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A força da graça e a sua transmissibilidade

PARA UMA ABORDAGEM SISTEMÁTICO-TEOLÓGICA DO SACRO-RELIGIOSO ENTRE OVAKWANYAMA

4.3. A força da graça e a sua transmissibilidade

A graça é uma bênção de Deus, que supõe a fé, que também é um dom420. A bênção tem a sua fonte em Deus; é uma acção divina. A bênção é no fundo a expressão do encontro de Deus com o homem, onde Deus concede os seus dons e o homem em acção de graças responde a Deus. Trata-se do encontro entre o dom de Deus e a vontade e disponibilidade humanas no acolhimento do dom. Na verdade, «gratia non destruit

naturam, sed supponit et parficit eam»421. A bênção do homem não passa por devolver a Deus o que é seu em espírito de gratidão e louvor422.

Para a compreensão frutuosa deste tema, é fundamental entender o que se compreende por graça. Ela é dom do Espírito que nos santifica e nos justifica423. Por outro lado, a graça são os dons que o Espírito concede aos homens para que possam ser associados à sua obra, tornando-se instrumentos de salvação dos outros homens, participando assim na construção e crescimento do Corpo Místico de Cristo424.

Podemos compreender a graça como um favor e socorro gratuito de Deus. É Ele próprio que vem ao encontro dos homens, dando-lhes a sua graça, para responder ao seu convite de se tornarem seus filhos, participantes da natureza divina, da Vida Trinitária, tomando parte na graça de Cristo425.

420 «Esta nova vida é dom de Deus, e, ao homem, é-lhe pedido que a acolha e desenvolva, se

quiser realizar integralmente a sua vocação, conformando-se a Cristo» Redemptoris Missio, 7.

421 Trata-se de uma afirmação tradicional que podemos encontrar em J. J. F. FARIAS, «O cosmos

‘divinizado’, 411.

422 Cfr. CIC, 1078; 2626 e 2645.

423 Para a melhor compreensão da graça no contexto da justificação, remetemos para Farias. Aliás

ele fala da graça nas suas variadas perspectivas, desde o Antigo Testamento até ao Novo, apresentando de uma maneira clara, profunda e sistemática a graça na tradição teológica, passando pelos debates sérios ao longo da história, e no Magistério da Igreja. Cfr. J. J. F. FARIAS, Antropologia e graça. Ser cristão hoje (Lisboa: Universidade Católica Editora 2011).

424 «A graça santificante nos faz "agradáveis a Deus". Os carismas, graças especiais do Espírito

Santo, são ordenados à graça santificante e têm por finalidade o bem comum da Igreja. Deus também actua por meio de múltiplas graças actuais, distintas da graça habitual, permanente em nós» CIC, 2024. Cfr. CIC, 2003.

425 Cfr. CIC, 1996-1997.Importa apontar, a propósito, para as «três dimensões que a graça, na sua

fenomenologia sacramental, vai implicar: trata-se da filiação adoptiva e do consequente novo ser ou a ontologia da filiação que sobretudo a graça sacramental do baptismo vai implicar. Donde decorre a

Benzer um determinado objecto para ser sagrado é um acto sacramental. Se por um lado conhecemos sete sacramentos, por outro, sabemos que existem muitos sacramentais. Estamos perante sacramentais instituídos pela Santa Igreja, como sinais sagrados pelos quais se obtêm efeitos de ordem espiritual. Pelos sacramentais são santificadas as circunstâncias da vida426.

Estes sacramentais são instituídos pela Igreja para a santificação de ministérios, de estados de vida, do uso das coisas úteis ao homem. O sacramental inclui sempre uma oração acompanhada de um sinal visível427. Os sacramentais não dependem do sacerdócio ministerial, mas do baptismal. Por isso os leigos podem presidir a algumas bênçãos428. Ainda que os sacramentais não confiram a graça do Espírito Santo, eles preparam para a sua recepção e cooperação com ela. Na verdade, Cristo é a fonte de toda a graça429.

Os objectos benzidos em nome da Santíssima Trindade recebem a graça de Cristo e conservam-na graças à acção de Cristo e do seu Espírito, passando de pessoa a pessoa ou de objecto a objecto430. Ongalo benzido, bem como oshakalwa e outros objectos domésticos recebem a multiforme graça de Cristo, conservando-a e distribuindo-a a todos quantos deles se aproximem e dela façam uso, de harmonia com a vontade divina. A bênção e a protecção dadas a ongalo podem ser transmitidas ou ser protectoras da criança que, por ocasião do seu nascimento, é deitada no referido objecto.

A graça presente em Ongalo e Oshakalwa tem uma origem confusa431. Há necessidade da bênção sobre eles para que a mesma graça flua do mistério pascal da

distinção essencial do cristão a respeito do que não o é, pois que o cristão, porque filho de Deus se torna também lugar de habitação da Santíssima Trindade que pela graça nele encontra a sua morada» J. J. F. FARIAS, Antropologia e graça, 128-129.

426 Cfr. CIC, 1667; SC 60. 427 Cfr. CIC, 1668.

428 De facto, «os fiéis leigos participam, por sua vez, no tríplice ministério - sacerdotal, profético e

real - de Jesus Cristo» Redemptoris Missio, 71; Christifideles laici, 14; cfr. CIC, 1669.

429 Cfr. LG 50.

430 Por exemplo, a água benta transmite a força de Deus, a protecção divina, a purificação à casa, a

objectos e até às pessoas que com ela forem aspergidas. É necessário compreendermos que a «bênção

significa que toda a realidade criada, que surge do nada, pela força criadora da Palavra e não, por conseguinte, por emanação como nos diversos sistemas panteístas do universo antigo, participa de uma bondade essencial que tem a ver com a sua origem no sumo bem que é Deus» J. J. F. FARIAS,

Antropologia e graça, 17.

431 Como proposta à Diocese de Ondjiva e à Arquidiocese de Windhoek, a bênção de Ongalo, de

Oshakalwa, das casas e de outros objectos de uso doméstico com significado e utilização relevantes, deveria ser feita por altura da inauguração da casa (enangeko), pelo catequista, na ausência do sacerdote,

paixão, da morte e da ressurreição de Jesus Cristo, de quem depende a eficácia não só de sacramentais, mas também dos próprios sacramentos432. Na verdade, estes objectos e outros de uso doméstico que receberem a bênção concorrerão melhor para a santificação do homem e para a glória e louvor a Deus433.

O Espírito Santo é dom, graça de Deus Filho dada ao mundo. Ele é a força do cristão. Esta força pode ser invocada e tornar-se presente em objectos, munindo-os da sua força e graça. Daí a necessidade de benzer Ongalo, Onu e Oshakalwa para que a graça compreendida estar presente neles por ovakwanyama seja realmente a graça de Cristo, do Espírito Santo e de Deus Pai434. Esta graça para ovakwanyama está sempre presente na vida, através de objectos tradicionais, e é implorada constantemente antes, durante e depois da realização de grandes eventos. Antes e durante, para pedir a protecção, a ajuda e lucidez da parte de Deus e depois, para agradecer a protecção obtida antes e durante a realização do evento.

Aponte-se, em abono da verdade, que, segundo a nossa perspectiva analítica, o sentido geral da graça na tradição de ovakwanyama vai de acordo ao Antigo Testamento, onde não encontramos termos equivalentes ao da graça, mas sim termos que nos preparam para a compreensão da graça, no contexto da aliança. Na verdade, neste «contexto é muito significativo que os termos que são traduzidos nos LXX por

graça ou equivalentes têm a ver com fidelidade, justiça e comportamento recto (hesed); com o favor que alguém encontra diante de alguém, o que vai no sentido de encontrar

seguindo uma fórmula e esquema criteriosamente seleccionados. Por exemplo: Saudação, leitura bíblica, pequena exortação e oração de bênção. No caso de Ongalo sugerimos que a bênção seja feita no princípio do ano, dia da Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus, como preparação da vivência do ano sob a graça de Deus, a qual acompanhará os viajantes que fizerem o uso de Ongalo, na hora da partida, e imploração da bênção divina sobre as mães, pedindo a fecundidade e o respeito e dignidade à vida. Porém, esta bênção, seja sobre que objecto for implorada, deve ser sempre entendida como louvor a Deus, Pai de bênçãos espirituais (Ef. 1, 3), e como imploração dos seus dons em Jesus Cristo, seu Filho, na unidade do Espírito Santo e não de outros antepassados da família. Cfr. CIC, 1671. Na verade, a graça presente no Ongalo, Oshakalwa, Onu ou outros objectos e realidades de uso quotidiano, não deve ser uma graça qualquer enquadrada no contexto de De Gratia, mas deve ser compreendida no contexto da antropologia sobrenatural. Aqui o homem é compreendido em Cristo, como Dom ou graça do Pai à humanidade. Cristo é graça incarnada e o Espírito Santo é dom que santifica, justifica e diviniza o homem, numa perspectiva de conformar o mesmo homem à imagem do Verbo Incarnado. Cfr. J. J. F. FARIAS, Antropologia e

graça, 10-15.

432 Para esta missão é indispensável a colaboração dos incansáveis e generosos catequistas que são

«aquele exército tão benemérito da obra das missões entre os pagãos ( ... ) que penetrados de espírito

apostólico, prestam com seus relevantes serviços um singular e indispensável auxílio à causa da dilatação da fé e da Igreja» Ad gentes, 17; Redemptoris Missio, 73.

433 Cfr. CIC, 1670.

graça (hen), segurança e confiança e, por conseguinte, estabilidade que daqui decorrem (emet); e, finalmente, compaixão, mesmo no sentido de uma agitação interior como reacção afectiva perante os outros, o que pode sugerir o sentido dinâmico do amor (rahamin)»435.

Estamos perante a concepção do povo segundo a qual determinados objectos, por natureza, contém a graça que representa a presença de Deus, que, por iniciativa própria, veio ao encontro do seu povo, através de objectos e de antepassados, e mesmo povo é chamado a corresponder à iniciativa divina. Daí a necessidade de dar um salto qualitativo para o Novo Testamento e compreender que «a graça como tal indica a

novidade da economia salvífica que o mistério da Incarnação trouxe e por isso a graça é um termo e uma realidade que se revela plenamente somente no Novo Testamento, e, até, como maior insistência em S. Paulo»436.