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1. A compaixão como ensaio

1.1. O ensaio como método

Escrever sobre a compaixão budista ao mesmo tempo em que buscava articulá-la com a experiência do trabalho de campo, desde o início, representou um enorme desafio. Desde os primeiros esboços de projetos de pesquisa, bem como nas demais elaborações apresentadas ao longo do doutorado, meus escritos se apresentavam invariavelmente com um aspecto cindido: entre uma parte teórica e outra empírica. Se não é mesmo fácil articular a experiência e a teoria, este desafio se torna ainda mais agudo na pesquisa de cunho et og fi o,à ta a haà aà di e sidadeà eà i te sidadeà doà ate ial à o à ueà e t a osà e à contato numa pesquisa desta natureza.

Se eu buscava fugir da idealização da compaixão budista, com o compromisso de pesquisar não somente nos livros, mas com engajamento e participação, colocava-se um desafio.à Qualà seja:à oà deà e ita à out aà pet ifi aç o à doà eal, na imagem da favela apenas como lugar de violações e ausências dos direitos, de sofrimentos atrozes (Vergne, 2010). Dois lados da face da Medusa: o da idealização sublime de um sentimento e o do terror. A aposta era de queà aà fo aà doà ensaio à fu io asseà o oà te tati aà deà supe a à estasà armadilhas, como o escudo onde Teseu enxergava, de forma enviesada, fragmentada, o rosto da Medusa (Calvino, 1990).

A partir da discussão com as professoras Katia Aguiar e Maria Luísa Sandoval Schmidt, no exame de qualificação – e por sugestão desta última – optei por aprofundar o tom ensaístico que minha escrita já vinha insinuando, ao menos no título dado ao trabalho

Ensaios da Compaixão. Assumi, portanto, a partir daquele momento, a cisão apontada na

aprendizado e de uma transformação. Assim, procurei entender o ensaio não só como forma estilística, mas como uma atitude ético-política.

De que forma a questão ensaística diz respeito, portanto, não só ao plano do conhecimento, mas também à estética, à ética e à política? Phillippe Pignarre e Isabelle Stengers em seu livro sobre a feitiçaria capitalista [la sorcellerie capitaliste] (2007), nos acompanham nestas reflexões, quando dizem que, mais do que nos cegar, o pensar ideológico nos captura, nos enfeitiça (p. 62). Nos torna presos a uma armadilha em que a própria capacidade de pensar e de sentir fica restrita a determinadas formas preestabelecidas. Para estes autores é fundamental conceber o fazer política como uma forma de ensaio e aprendizado. Há que buscar outras imagens para os movimentos sociais diferentes daquelas de certo iluminismo, calcadas na metáfora da visão e do esclarecimento; bem como nas metáforas bélicas e militares. Como as que se apresentam em termos como: oàt a alhoà deà ase ,àaà ilit ia .àCo oàseà astasseàape asà e à teorizar) para então, agir:

o iliza àasà assas.

Ao encontro destas meditações, acenou-nos, como um achado, a ideia de exercício (Übung), por meio da leitura de um texto de Jeanne Marie Gagnebin (2007), em ela apresenta este como um conceito chave, usado por Walter Benjamin para descrever a escrita filosófica. Algumas palavras precisam ser ditas, no entanto, sobre o sentido do

filosófico. Não o tomamos no sentido de um ramo especializado do conhecimento – mas no

sentido de uma reflexão a respeito de atitudes diante de problemas para os quais não temos repertório conhecido ou mesmo satisfatório, em nossa cultura – instando-nos a pensar e ia à o asà a ei asà deà i e .à ássi ,à aàdi isa,à t oà e à odaà estesà te pos,à deà faze à deà ossaà p p iaà idaà u aà o aà deà a te ,à oà i pli a iaà u aà estetizaç oà doà i e ,à asà si à numa espécie de aprendizado/ensaio.

Gagnebin nos lembra de que o conceito-chave do exercício evoca não só os e e í iosà espi ituaisà daà ísti aà eà dosà t atadosà edie aisà ua toà aosà e e í iosà eà performances das vanguardas artísticas. Conceito que remete também à nossa finitude, seu i a a a e toà eà sà suasà aleg ias à ,à p. 90). E ainda o aproxima tanto de Walter Benjamin, quanto de Adorno, referindo-se ao fato de que este último também usa o termo ensaiar neste sentido; e ainda de Michel Foucault (1984), quando este, su p ee de te e te ,àsegu doàGag e i ,à eto a àa asàasàpala as,à essai àeà exercice à

na introdução do segundo volume de Hist iaàdaà“e ualidade . E cito Michel Foucault, na tradução de Jeanne Marie Gagnebin:

O ensaio – que deve ser compreendido como uma prova modificadora de si mesmo no jogo da verdade e não como uma apropriação simplificadora de outrem para fins de comunicação – é o corpo i oà daà filosofia,à peloà e osà seà estaà ai daà fo à hojeà oà ueà e aà out o a,à istoà ,à u aà as ese ,à u à exercício de si do pensar (Foucault citado por Gagnebin, 2005, p. 187).

Façamos agora, portanto, um exercício envolvendo nosso tema: um ensaio da compaixão. Logo, não se trata de ver no budismo uma alternativa aos dias de hoje, no sentido de que a ascese budista, seus exercícios de compaixão, sejam vistos como a solução para a crueldade no mundo atual. (Embora esta seja uma leitura possível.) Fazer um ensaio de compaixão, aproximando-nos dos sentidos da compaixão budista, significa fazer exercícios de composição de outras imagens da compaixão, enriquecendo seus sentidos. Neste ensaio, busca-se uma modificação de si ao se aproximar dos diferentes, sem querer perder-se neles, ou reduzi-los a uma identidade consigo próprio. Para tanto, nos é conveniente agora voltarmo-nos à ideia de tradução em Walter Benjamin.

No célebre texto de ,à A Tarefa do Tradutor ,àBe ja i à àt azàaài age à das línguas, traduzidas umas nas outras, como cacos de um vaso que precisam se o ple e ta à o fo a do-seà a o osa e te à p. ,à se à ueà p o u e osà es o de à seu caráter de fragmentos, suas desigualdades, fissuras e imperfeições. Suas afinidades se encontram no todo da forma que procuram perfazer e não numa igualdade atomística, onde um termo e sua representação corresponderiam ponto por ponto. Sob esta ótica, a tradução não é traição, mas seria justamente quando e onde as línguas tem a possibilidade de lançarem-se neste movimento de recriação e ampliação de seus sentidos por meio de um e e í ioà deà e pe i e taç oà est ti a:à li e a à aà lí guaà doà ati ei oà daà o aà po à eioà daà recriação [Umdichtung] (ibid., p.117).

Oà te toà O Ensaio como Forma à Der Essay als Form) mostra-se também uma referência importante. Ele é um dos principais ensaios de Theodor Adorno (2003), espécie de manifesto teórico do autor, escrito entre 1954 e 1958, no pós-guerra. (Pucci, 1998; Larossa, 2003; Botton, 2011). O texto foi publicado numa coletânea intitulada Noten zur

Literatur Notasà so eà Lite atu a .à ásà pala asà e saio à eà otas à d oà i p ess oà deà u à

esboço para se encontrar a forma definitiva. No entanto, a ideia de ensaio como forma parece subverter tal impressão e apontam para que as notas e esboços, os ensaios, dantes considerados apenas como estágios para que se alcance uma perfeição final, sejam

considerados como obras, como formas. Notas e esboços se aproximam bem mais ao caráter precário e efêmero, do que a sistematicidade acabada de todo um edifício teórico. Talvez seja então preciso renunciar à pretensão de produzir formas acabadas e definitivas – enquanto completude e totalidade – mas não ao acabamento enquanto finitude (caráter histórico) e nem ao acabamento como rigor, desejo em se alcançar uma forma com determinada qualidade estética.

Em O Ensaio como Forma (2003) e também no texto Caracterización de Walter

Benjamin, Theodor Adorno (1962) irá defender uma forma de escrita capaz de evocar a

li e dadeàdeàu aà ia ça.àLi e dadeàestaà ue,àpo àp i ípio,à oà ad iteà ueàseuà itoàdeà o pet iaàlheàsejaàp es ito ;à asà ueàta à oàest àp eo upadaàe à o pe àli ites,à apesar de acabar por rompê-los, justamente por ueà oàte à e go haàdeàseàe tusias a à o à ueàosàout osàj àfize a à ,àp. .àJu ta doàestaài age àdeàádo oàaàdosà a os ,à de Benjamin, teríamos assim evocada a liberdade da criança que aprende, trazendo à cena não a ideia de um desenvolvimento e umaà iaç oà aàpa ti àdoà ada ,à asàsi àaàli e dadeà e àdispo àdosà a os àdeàu aàt adiç o,àse à a ega àoàpesoàdeàt a s iti-la. E que, por isso mesmo, acabaria por transmiti-la,à aàfo aà i aàdoàjogo,àdaà i adei a:à Feli idadeàeàjogoà lheàs oàesse iais à ibid., p. 17). Não seria uma negação da tradição e sim, a proposição de outra relação, outra atitude para com esta: mais engajada em intensificar as forças de criação no presente do que em ser fiel a uma ortodoxia.

Assim como Walter Benjamin defendia e encarnava a ideia de uma não linearidade em sua escrita, Adorno, inspirado em Benjamim, defenderá a fragmentação da apresentação como uma forma de mistura do sujeito com o objeto num espaço intermediário entre os dois (Ibid., p. 22). Sobre isso, Adorno diz aindaà ueà oà pe sa e toà à p ofu doà po à seà aprofundar em seu objeto, e não pela profundidade com que é capaz de reduzi-lo a uma out aà oisa à I id. .à N oà eduzi à oà o jetoà aà out aà oisaà à oà to a à oà es itoà e ua toà representação, mas como matéria; matéria esta que sempre se apresenta numa determinada forma. Logo, aprofundar-se no objeto é tomar a questão da exposição (darstellung) – a forma do pensamento – como fundamental e não como acessória, ao conhecimento. (Gagnebin, Do conceito de Darstellung em Walter Benjamin ou verdade e beleza, 2005). Assim como na literatura, na arte narrativa, não basta ter uma história, mas é fundamental a forma de contá-la; também na área da ciência e do conhecimento, segundo esta concepção, teríamos na linguagem, não apenas um meio de comunicação, mas sim

nossa matéria. Contraposto à ideia de conhecimento como pesquisa afeita à lógica do registrar para classificar, teríamos a ideia de que os próprios registros já seriam formas ético- estético-políticas: interpretações e valores. Forma e conteúdo não podem ser separados.

A imagem da criança8 que ainda não desistiu da felicidade, se permitindo amar e

odiar no jogo da vida é uma imagem que Adorno ressalta, atribuindo-a a seu mestre Walter Benjamin. E afirma, em belas formulações que, o pensamento de Benjamin era uma recusa a abrir mão da felicidade (experimentada pela criança), como por exemplo, na seguinte passage :à Fala à o àeleàe aà o oàse ti -se como uma criança que distingue, por entre as frestas da porta, as luzes da árvore de Natal à9 (1962, tradução minha, pp. 245-46). A

imagem das pequenas luzes vistas pelas frestas, dos presentes e da dádiva, é evocada para compreendermos a ideia de um pensamento afeito a composições a partir dos elementos ueàseà osàap ese ta à oà u do:à Oàpensamento de Benjamin não era um criar desde o ada,à asàsi ,àaoà o t io,àu àp ese tea àdesdeàoàple o à10 (Ibid.).

Retornando ao aprendizado a que nos referíamos no início desta sessão e que está colocado como desafio para esta pesquisa, perguntamos como a compaixão budista se nos apresenta como um destes presentes com os quais nos deparamos no mundo. Com o qual nos aventuramos à produção de novos sentidos de compaixão. E como ela pode ser pensada, nesta composição, como um prisma, como um caco que se conecta a cada fragmento desta tese. Assim, a compaixão se apresenta para nós como um valor.

8 A figura da criança aqui ecoa passagens de Nietzsche (Nietzsche, Genealogia da Moral, 2009) como na

Segunda Dissertação, e à ueàfazà e ç oàaoàf ag e toàdeàHe lito:à Te poà à ia çaà i a do,àjoga do;àdeà

ia çaàoà ei ado. à Ve à otaà àdoàt aduto àPauloàCesa à“ouza,àp.à 48). Em Assim Falou Zaratustra, o filósofo também se valerá da imagem da criança como uma das metamorfoses de Zaratustra, como figura da inocência implícita na liberdade de todo recomeçar (Nietzsche, 2011).

9Naàt aduç oàespa holaà o sultada:à Hablar con él era sentirse como el niño que distingue, por las ranuras de

laàpue ta,àlasàlu esàdelà olàdeàNavidad. Pode osà ita àai da:à Todoàloà ueàBe ja í àdijoà àes i i àsue aà

como si el pensamiento recogiera las promesas de los cuentos y de los libros infantiles, en vez de recusarlas o àdespe ti aà adu ezàdeàadultoà ... à ádo o,à ,àp.à .

10Naào aà o sultada:à El pensamento de Benjamin no era crear desde la nada, pero si em cambio um regalar