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1. A compaixão como ensaio

1.3. A filosofia como exercício ou ascese

Retornando à ideia de ensaio como exercício e ascese, voltemo-nos a uma discussão a respeito da ascese em Nietzsche. A terceira dissertação em A Genealogia da Moral é justa e teài tituladaà Oà ueàsig ifi a àosàideaisàas ti os? .àO a,àaàfo aà o oàNietzs heà formulou o tema já indica que está em jogo seu método da suspeita de que por detrás de o esà ideais à seà e o t a à p ti asà oà uitoà o es.à E à ealidade,à eleà est à diagnosticando neste ideais uma espécie de remédio à decadência e ressentimento ge e alizadosà aà ultu aàeu opeia,à o oàu aà g a deàa aà oà o bate à longa dor e ao t dio ,àe àu aàpala a,àaoà iilis o.à

18 Não adentraremos aqui esta discussão, embora importante, por questões de escopo. Contudo, pensamos em autores como Hannah Arendt, Michel Foucault e Giorgio Agamben, todos seguindo a crítica nietzschiana à compaixão. De Hannah Arendt, destaca-seà aà suaà íti aà à o pai oà piedosaà e à Daà ‘e oluç o à à eà Ho e sàe àTe posà“o ios à .àá e dtàdefe deà ueàaà o pai oà oàpiedosa àsejaàe uili adaàpeloà princípio mais racional e genérico da solidariedade, baseado na ideia de dignidade humana. Mostra ainda, os perigos de se elevar a compaixão (vista por ela como uma paixãoàaàu àp i ípioàpolíti o,à o e tadoà à egi oà so ia àeàp i ada.àDeàFou ault,àespe ial e teài po ta teà àaàideiaàdasà instituições de sequestro àe à Vigia à eàPu i à à aà edidaàe à ue,àe à o eàdaà o pai o,àseàfi a iaàoàout oà esteàout o objeto das Ciências Hu a as à o oàu à o poàd ilà apazàdeà e e e àasà e essesà i ilizat ias .àE,àpo àfi ,àGio gioàága e ,à ueà eto aàaàdis uss oàdosàdoisàauto es,à o oàpo àe e plo,àe à Homo sacer:àoàpode àso e a oàeàaà idaà ua .à Neste livro, ele chama atenção, a partir da leitura que Hannah Arendt faz da Revolução Francesa (Da

Revolução) para o fato de que foi justamente em torno da noção de compaixão que se desenvolveu um

dispositi oàpolíti oài po ta teà ueà àaàideiaàdoà po o ;àle peuple toujours malheurex, como dizia Robespierre. áà ideiaà deà po oà e ete iaà ta toà aoà o ple oà dosà idad osà o oà o poà políti oà u it io à ua toà osà pe te e tesà sà lassesài fe io es :à Oà ua toàestaàa igüidadeàfosseàesse ial,à es oàdu a teàaà‘e oluç oà Francesa (ou seja, justamente no momento em que se reivindica o princípio da soberania popular), é testemunhado pela função decisiva que aí desempenhou a compaixão pelo povo entendido como classe e luída. à ága e ,à ,à p.à à Pa aà u aà íti a,à deà aseà ietzs hia a,à daà ompaixão na Psicologia ver ainda Caponi (1998/1999) e Clot (2010).

Para Nietzsche, o problema não estaria nas práticas ascéticas em si, mas sim ao arremedo que dela fazem os idealistas, onde a ênfase não são as práticas e sim os ideais, que quase sempre condenam tudoà a uiloà ueà à daà o de à doà o po,à dosà afetos,à doà se à o oàseà ,ài po doàse p eàu à de e .àTotal e teàdi e soàdoàautodesp ezoàse iaàaàideiaà de ascese da filosofia grega antiga:

A ênfase é dada, então, às formas das relações consigo, aos procedimentos e às técnicas pelas quais são elaboradas, aos exercícios pelos quais o próprio sujeito se dá como objeto por conhecer e às práticas que permitam transformar seu próprio modo de ser (Foucault, 1984, p. 37).

Não há, pois, um dever imposto por um sacerdote, mas o desejo de realização ética por um sujeito autônomo, que se aproximaria então, de um mestre – ou de amigos - em busca de ensinamentos e treinamentos. O eu, neste caso, seria um objeto de cultivo, criação e reflexão e não de castigos e repreensão. Temos a etimologia do termo como vindo do grego, skēsis:à 'e e í ioàp ti oà deàu aàa te ,àg e oàdeà idaàdosàatletas', p.ext. 'profissão (especificamente, dos filósofos)' Houaiss,à .à

A ideia de Nietzsche de que este modo de vida ascético é pouco afeito à compaixão vem da correlação que ele faz e t eà o pai oà eà e taà oleza ,à oà se tidoà deà u aà indulgência sempre condescendente para com os outros e contrária aos próprios interesses ,à p.à .à Esteà idealà as ti o,à aoà es oà te poà e à ueà a ole e à o à osà out os,à p o o e iaàaài segu a çaàeàaà du eza à o sigoà es o,à oàse tidoàdeàse p eàsup i i àoà p p ioà alo àe àfu ç oàdeàout e .àássi ,àaàestaà o alàdosàes a os ,àsu jugadaàaosàjuízosà deàout e ,àeleà o t ap eàu aà o alàdosàse ho es ,àafi ati aàeà iado a:à

O homem de espécie nobre se sente como aquele que determina valores, ele não tem necessidade de se à a o ado,à eleà julga:à oà ueà eà à p ejudi ialà à p ejudi ialà e à si ,à sa e-se como o único que empresta honra as coisas, que cria valores (Nietzsche, Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro, 2005).

‘epa e osà ueà aà faseà dadaà po à Nietzs he,à à uest oà daà du eza ,à ouà es oà ag essi idadeàdaà o tadeàdeàpot ia 19, está, não num impulso para dominar, e sim no

impulso de criar. No aforismo 225 de Além do bem e do mal, como sempre, de maneira bufa Fe az,à àeài i a,à a a doàaàpe so age à o s i iaàdeàa tista ,àeleài à iti a àaà

19 O conceito de Wille zur Macht,àt adi io al e teà e tidoà o oà o tadeàdeàpot ia ,à àt aduzidoàpo àPauloà

C sa àdeà“ouza,à o oà o tadeàdeà pode .àEleàe pli aà ue,àdeàtodosàosàusosà ue Nietzsche faria do termo, pode à àoà ueà elho àa a a iaàtaisàse tidos.àCo oà oà à ossoài tuitoàa uiàdis uti àesteà o eito,àopta osà pelaàt aduç oà aisà o e te,à o tadeàdeàpot ia .àTalàt aduç oà osàpa e eài te essa teàta àpo à essoa à um laço, ata sàdaàlí guaàlati a,à o àaào aàdeàEspi osa,àauto à ueàutiliza aàaàfo aàlati aà ultaà pote tia .à (Spinoza, 2010).

o alàdeàu aà o pai oàutilita istaà ueà us a iaà a oli àoàsof i e to àeàal a ça àoà e - esta .àPo àout oàlado,à olo a àaà o pai oà o t aàaà o pai o :à áànossa compaixão é algo mais longividente e elevado – nós vemos como o ser humano se diminui, como vocês o di i ue ! à Nietzs he,à ,àp.à .

Mais adiante, no mesmo aforismo, aparecerá a metáfora da dureza, onde então podemos entendê-la como u aàesp ieàdeà t us à o po al,àu aà apa idadeàdeàsupo ta àaà te s oàeàoàsof i e toàp ese tesà oàt a alhoàdeà iaç o:à Noàho e àest oàu idosàcriador e

criatura: no homem há matéria, fragmento, abundância, lodo, argila, absurdo, caos; mas no

homem há também criador, escultor, dureza de martelo... à i id.,àsu li hadoà osso,àp.à .à Ora, sabemos que o próprio Nietzsche correlaciona sua atividade de filosofar às a teladas à20. Trata-se de um ato agressivo, portanto, no sentido de atacar a matéria do

pensamento como um escultor ataca um bloco de pedra, imprimindo-lhe uma determinada forma. Mas não é agressivo no sentido um puro impulso destrutivo21, violento: trata-se de

crítica e criação.

Detenhamo-nos, portanto, ao sentido do termo criação. Para a especialista no filósofo alemão, Rosa Dias, trata-se de pensá-la como algo inerente à vida ou como algo que pertence à atividade humana. Ela lembra ainda que a palavra criação nem sempre esteve presa a uma conotação teológica. Vale a pena transcrevê-la literalmente, em sua erudição de estudiosa, aliada à clareza de professora:

O monopólio teológico dela é apenas um episódio ligado ao apogeu do monoteísmo e isso aconteceu na Idade Média, quando só deus era criador. No curso da história, o termo teve outros sentidos. Quando levamos em consideração a etimologia da palavra, a proeminência do teológico desaparece. A palavra latina creare tem o sentido de engendramento e está filologicamente ligada a crescere, sugerindo as noções de crescimento e desenvolvimento (Dias R. , 2011, p. 63).

20 Cf. o título da obra: Crepúsculo dos Ídolos, ou Como Filosofar com o Martelo (Götzen-Dämmerung oder Wie

man mit dem Hammer philosophirt). (2006). É interessante atentarmos como, no prólogo do livro em questão,

oàauto àap ese taàoàli oà o oàu aà de la aç oàdeàgue a ,à oàse tidoàdaàt a s alo aç oàdosà alo es,à asà oà faz do martelo um uso destrutivo, destroçador, e sim, crítico. Faz uso dele com a delicadeza de quem perscruta e também com a precisão de quem percute. Em primeiro lugar, o martelo seria usado para auscultar os ídolos, o oàu àpsi logoà te oàdeàNietzs he àes uta iaàoà ueàest àpo àt sàdoà ídolo :à a ueleà le eàso ào oà ueà ve àdeà ís e asài fladas .àOsàídolosàs oào os,às oà s a as,àdisfa es,às oà azios.àE àsegu do,àutiliza-o como um diapasão, capaz de percutir as ressonâncias entre os ídolos em questão como portadores de valores niilistas. (ver Prólogo do Crepúsculo dos Ídolos.)

21“o eàoàte a,à e àta àoàes itoà e ja i ia o,à OàCa te àDest uti o :à Oà a te àdest uti oà oà à adaà

de duradouro. Mas por isso mesmo vê caminhos por toda a parte. Onde outros encontram muros e o ta has,àl ,àta ,àeleà àu à a i ho. à t adução minha; Benjamin, The destructive character, 1979, p. 301).

Assim podemos retomar a ideia de exercício como ascese, desenvolvida mais acima, incluindo também o sentido de desenvolvimento. Ascese não no sentido que ela teve na antiguidade, de prática destinada a levar a uma perfeição, mas como exercícios e ensaios que nos permitem a criação de novos valores. Criação, como Rosa Dias nos lembra, em seu sentido mais ligado ao cultivo,à e osàaàu à faça-se àeàsi àaàu aà o ti uidadeàdoàte po,àaà um aprendizado cotidiano onde o próprio viver seria obra de arte. Retomaríamos também, assim, a questão ético-política, à qual relacionamos os exercícios e o ensaio. Assim, voltemos à questão: em que sentidos podem o budismo e suas práticas de compaixão serem tomados como valores capazes de entrar nas composições destas práticas? Em que sentido ela pode ser crítica à compaixão piedosa?