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O significado e dimensão religiosa de oshipe

RITOS DE INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA ENTRE OVAKWANYAMA

2.5. Ritos complementares de louvor e acção de graças

2.5.1.2. O significado e dimensão religiosa de oshipe

Oshipe é festa das primícias. É a família que manifesta a sua alegria pelas colheitas, pelos frutos, pelos mantimentos. Para a compreensão desta festa, convém sublinharmos que oshipe «é uma festa de estação em que as pessoas se alegram pelas

novas colheitas. É, também, um momento em que se permite o consumo das novas colheitas e uma oportunidade de agradecimento a quem lhas concedeu. Este tipo de cerimónia tinha início na «Ombala» do rei. Importa recordar que antes da cerimónia de «Oshipe» nenhum membro da comunidade era autorizado a consumir os novos produtos da terra»226.

Trata-se de uma festa que visa agradecer os mantimentos recebidos, ter-se escapado de várias pestes, a fecundidade e protecção dadas aos animais. Na verdade,

ovakwanyama têm a crença de que as novas colheitas são dádiva de Kalunga; eles têm a consciência de que estas colheitas não dependeram apenas das pessoas que trabalharam, mas houve a mão bondosa de Kalunga e a fervorosa intercessão de ovakwamungu. Eis a razão pela qual oferecem, em gratidão, esta festa.

Por outro lado, trata-se de festa de comunhão dos homens entre si e destes com a esfera sagrada. Antes da tomada desta refeição de louvor e gratidão, oferecem-se duas colheradas de oifima (eenghako mbali doifima) aos antepassados (ovakwamungu), como se explica na descrição de oshipe.

No primeiro caso, o pai da família, em nome de todos os membros da família, oferece aos antepassados, e, cuspindo, diz: ‘Pthu, vakwamungu vaushilo tambuleni! Fye

ohatuli oilya yetu ipe’ (Pthu, espíritos benéficos do Nascente, recebei! Nós estamos a comer os nossos novos cereais).

No segundo caso, o mesmo pai de família, de igual modo, lança ao Poente, dizendo: ‘Pthu, eemwengu dautokelo, fye ohatuli oilya yetu ipe! Indeni netango!’ (Pthu, espíritos maléficos do Poente, nós estamos a comer os nossos novos cereais! Ide com o pôr-do-sol)227.

226E. B. VALIPO; P. TONGENI, «As cerimónias de propiciação entre Ovakwanyama» 78. 227 Para a realização deste ritual, encontramos muitas fórmulas, consoante a região e dependendo

do autor. Informamos que a versão que apresentamos é a mais abrangente. Para outras fórmulas, ver: E. B. VALIPO; P. TONGENI, «As cerimónias de propiciação entre Ovakwanyama» 78-79; J. NGHISHIILENHAPO, Oshitunda Nonghedi, 120-121; M. H. F. LIMA, Nação Ovambo, 160.

Sublinhamos que, no primeiro caso, encontramos o pai de família que, em nome de todos, oferece a colherada aos antepassados, como sinal de os fazer participar do fruto da sua intercessão e do trabalho dos vivos. Isto é, tal como pelo trabalho se uniram para labutar na lavra, cultivando e defendendo os mantimentos, uns directamente e outros indirectamente, eis que chegou o momento de manifestarem a comunhão e a unidade entre eles (vivos e antepassados). Neste primeiro caso, estamos perante o pronunciamento de bênção.

Chama a atenção o facto de se utilizar o termo ovakwamungu e não mortos. Esta expressão deixa transparecer a perpetuidade vital do homem entre ovakwanyama. É verdade que os antepassados faleceram, mas continuam vivos, a participar, de modo diferente e a partir da esfera elevada, em todas as actividades em que os vivos se encontram engajados.

O facto de os antepassados tomarem parte da refeição é sinal de segurança e de protecção. Significa que a festa de oshipe vai correr da melhor maneira, pois nenhum

omukwamungu vai vingar-se contra os comensais. Esta protecção só pode vir do Nascente, donde nasce o sol, trazendo a bênção para todos.

O segundo caso, parece-nos ser uma tentativa de aplacar a possível ira dos espíritos maléficos. Tem um carácter suplicante para que esses espíritos desapareçam com o pôr-do-sol, a fim de que não possam intervir, com a sua maldade, na festa de

oshipe.

Esta festa reveste-se também de outros significados, muito importantes por sublinhar. Falamos da unidade entre os homens e da vivência da solidariedade entre os mesmos. Estamos a dizer que esta festa evoca a unidade entre os homens, na medida em que reúne as pessoas de todo o tipo, amigos, inimigos, vizinhos, convidados, dignos e indignos, inclusive aqueles que se auto-convidam e os que, por coincidência e eventualmente, venham a passar, no dia dessa festa.

Para além da unidade entre os homens, esta festa evoca também a comunhão com

ovakwamungu. É por isso que os antepassados têm muita força para a vida de

ovakwanyama. Eis a razão pela qual, por ocasião da festa de oshipe, se despeja uma caneca grande cheia de oshikhupaela no túmulo de um antepassado mais velho. Tem-se a crença de que este antepassado, estando na esfera sagrada, vai garantir a tranquilidade durante a festa.

Por outro lado, podemos dizer que oshipe é evocação da imensa alegria para a vida dos que nele participam. Encontramos esta perspectiva no líquido do odre

Nandenguwa que, normalmente, não se esgota. O consumo do líquido deste odre é feito no meio de um contar e recontar de histórias e aspectos que mais marcaram oshipe, num ambiente de explosiva alegria. É com essa alegria que termina esta festa, com o desejo de tê-la no seu dia a dia, até à próxima festa de oshipe. Portanto, o fundamental nesta festa é o desejar a alegria a todos quantos participam nela, a harmonia e entendimento entre si, seja com os que se encontram na esfera sagrada (antepassados), seja entre os que estão na esfera histórica (os vivos).

Em função deste grande objectivo, o alcançar a harmonia e alegria entre todos os seres, o pai da família, durante a preparação desta festa, tem um regime especial e mais rigoroso, como já anteriormente explicamos no ponto da matéria cultual deste rito. Trata-se de um rigor exigente, não só em função da preparação da festa em si, mas, sobretudo, da recepção ou obtenção da alegria, como graça, que vai alimentando e sustentando a vida ao longo de todo o ano.