891,

corpos ― forma simplificada do mecanismo cartesiano. Os princípios para lá dessa actuação, ou seja, a razão pela qual isso se passa ― é assim que pode ser entendido esse princípio de mínimo ― está para lá da física, diz respeito ao domínio da metafísica. Atitude que, no ponto de vista dos cartesianos, corresponde às causas finais aristotélicas ou ainda a um princípio que, apelando a uma permanente intervenção de uma super inteligência, regularia todos os actos da natureza. Explicava-se o comportamento da natureza à luz de qualquer coisa que lhe era estranha. Perante esta posição, Fermat pouco mais tem a dizer e a polémica termina com uma sua carta onde escreve:

«Pour la question principale, il me semble que j’ai dit souvent et à M. de la Chambre et à vous que je ne prétends ni n’ai jamais prétendu être de la confidence secrète de la Nature. Elle a des voies obscures et cachées que je n’ai jamais entrepris de pénétrer ; je luis avais seulement offert un petit secours de géométrie au sujet de la réfraction, si elle en eût eu besoin. Mais puisque vous m’assurez, Monsieur, qu’elle peut faire ses affaires sans cela et qu’elle se contente de la marche que M. Descartes lui a prescrite, je vous abandonne de bon cœur ma prétendue conquête de physique, et il me suffit que vous me laissiez en possession de mon problème de géométrie tout pur et in abstract, par le moyen duquel on peut

trouver la route d’un mobile qui passe par deux milieux différents et qui cherche d’achever son mouvement le plus tôt qu’il pourra» (FERMAT, 1891, II : 483). Se a física cartesiana não se compadece com o seu  de Fermat  método matemático, paciência, ele mantém o seu princípio. É certo que é um princípio de natureza teleológica, determinado por cálculo matemático, embora não sustentado pela observação empírica…

3. Entre Descartes e Newton, passando por Leibniz e não

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