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1. A compaixão como ensaio

1.5. Interdependência, compaixão, cuidado

‘eto e osà uelaà oç oàdeàas ese,à o oà e e í ioàdeàsiàdoàpe sa ,à ela io a do- a a de cuidado, ao lembrar que, na antiga cultura greco-romana, o conhecimento de si, que desembocou na hermenêutica cristã e moderna, era parte do cuidado de si, que se expressava por atividades cotidianas e práticas e não era um fim em si mesmo, nem apenas reflexão abstrata (Foucault, 1985, pp. 55-58). Foucault observa ainda que, numa tal cultura

de si, a Paidéia, a formação ou educação, tornava-se solidária ao cuidado. E destaca dois

1) a cultura do cuidado implica uma intensificação das práticas e relações sociais, inclui doàaíàtodaàu aàati idadeàdaàpala a,àdaàes itaàeàdaà o u i aç o,à oà uidadoà o àoà

uidadoà ueàosàout osàde e àte à o sigo à i id.,àp.à .à

2) haveria uma relação desta cultura com práticas médicas, porém práticas não ortopédicas e sim, relacionadas ao pathos (termo grego correspondente a sofrimento no sentido de afecções – o affectus de Espinosa [Spinoza, 2010]) Não se visaria a uma cura como um fim (salvação), mas como um meio: a cura como um cuidado constante com nossa vulnerabilidade, com as afecções da alma e do corpo e não como a correção de uma imperfeição (ibid., pp. 62-3). O cuidado toma assim a forma de prescrições que se traduzem em práticas, dietéticas e formas de viver concretas.

O cuidado com o cuidado que o outro deve ter consigo nos parece uma expressão perfeita para apostarmos na compaixão-karuna como uma forma de interdependência que foge ao dilema dependência versus independência. O fato de sermos cuidadosos com o outro não significa que o consideremos inábil ao cuidar-se, mas que reconhecemos a interdependência no cuidado. O fato de nos cuidarmos não significa que sejamos egoístas ou autossuficientes, mas que também consideramos o cuidado de si como ultrapassando o eu e que o si agencia-se a múltiplas conexões. O que nos ajuda muito a fugir dos falsos dilemas, os quais expúnhamos acima, que tendem a nos deixar paralisados, capturados, presos nas teias do ressentimento26.

Cultivar a compaixão como um valor não implicaria, assim, cair numa espécie de perversão emocional, na busca por alguém que precise de ajuda e atenção. Não se pratica compaixão por um dever moral de comiseração com a desgraça alheia, mas por um valor ético de participação e interdependência que, certamente, envolve a sensibilidade ao sofrimento, mas não se restringe a ela, incluindo alguma forma de ação habilidosa, sábia. Neste sentido, Trungpa (1973) define karuna o oà sua eàeà o eà o aç o à p.à .àN oàseà percebe, na definição budista, a ideia que a palavra compaixão traria, se tomada em seu sentido literal, de sentir a mesma dor que o outro:

Compaixão é caracterizada como promovendo o aspecto de aliviar o sofrimento. Sua função reside em não suportar o sofrimento dos outros. Ela manifesta-se como não crueldade. Sua causa imediata é ver

26 Sobre o ressentimento como impotência para colocar uma reação em ato, veja-se o livro do autor

o desamparo naqueles oprimidos pelo sofrimento. Acontece quando faz diminuir a crueldade e falha quando se produz tristeza27. (Buddhaghosa, 2010, p. 312, sublinhado nosso)28.

Procurando atravessar tanto a crueldade quanto a tristeza, apostamos no lema

cuidar para conhecer (no lugar do positivista ver para prever), cuidando ainda para que o

cuidado se produzisse como um comum - ou então, não há cuidado (Rocha & Aguiar, 2010). Em que, ao falarmos no cuidado como um comum e numa experiência do sofrimento que não se restringe a uma classe social, não podemos deixar de ressaltar, como diz Butler, que há uma diferença brutal nos níveis de exposição à vulnerabilidade a que alguns grupo sociais são submetidos. E que por isso, devemos chamar estes grupos por seus devidos nomes e não recair nova e teà u àdis u soàa st atoà o oàoàdeà ueà todasàasà idasài po ta à Butle ,à

What´s wrong with 'all lives matter? , 2015). Por isso é um ato político e um ato de cuidado

oàdize à todasàasà idasài po ta ,à asàsi ,à asà idasàdosà eg osàeàfa eladosài po ta ,à reconhecendo que há um sofrimento específico ali que decorre do fato de que, em nossa sociedade, certas vidas importam mais do que outras. E é também um ato político remar contra a segregação e buscarmos nos solidarizar às suas lutas – o que envolve não apenas u à aspe toà ju ídi oà dosà di eitosà hu a os à eà daà dig idadeà hu a a ,à asà u à reconhecimento: que passa pela participação na singularidade de suas experiências de sofrimento, compaixão e cuidado. Essas reflexões nos fazem pensar que, embora possam trazer em si algo desta tradição, esta compaixão é muito diferente, portanto, da compaixão

o oàse ti e toàpolíti oàdi e io adoàaoà po o ,àt i ut iaàdaà ode idadeà oào ide tal.29

27 Este mesmo sentido encontra-se nos ensinamentos do Dalai Lama, que deu uma série de aulas em Stanford

sobre compaixão. Num diálogo com um neurocientista e respeito de uma descoberta de que a mesma área no cérebro onde se localiza o sofrimento é a da compaixão, o Dalai Lama retruca com um comentário jocoso de que isto apenas prova que o cérebro não entende nada de compaixão, pois a compaixão não nos deixa para baixo e sim para cima (e faz um gesto com o corpo denotando força). As aulas estão disponíveis em vídeo (CCARE, 2012).

28 A definição provém do Visuddhimagga, O Caminho da Purificação, escrito por volta de 430 D.C. no Sri Lanka,

por Buddhaghosa, uma grande compilação de ensinamentos referentes à filosofia budista e à cultura mental (bhavana) na tradição do Abhidharma. O tópico que fala da compaixão refere-se à meditação em que há um exercício de concentração (samadhi) com definições e instruções precisas ao cultivo de qualidades mentais conhecidas noà udis oà o oà i o e su eis .à ál à daà o pai o,à i o e su eisà se ia :à oà a o - amizade (metta), a inclusividade ou equanimidade (uppekha) e o alegra-se com a alegria alheia (mudita).

29 A historiadora Maria Stella Bresciani (2006) explora, em seu textoà áàCo pai oàpelosàpo esà oàs uloàXIX:à

u àse ti e toàpolíti o ,àoàusoàdeà et fo asàeài age sàdeàfo teài pa toàe o io al,àpo àes ito esàpolíti osàdoà s uloà XIX,à fala doà dasà o asà o e t aç esà hu a asà asà idades,à aludi doà sà fo çasà i o t oladasà daà natu ezaàouà à e i aàdia li aàdosàho e s à p.à à– evocando a noção estética do sublime. (In: Seligmann- Silva, 2006).

Fechamos assim este primeiro capítulo, tentando transmitir a ideia de que a noção budista de compaixão pode ser interessante, sem que se tenha de aderir à religião ou filosofia budistas, nem praticar alguma de suas técnicas de meditação. Interessante como algo que não deixa de ser também uma forma de meditação que seria o ensaio, este e e í ioà deà sià doà pe sa .à Eà oà pe sa e toà fu da e tal,à aà ossoà e ,à tal ezà sejaà justamente esse: o da compaixão como outra face da experiência de interdependência. Fugindo aos dualismos emocional, passional versus racional ou paixão versus ação, é interessante como o budismo pode nos ajudar a pensar numa compaixão incorporada, que a a jaà ta toà di e s esà pa aà sà o side adasà o oà og iti as ,à ua toà afeti asà eà sensoriais; bem como sociais, ético-políticas, estéticas e cósmicas.

Uma compaixão que surge ao meditarmos sobre o nosso próprio self como tendo um su gi e toà o-depe de te à i ide . àaàtudoà ueà à oàeu;à o oàu àinterser. (Hahn T. N., 2000). Não é ao se perder no outro, mas justamente ao cair em si, que o eu sente-se expandir para além dos seus limites. E para isso, não precisamos evocar nenhuma experiência mística exótica e nenhuma complicada filosofia. Podemos começar lembrando

qual era o nosso rosto antes de nascermos de nossos pais? (Hanh T. N., 2000, p. 26).30

Podemos ainda fazer a experiência – simples, porém nada trivial, é verdade – de habitar a própria pele e mucosas. Através da pele nos sentimos e aos nossos limites e também sentimos o mundo e a presença de outrem. E nos damos conta, de fato, que apesar de sermos seres distintos, só criamos esta consistência nas composições com o ar, os alimentos, as afecções e afetos vários. Paradoxal experiência esta que é a de sentir-se sendo a partir da experiência mesma de vulnerabilidade. A tradução do termo pratityasamutpada31, do

sânscrito, por as i e toà otidia o à Go i da,à ,à p.à à osà fazà pe sa à aà interdependência como algo que nos liberta da causalidade lógica linear de alguém que, uma vez nascido, carrega aquela determinação e será sempre idêntico a si mesmo. Fosse assim, haveria umaà o t adiç oà à ideiaà deà li e aç o à udista.à áoà i sà deà u à

30 Koan (espécie de enigma ou nonsense) zen budista. Em certo sentido, ele lembra a citação que Deleuze e

Parnet (1998) fazem de Joe Bous uet:à Mi haàfe idaàe istiaàa tesàdeà i ,à as iàpa aàe a -la. à Di logos,à 1998, p. 79).

31Noàli oà Oà“e tidoàdaàVida ,àoàDalaiàLa aà àe pli aà ueàestaà oç oàfazàpa teàdaàfilosofiaàge alàdeàtodosà

os sistemas budistas. Explica que pratitya quer dize à eu i -se,à o ta à o àalgoàeàdepe de àeà ue,à todosàosà t s,à e à te osà deà sig ifi adoà si o,à e p essa à depe d ia .à Eà ueà Samutpada significa surgimento. Po ta toàoàsig ifi adoàdeàpratityasamutpada é surgir na dependência de condições, pela força das condições. Num nível sutil, isto é explicado como a principal razão pela qual os fenômenos são vazios de existência i e e te à p.à .à

condicionamento e uma determinação imposta por esta rede, a interdependência expressa a possibilidade de se fazerem novos arranjos e novas composições, num sistema de correspondências incomensurável, que se desdobra no momento presente:

…à oàte àaà e àa uià e à o àu aà ausalidadeà oàte poà e à o àu aà ausalidadeàl gi a,à asàsi à com uma relação orgânica viva, uma ação comum e simultânea, um enfrentamento, uma sucessão de todos os elementos, em que cada um representa, por assim dizer, a média de todos os demais e leva consigo o passado inteiro, assim como todas as possibilidades do futuro. E precisamente por isso, toda a cadeia de nascimento condicionado pode ser interrompida em cada instante e em cada uma de suas fases, porque não está ligada a causas que jazem num passado infinitamente remoto nem pendente num futuro imprevisível em que se apagariam eventualmente os efeitos destas causas (Govinda, 1975, p. 307, tradução minha).

Assim é que os budistasà fala à doà dese ol i e toà deà u aà G a deà Co pai o à (Maha Karuna). Ao invés de ser um aprendizado normativo, de um novo hábito a ser incorporado, trata-se de uma espécie de incorporação da atenção a partir desta dimensão de abertura ao mundo que é vinculada à compaixão. Lembrando o ideal mahayana do

bodhisattva, que é o ser que aspira a encarnar a compaixão na vida ordinária, Varela,

Thompson & Rosch chamam atenção para um aspecto nem sempre levado em consideração: O de que as práticas budistas possam, caso sejam concebidas como meras técnicas de autoaprimoramento, reforçar o padrão egocêntrico habitual (2003; p. 254). No que respeita à compaixão, há uma tendência à tradução desta em termos de empatia, com treinamentos para desenvolvê-la, que podem ser associadas a esta linha32.

É importante marcar esta dimensão, porque há aqui uma armadilha que seria equivaler karuna a empatia. A começar pelos prefixos, já teríamos uma diferença com relação à compaixão: o prefixo com (assim como o prefixo sim, presente no termo cognato, simpatia) implica a copresença de outrem, já o prefixo em sig ifi aà de t o àeàp essup eà oà uma interdependência, mas uma independência. Independência esta que, localizando o

32 Estes treinamentos podem filiar-se a uma instrumentalização do corpo e dos afetos presente na cultura

contemporânea,à o oàp ti asàdeà e -esta .à“o eàistoà e à“a aiaà ,à e à o oàO tegaà .àCo oà também podem aliar-seà àideiaàdeà i iliza àosàpo es ,à o oàpo àe e plo,àaà íti aàfeitaàpo àPattoà à oà a tigoà Mutaç esàdoàCati ei o àaàp og a asàdeà alfa etizaç oàe o io al ,ài ple e tadosà oàte it ioà o te- americano em escolas públicas da periferia, onde 90% são negros e hispânicos (p. 157). Tais programas sofrem a influência do psicólogo Daniel Goleman (conhecido por seu best-seller Inteligência Emocional). No livro Co oàlida à o àe oç esàdest uti as:àpa aà i e àe àpazà o à o àeàosàout os .à Gole a àet.àal.,à ,à ueà narra um encontro do Dalai Lama com divesos cientistas a respeito do tema, um dos capítulos relata o debate a espeitoàdaà edu aç oàpa aào o à o aç o ,àe à ueàu àpsi logoàestadu ide seà elataàsuaàe pe i iaà o à u aàt i aàdeà a a àaàta ta uga .àáàt i aà o sisteàe àt ei a àasà ia çasàaà uza e àosà açosàeà espi a ,à de forma a conterem impulsos agressivos. Em tom de piada, o psicólogo diz que a técnica seria boa ainda já ue,à estaà postu a,à oà seà podeà ate à e à i gu .à Oà Dalaià La a,à zo etei o,à et u a:à asà podeà la ça à olha esà aldosos! à ,àp.à .à

sujeito,àoài di íduo,à o oàu aà su st iaàdete i ada àouà ess iaàpositi a à Gag e i ,à 2001, p. 51), seria como que compensada por uma capacidade de sentir o sofrimento do outro dentro de mim, ao mesmo tempo em que não me envolvo, de fato, com ele33. Nada

mais distante da compaixão-karuna e mesmo da compaixão-simpatia34. Encontramos esta

crítica à empatia na filosofia de Walter Benjamin e Adorno, para quem este conceito não passa iaàdaà de adei aàte tati aàdeàidealizaç oàdoài di idualis oà u gu sà ode o à i id.,à p. 55).

Penso que, ao me deixar embeber pelos afetos no campo, em Acari, fui me dando conta da diferença – ao mesmo tempo em que experimentava cada vez mais a inseparabilidade, nesta diferença. Esta aproximação, na diferença, provocou, no entanto, não uma compreensão e identificação apaziguadoras, mas justamente o contrário: uma experiência de choque na percepção de uma continuidade e ao mesmo tempo como que um abismo de desigualdade e tudo isso num local tão próximo do centro da cidade (onde moro e que fica a 40 minutos de metrô de Acari).