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O valor da compaixão budista para uma crítica do presente

1. A compaixão como ensaio

1.4. O valor da compaixão budista para uma crítica do presente

Pa af asea doà“ a lettàMa to à U às uloàdepois,àai daàu àe te po eo ,à ,à a propósito de Nietzsche, nossa ideia aqui não é defender a atualidade do budismo, mas refletir sobre como nos apropriarmos de algumas de suas práticas e ideias para pensarmos a atualidade. Tendo neste pensar a atualidade um foco preciso na questão acima esboçada de um reaprender ou repensar a política em bases diversas da tradição iluminista e de sua o t apa teà o ti a,ào deàaà o pai oà o pa e e iaà o oàu à se ti e to ài po ta teà ao engajamento em práticas, sejam de assistência ou de transformação social.

Talvez pudéssemos dizer, novamente com a ajuda de Nietzsche, que o budismo tem osàajudadoàp e isa e teà istoàdeàpe sa àaà idaà o oàu àete oàap e dizado,ào de:à ...à essas pequenas coisas – alimentação, lugar, clima, distração, toda a casuística do egoísmo são inconcebivelmente mais importantes do que o que até agora se tomou como importante. Nisto, exatamente é preciso começar a reaprender. à à Nietzs he,à E eà Ho o:à como se chega a ser o que se é, 2008, p. 47).22 Onde tudo que tradicionalmente é

22 Em Ecce Homo,à Nietzs heà e o he eà ai da,à aà i flu iaà doà pe sa e toà udista:à Oà esse ti e toà à oà

proibido em si para o doente – seu mal: infelizmente também sua mais natural inclinação – Isso compreendeu a ueleàp ofu doàfisi logoà ueàfoiàBuda.à“uaà eligi o ,à ueàseàpode iaà aisà o eta e teàdesig a à o oàuma

relacionado ao supérfluo e ao egoísta é revestido de outro significado. Qual seja? O de at iaàdaàe ist ia,à su st iaà ti a ,àdizàFou aultà ,àp.à àal oàdeàu à uidadoà ueà se passa a ter consigo e também com o mundo. Esse cuidado surge como algo muito próximo à ideia de uma atenção (Sekkel, 2009) que não é a atenção da concentração sobre um tema ou ideia (prática que também é importante no budismo), mas um envolver-se em uma atividade diária ou com as necessidades e demandas de outrem. Envolve, portanto, a duração, num constante recomeçar, reto a àoà o tatoà o àoàp ese te,àesta à i tei o à asà práticas, exercícios e lembrar-se de retomar a atenção – não na forma de uma auto o s i iaà doà tipoà euà façoà isso ,à asà e à fo aà deà p ese çaà asà aç esà eà gestosà cotidianos. Conforme o termo sati, em páli ou smriti em sânscrito (Rahula, 1961).

Descendo agora ao nível mais cotidiano destas ideias talvez ainda um tanto abstratas: como esta ideia de ascese compõe-se com a questão desta tese, do valor da compaixão no engajamento político contemporâneo? Entrar em contato com o sofrimento provocado pela desigualdade econômica, pelas situações de terror de Estado, como algumas das situações que acompanhei em campo, impõem a impossibilidade de não se envolver com o sofrimento do outro, de não se compadecer. Sabemos, no entanto, que o sentimento de compaixão está na raiz mesma da questão biopolítica, ao equacionar sofrimento a povo e, logo, à necessidade de salvação e de subjugação (Agamben, 2002).

Então, é precisamente em torno deste ponto que a compaixão budista irá trazer um questionamento desta equação, dado que o sofrimento, no budismo, não seria uma marca disti ti aà deà u à po o .à Ne à es o,à u aà a aà daà idaà te e a,à e à o t aposiç oà aoà mundo divino – mas uma marca da realidade, por assim dizer, cósmica, abrangendo até mesmo os deuses. Dele, portanto, não haveria salvação absoluta, por ser uma condição do ser, fazendo parte, assim, da substância ética da existência diária. Assim, por exemplo, lemos naquele que é considerado o primeiro discurso de Buda que:

Nascimento é sofrimento, envelhecimento é sofrimento, morte é sofrimento; tristeza, lamentação, dor, miséria e desespero são sofrimento; estar com aqueles que não amamos é sofrimento, separação daqueles que amamos é sofrimento, não obter o que queremos é

vitória contra o ressentimento: libertar a alma dele – primeiro passo para a convalescença.à N oàpelaài i izadeà te i aàaài i izade,àpelaàa izadeàte i aàaài i izade ;àistoàseàa haà oà o eçoàdosàe si a e tosàdeàBudaà– assi à oàfalaàaà o al,àassi àfalaàaàfisiologia .à ,àp.à . à

sofrimento. Em resumo, os cinco agregados influenciados pelo apego23 são sofrimento (Sutta Pitaka).

Esta definição aparentemente tão simples – mas no fundo sofisticada – da ideia de sofrimento apresentada no discurso atribuído ao Buda é relacionada à transitoriedade da ida,à àf agilidadeàeà à ul e a ilidade.à‘essaltaàaàe ist iaàe àsuaàa e tu aàaàu à fo a ,à marcando ainda a dimensão de dependência – ou interdependência - em termos de cuidado, suporte e amparo que, necessariamente, vivenciamos: nascer, envelhecer e morrer; doenças e aflições várias; amar e desejar – situações ligadas à corporeidade e que nos expõe a uma multiplicidade incomensurável de afecções. Entrar em contato, de forma intensa e reflexiva, com esta dimensão, significa o início da vida espiritual, no budismo e em outras filosofias indianas.

Reza a lenda que o príncipe indiano, Sidarta Gautama, teria nascido com certas marcas corporais24 at i uídasà pelaà t adiç oà aà algu à ueà pode iaà seà to a à u à g a deà

ho e .àTaisà a asàte ia àsidoàlidasàpo sábios da época e interpretadas como signo de que ele viria a ser ou um grande rei, no sentido mundano, ou um grande líder espiritual. Seu pai, desejoso de que ele fosse herdeiro de seu reinado, tentou mantê-lo confinado nos limites do palácio, oferecendo-lhe os melhores prazeres e deleites que o dinheiro poderia comprar. O jovem, no entanto, desafiando os limites impostos, sai para um passeio e tem suasàfa osasà is es :àdepa a-se com um cego, um homem velho, um cadáver e – por fim, com um asceta renunciante (sadhu). Em suma, depara-se com a questão do sofrimento (dukkha) como inerente à vida. Estas visões são decisivas para que o jovem príncipe abandone o castelo a fim de consagrar-se à vida ascética.

23 Há aqui a referência a uma importante noção budista que é a de skhandas. Refere-se a um processo por

meio do qual nos apegamos a um sentido de eu sólido e independente, mas que por meio da análise se revela o postoàdeàdi e sosà ag egados àhete litosàe transitórios. Discorro sobre este tema em minha dissertação de mestrado, defendida no Instituto de Medicina Social da UERJ: As Margens da Consciência: um estudo sobre o self em William James e no Budismo. (Ferreira, 2004, pp. 99-111). Sobre o self no budismo ver ainda Ferreira (2006, 2008).

24 A questão das marcas corporais na história do Buda denota a importância da corporeidade na ética budista,

como nota Mrozik (2007). Neste sentido, a autora estuda o Compendium of Training, um texto tradicional do Budismo Mahayana, da autoria de Santideva (séc, VII D.C.), destacando-se como não antagônicos, na ética budista, o cuidado com o corpo e a moralidade. Mrozik apoia-se, para tanto, na ideia de tecnologias do self, de Michel Foucault, em que o corpo do Bodhisattva (ser – que pode ser qualquer um de nós – que aspira a iluminação) seria a um só tempo, alvo das técnicas de si e elemento de transformação e benefício a si e aos outros.

Tal maneira de elaborar o início da história do Buda compõe-se ao ensinamento p i o dialà oà udis o,àaàsuaà p i ei aà o eà e dade .àáàideiaàdeà ueàoàsof i e toà àu aà das marcas da existência, não existindo uma ordem moral a reger o universo. As coisas acontecem e se transformam de uma maneira impessoal, para além da nossa vontade de conduzi-las por um determinado caminho. Neste sentido, há certa crueza – e não a compaixão apaziguadora e condescendente – na base da filosofia budista. Nenhum deus viria, nesta religião não teísta, a nos consolar desta verdade.

Mas, se há crueza, há também uma importância atribuída ao cozinhar como forma de ascese, como alquimia na transformação do sofrimento em substância mesma da vida espiritual e em alimento que se oferece aos outros (Mrozik, 2007). Assim, Sidarta Gautama teria feito todo um longo percurso de práticas ascéticas tradicionais, inclusive as mais extremas. Porém, sem dar-se por satisfeito com o resultado, ter-se-ia sentado ao pé de uma figueira, em meditação, fazendo o voto de só levantar-se após a completa liberação do sofrimento. Só após longo tempo em meditação, ele teria realmente feito sua descoberta e se dado por satisfeito, obtendo o insight da origem do sofrimento (a segunda verdade), ao mesmo tempo em que se liberava dele. (a terceira verdade). Sob os auspícios de uma lua cheia de maio, teria se tornado o Buda – um título que quer dizer o desperto. Mais do que Buda teria despertado? Este é exatamente a segunda verdade do budismo: sua insatisfação, seu sofrimento, era proveniente de uma sede (tanha), uma ânsia por completude. Compreendeu que as práticas ascéticas tradicionais eram apenas um disfarce desta sede: visavam à transformação do eu transitório em um eu espiritual, eterno, unido a Brahma. Assim, Gautama, agora Buda, via nisso ainda uma forma de querer agarrar-se a algo, portanto ainda não uma verdadeira liberação. Abrir mão do mundanismo que se entrega aos p aze esà se suais,à pa aà ai à oà ete alis o à aà us aà po à u à euà i o tal,à ai daà ueà cósmico, seria ainda uma forma de apego. Bem como as formas extremas de ascetismo, como ficar sem comer nada, que enfraqueciam o corpo em direção ao nada, o niilismo: seriam ainda maneiras de se agarrar a alguma coisa. Buda aceita o alimento oferecido por uma mulher. Doravante ele proporia o caminho do meio como a quarta verdade. A verdade de que existe um caminho para a liberação do sofrimento.

Após titubear sobre a possibilidade de transmissão daquela experiência (reza a lenda de que o próprio Brahma, o deus hindu da criação, interveio) Buda vai até Benares e começa a ensinar os seus cinco amigos que o acompanharam em todo o percurso de ascetismo até a

iluminação e continua a ter muitos outros amigos e alunos ao longo do tempo, dedicando-se a isso até o fim de sua vida, por um período de cerca de 40 anos. Vemos aqui a compaixão como algo que induz à ação, mas que não seria um sentimento idealizado ou onipotente, deixando lugar para as incertezas e dúvidas.

É aqui talvez que possamos pensar na questão da tradução como capaz de ampliar sentidos, onde questionamos o aspecto passivo atribuído à compaixão, ressaltando o aspecto ativo, que se perde quando o termo karuna é vertido ao português como compaixão, que literalmente, em seu sentido etimológico, seria sofrer com. Na compaixão-

karuna, temos presente na raiz kar, do sânscrito, que indica fazer, criar, como lemos neste

tradicional compêndio de práticas meditativas, (tradução minha) 25:

Quando há sofrimento nos outros, isto causa (karoti) os corações de boas pessoas serem movidos (kampana), portanto, é compaixão (karuóá). Ou, alternativamente, combate (kióáti) o sofrimento dos outros, o ataca e derruba, portanto, isso é compaixão. Ou, alternativamente, é espalhada (kiriyati) sobre aqueles que sofrem, é estendida a eles por pervasão, portanto, isso é compaixão (karuóá) (Buddhaghosa, 2010, p. 312).

Será que poderíamos também relacionar esta raiz sânscrita, kar, de karuna, com o termo care, cuidado em inglês? Pois care viria de caru, do inglês antigo e do ramo germânico-gótico, kara, donde care. (Cassin, 2014, p. 9208). A etimologia de care, aproximaria assim os sentidos de compaixão e cuidado através da raiz kar, relacionada ao sentido de criação. Já o cuidado, em latim, corresponderia a cogitatus, que tem um sentido mais cognitivo, visual, de velar, olhar... estar alerta, aproximando-se também a um sentido de atenção, bem como do criar e do fantasiar (Cf. Agamben, 2012, p. 25). Assim, na definição de karuna, não temos uma descrição de um estado interno, privado, que seria como que o motor de ações solidárias, estas sim, socializadas. Haveria como que uma confluência entre o coração (que em pali diz-se citta e que significa pensar, refletir) e as ações; o primeiro não o espo de doàaoà o aç oàdoà o a tis oào ide tal,à oàse tidoàe oti oàeà espo t eo ,à mas envolvendo um aspecto me talà deà disposiç o ,à o oà aà e p ess oà deà todoà oà o aç o à Cohen, 2000, p. 230). Abrange, pois, o sentido de ser movido e o mover-se em direção a ações que procuram criar formas de combater o sofrimento.

25 Um texto clássico do budismo, o Visuddhimagga, O Caminho da Purificação, escrito por volta de 430 D.C. no Sri Lanka, por Buddhaghosa, uma grande compilação de ensinamentos referentes à filosofia budista e à cultura mental (bhavana) na tradição do Abhidharma. O tópico que fala da compaixão refere-se à meditação em que há um exercício de concentração (samadhi) com definições e instruções precisas ao cultivo de qualidades

Assim, o que a compaixão budista tem de política/ transgressora / profanadora é que não haveria salvação para o sofrimento, não há a redenção que assegura contra o mal. Mas por outro lado, há uma nítida aposta no cuidado como forma de se aproximar da questão do sofrimento. É isto, talvez, que nos tenha feito apostar na compaixão budista – karuna – o oàfu da e talàpa aàseàsai àdeà dile asài fe ais à a ui,àdi ía os,à esta àe t eàaà uzàeàaà aldei i ha ,à oàse tidoàdeà ua doà osàse ti osàe t eàduasà opç es àigual e teàte í eisà (cf. Pignarre e Stengers, 2 ,ào deà oàha e iaà sal aç o .àCo oàpo àe e plo:àseàfaze osà algo podemos estar corroborando o estereótipo de que os pobres são seres faltosos, com o clientelismo e o paternalismo e se não o fazemos, somos coniventes à frieza e à indiferença capitalistas. Assim como outro dilema que nos paralisa seria o de ficar entre a impotência e a onipotência diante de tantas situações de crueldade, sofrimento e terror. E ainda este: ou bem cuidamos da vida pessoal e familiar, ou nos dedicamos à militância e ao ativismo. Pignarre e Stengers nos indicam que o capitalismo atua assim, muito mais nos capturando e àfalsosàdile as,àdoà ueàe ata e teà osà ega do àouà e ti doàpa aà s.àássi ,àaàideiaà da compaixão budista como um envolver-se com o sofrimento, sem buscar uma salvação, mas também sem aceitá-loà o oàu à alà e ess io ;à us a doà o at -lo em práticas muito concretas que nos vinculam uns aos outros, nos parece fundamental ao pensamento político contemporâneo, como um dos vetores capaz de transversalizar as miríades de lutas singulares das minorias, que compõem o quadro atual.