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2. As lutas de Acari no contexto político da cidade

2.2. Campo, sufoco, terror e paranoia

Por milênios, o homem permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivente e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um animal em cuja política está em questão a sua vida de ser vivente.

Michel Foucault, Em Defesa da Sociedade

Num texto menor de 1925 (do período entre guerras) intitulado As Armas do Futuro:

batalhas com cloroacetofenona, difenilamina cloroarsina e sulfeto de dicloroetila50, Walter

Benjamin fala da produção de um clima de sufoco enquanto nova estratégia de dominação, que teria sido inaugurada na Primeira Guerra, com o uso das armas químicas. Assumindo um tom visionário, vaticina:

... à essaà gue a,à aà gue aà doàg sà ueà e à dosà a es,à ep ese ta à u à is oà lite al e teà deàti a àoà f lego ,àe à ueàesseàte oàassumirá um sentido até agora desconhecido. Porque sua peculiaridade estratégica mais incisiva reside nisto: ser a forma mais pura e radical de guerra ofensiva. (Benjamin, 2013, p. 69)

Pois, dirá Benjamin, trata-se de armas para as quais não há abrigo possível, dada a pervasividade dos gases que, por serem pesados, invadem os lugares subterrâneos, tradicionalmente procurados como abrigos para armas explosivas. E mais ainda, o ta i a à aà gua,à oà solo,à to a àoà a ie teà i i í el ,à ia doà e dadei osà dese tos. Talvez Benjamin não supusesse quão mais insidiosas seriam estas armas, capazes até mesmo de modificar a estrutura da matéria – e da vida – de forma irreversível e duradoura: a bomba nuclear, utilizada contra civis em Hiroshima em finais da Segunda Guerra. Este é outro aspecto para o qual Benjamin chamará atenção: para a impossibilidade de, em se tratando deste tipo de armas, respeitar a tradicional distinção entre civis e militares em combate. Isto apontaria para uma pervasividade do próprio militarismo, fato este também comentado por nosso autor no artigo em questão.

Porém, tão insidiosa e destrutiva quanto a energia atômica seria o que Benjamin denomina neste texto como guerra espectral oà se tidoàdes o he ido à ueàeleà e io aà

50 Publicado num jornal em anonimato e posteriormente catalogado por Benjamin como fazendo parte de sua obra, o texto foi publicado no Brasil no livro Capitalismo e Religião (São Paulo, Boitempo, 2013, pp.69-72).

na passagem acima citada): A guerra vindoura terá um front espectral. Um front que será deslocado fantasmagoricamente ora para esta ora para aquela metrópole, para suas ruas, diante da porta de cada uma de suas asas à i id.,à p.à .à Taisà espe t os,à o oà osà gases,à invisíveis (... à de e ài fu di à aàpopulaç o dos centros inimigos um terror inconsciente tal que malogre qualquer apelo à organização da resistência. O terror deve ser algo similar à psicose .à “u li hadoà osso. à

Por que associar este terror à psicose é algo que fica como uma questão. Talvez porque seja algo vivenciado de forma intensa e pervasiva, como uma forma de

desrealização.51 Este termo, que a psicanálise relaciona ao campo da psicose, também é

utilizado por Butler (2006aàe àseuàa tigoà Violence, Mourning, Politics ,ào deàelaàsuste taà que a luta política de resistência à biopolítica não passa tanto pela questão da e lus o/i lus oàeàsi àpo àu aà i su eiç oà oà í elàdaào tologia à p. ,àt aduç oà i ha .à Porque seria como se as pessoas estivessem, mais do que sendo mortas, sendo constituídas u à a poà ueàelaàde o i aàdeà espe t al :àu aàsu jeti idadeà ueàelaà o eiaàdeàzu isà e mortos-vivos. Assim, este terror da desrealização é o terror de perder o real a ponto de não poder substituí-loàpo àout aà ealidade:à Tudo está imobilizado, petrificado, fosco: isto é, i su stituí el. à Ba thes,à ,àp.à .à

Pensemos na própria vida como objeto deste poder que intoxica, colocando-se mesmo a possibilidade de aniquilamento do próprio mundo: se o front pode se deslocar de forma espectral para todos os lugares, não há mais front. A vida torna-se um imenso campo de batalha – ou melhor – torna-se um campo, sem batalha52. Um campo onde a própria vida

51“o eàesteàtipoàdeà iol iaà ueàa eaçaàaà segu a çaào tol gi a ,à e àaà olet eaào ga izadaàpo àMa hadoà da Silva, supracitada, especialmente o artigo de Machado da Silva e Leite (2008). Recentemente uma criança de três anos foi morta dormindo em sua cama, atingida por um tiro de fuzil que lhe desfigurou o rosto. (Por um tiro de fuzil proveniente de um batalhão que, como veremos a seguir, também atua em Acari). Talà o teà e à o f o to àge ouàp otestoà oàMo oàdaàQui ta da,àe àCostaàBa os,à ai oà izi hoàaàá a i.à“o eàestaàeàout asà o tesà deà pessoasà o à alasà pe didas ,à i lusi eà ia ças,à aà es aà egi o,à e :à <http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2014-07/moradores-de-comunidade-do-rio-protestam-contra- morte-de-criancas >.

52 Para ajudar a pensar a questão, recorramos à noção e clínica – e também ética e poética – do ambiente o oà entorno àeàsuaà elaç oà o àaàpsi oseà asà efle esàdeàJea àOu .àEleàdi à ueàoàes uizof i oàsof eàdeà u aà faltaà deà deli itaç oà justa e teà po à esta à da sà leà fe (no fechado). É como, se por uma falta de contato, perdêssemos as delimitações que surgem da dialética entre o dentro e o fora, daí a terapêutica p e isa àe ol e àu àaspe toà ela io adoà sàpassage s,àaosàdife e tesà luga es ,àpaisage sàeà hei os.à Ou ,à s/d).

está submetida ao poder de deixá-la ou não viver e – em deixando-a viver – administrá-la. Como resistir a este poder?

Tudo isso poderá suceder um dia sem que se veja no céu qualquer aeronave nem se perceba o ronco de uma hélice. O céu poderá estar claro e o sol brilhando, mas invisível e inaudível, a uma altitude de 5 mil metros paira um esquadrão aéreo respingando cloroacetofenona, gás lacrimogêneo, oà aisà hu a o àdosà o osà e u sosà ue,à o oàseà sa e,àj à te eà e taà i po t ia nos ataques com gás da última guerra (Benjamin, 2013, p. 70).

No caso das operações policiais cariocas, o aparato bélico não é, em sua maioria, feito de armas químicas, apesar de que a polícia também tem feito uso de spray de pimenta eàgasesàla i og eos,àe ui o ada e teà ha adosàdeà a asà oàletais ,àaoà ep i i àosà favelados53. Porém, observamos que, tanto no caso da atuação dos bandos de traficantes,

como no caso da polícia, tem-se a questão da imprevisibilidade das intervenções. Não se sabe quando podem agir ou quem poderá vir a ser atingido, como no caso das assim ha adasà alasà pe didas .à “ oà pessoasà ue, devido a estas intervenções violentas, se arriscam quando há tiroteio na hora em que precisam sair de casa para trabalhar. São trabalhadores que, por vezes, dormem a semana toda pelas ruas do Rio, por não se sentirem seguros em voltar para casa. São crianças e professores que ficam sem poder prosseguir com suas atividades – são pais que, devido a uma intervenção da PM que irrompe em meio ao horário letivo – precisam se articular para conseguir deixar o trabalho e ir buscar os filhos na escola. São pessoas que nem dentro de casa se encontram seguras, pois podem ter suas residências arrombadas por policiais (e seus bens pilhados) sem mandado judicial54. Trata-se

de uma vida sob a zona de indeterminação, onde é difícil prever o que vai acontecer, conforme refere Agamben (2002).

Em minha pesquisa de campo, Deley por diversas vezes precisou cancelar o treino de fute olà o à asà ia çasà e,à e taà ez,à desa afou:à Fico chateado porque não vou poder

53 H àde ú iasàdeàmoradores dessas áreas de situações nas quais o spray de pimenta utilizado pelos policiais atingiu inclusive crianças, intoxicando-as e provocando reações alérgicas que resultaram em casos de hospitalizaç o.àáàutilizaç oàdoàa a e toàditoà oàletal àta m marca os territórios ocupados por forças militares com ações que produzem vítimas fatais, como a morte de Mateus Oliveira Casé, de 17 anos, p o o adaàpelaàa aàdeàelet o ho ueàdeàu àage teàdaàUPPài staladaàe àMa gui hos. àVe à at iaà o pletaà sobre violações de direitos em favelas com UPPs em: <http://global.org.br/arquivo/noticias/sobre-violacoes- de-direitos-em-favelas-com-upp/> Ver ainda a matéria sobre uma cadela atingida por spray de pimenta: <http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2012/11/08/soldado-que-borrifou-spray-de-pimenta- em-cao-na-rocinha-e-absolvido-pela-pm-do-rio.htm.>.

54 Para relatos de moradores de favelas cariocas a respeito da vida cotidiana atravessada por operações policiais, ver o livro de Alves & Evanson (2013).

treinar as crianças. É um cerceamento do direito de ir e vir .àál àde chateado, fica também

preocupado, receoso de que haja algum garoto que, apesar do combinado deles de que não há treino quando tem operação policial, esteja desavisado. Acompanhei um dia em que estava tendo operação e em que Deley pediu a algumas crianças que brincavam próximas ao campo de futebol, que avisassem caso aparecesse alguma para o treino. No livro de Alves e Evanson (2013), este é um aspecto bastante presente na fala dos professores de escolas que est oà so àfogoà uzado ,à ualàseja,àoàse ti e to de responsabilidade para com a proteção dasà ia ças.àEà itoàaàfalaàdeàu aàp ofesso a:à Euàseià ueà oàsouà espo s elàpo àeles.àEuà não sou responsável pela morte da criança, mas eu vou me sentir culpada por não ter sido capaz de protegê-la,àe te de? à ibid., p. 68.) Perguntei a uma de minhas interlocutoras em Acari, mãe de alunos da escolinha de Deley, como faziam quando tinha operação policial e as crianças já estavam na escola. (Pois quando há, elas não vão, não tem aula.) Ela contou que, certa vez, ligaram para ela, da escola, dizendo que ela tinha de ir buscar as crianças. Ela então respondeu que não tinha como ir, pois estava longe, trabalhando no centro da cidade. A escola ameaçou, apelando para a responsabilidade da mãe. Ao que a mãe respondeu que

uma vez que a crianças esteja na escola, a responsabilidade é da escola". Por fim, alguém

da própria escola conduziu as crianças para casa.

No livro Vida sob Cerco: violência e rotinas nas favelas do Rio, escrito por vários autores a partir da escuta, em grupo focais, sobre a vida de moradores de diversas favelas a io as,à oà te aà daà oia à pa a oia à eàdaà eu ose à à ta à tidoà o oà ele a te.à Noà capítulo escrito por Márcia Leite e Luiz Antonio Machado da Silva, a emergência deste tema nas falas das pessoas,à ài te p etadaà o oàt aduzi doà e àli guage àpsià ... àu aà eaç oà individual e defensiva à extensão da submissão imposta pelos traficantes e um certo conhecimento de que ela pode ser um tanto exagerada à (2008, p.68.) O que problematizamos é, no entanto, se seria mesmo uma reação psicológica defensiva, individual, ou uma subjetividade produzida no registro sócio-político das práticas capitalistas, no sentido dos dispositivos governamentais que estamos discutindo.

Deleuze e Guattari também irão tematizar a psicose – a esquizofrenia e a paranoia – numa chave similar à de Benjamin, no texto acima, associando-as mais ao campo social e

político do que ao intrapsíquico e familiar55. Para estes autores, o desejo também é

produção e não pode ser pensado fora de sua relação com o modo de produção econômico capitalista. Bem como o capitalismo não pode prescindir da produção desejante na manutenção de seu maquinário, não apenas enquanto superestrutura, mas como algo básico. (Guattari & Rolnik, 2005.) Em O Anti-Édipo, Deleuze e Guattari conduzem também uma discussão a respeito da máquina despótica e seu modo de funcionamento paranoide. É possível associar a imagem que aparece no texto de Benjamin, dos ataques inaudíveis e invisíveis que vem do alto, dos aviões que despejam substâncias químicas intoxicantes, ao julga àaà idaàeàso e oa àaàte a ,à aàsegui teàdes iç oà ueàDeleuzeàeàGuatta iàfaze àdaà paranoia:

O que define a paranoia é esta potência de projeção, esta força de voltar a partir do zero, de objetivar uma completa transformação: o sujeito salta para fora dos cruzamentos aliança-filiação, instala-se no limite, no horizonte, no deserto, sujeito de um saber desterritorializado que o liga diretamente a Deus e o conecta ao povo. Pela primeira vez foi tirado da vida e da terra algo que vai permitir julgar a vida e sobrevoar a terra, princípio de conhecimento paranoico (2010, p. 257).

U à pode à ueà seà p ojetaà u à al ,à deà o deà podeà julga à aà ida:à N oà esta ía osà a uià tocando nos temas de um biopoder soberano, que se exerce sobre a própria vida, tornada

vida nua, matável? (Tais como desenvolvidos, respectivamente, por Michel Foucault e

Giorgio Agamben.) Proponho, portanto, estabelecermos agora esta relação.