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Saída do quarto principal (Epitilo lopondye)

RITOS DE INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA ENTRE OVAKWANYAMA

2.1.4. Saída do quarto principal (Epitilo lopondye)

Epitilo lopondye é uma festa de acção de graças e, ao mesmo tempo, para revelar e manifestar a identidade da criança. A acção de graças justifica-se pelo facto do cordão umbilical ter caído, ele que é chamado também de omulodi (o feiticeiro), aquele que mata. É assim que, quando cai, a família fica alegre e agradece pelo facto do feiticeiro ter caído, sem matar o filho. Diz-se num tom de alegria e de louvor: ‘omulodi

okwadyapo, mona wa’ (o feiticeiro sai, meu filho).

Depois das formalidades exigidas no centro de maternidade (oshakalwa), a criança, nas mãos da parteira, e a mãe são transladadas para o quarto principal (ondyuwo

yalombe), onde primeiro se faz a imposição do nome e depois permanecem por quatro ou seis dias, à espera da caída do cordão umbilical. Quanto aos dias, é rigoroso que sejam pares e nunca impares134.

Durante o período de permanência neste quarto, a senhora obedece também a algumas orientações.

Ela não deve tomar a refeição por sua livre iniciativa, mas alguém tem de lha oferecer, isto para que o filho não seja ladrão (ombudi) de toda a tamanha. Pode acontecer que em casa não esteja ninguém para preparar as refeições. Nesse caso, a parturiente sai do quarto, cozinha e traz a comida ao quarto. Entretanto, antes de comer, deve fazer o seguinte: pegar na criança e convidá-la: ‘vamos comer, trouxeram-nos a

comida’. É como se alguém tivesse trazido a refeição para eles, mas foi ela própria que a preparou e trouxe135.

134 Cfr. E1, E2, E3, E4, E5, E6. 135 Cfr. E1, E8, E9.

Por outro lado, por mais que a parturiente tenha muita fome, não deve comer nem tomar oshikundu136 fora do quarto. Entretanto, cada vez que a parturiente come ou bebe

oshikundu, deve dizer à criança: vamos comer K ou vamos beber Y.

A outra orientação muito importante a notar é que durante a permanência no quarto principal, a criança não deve usar nenhum tipo de vestuário e só passa a vestir-se a partir da cerimónia de epitilo lopondye. É por esta razão e pelos objectos usados nesta cerimónia que podemos afirmar que epitilo lopondye é, afirma, confirma e manifesta, no superlativo absoluto, a identidade ontológico-existencial da criança137.

Epitilo lopondye realiza-se do seguinte modo: De manhã cedo, o cerimoniário ou cerimoniária pega na criança e, com ela, a sua mãe vão à lavra.

Se for rapariga, leva-se uma enxada e um cesto contendo sementes. Chegados à lavra, a cerimoniária faz a criança tocar na enxada, cultiva um pouco e diz: ‘okakadona

okapitamo okeya okulima’ (a rapariga saiu do quarto, veio cultivar). Em seguida, faz a criança tocar a semente e ela, como cerimoniária e em nome da criança, semeia. Depois passa-se por oshini138 (moagem): faz-se a criança tocar no pilão e, em seguida, a cerimoniária pisa, dizendo: ‘nokutwa, okwatwa nokuli’ (até pisou, preparou a farinha)139.

No caso do rapaz, leva-se o machado e eholo140. Sai-se de casa para a lavra e finge-se estar a cortar um arbusto e diz-se: ‘nde omumati ohalongo, noshikhwa

okweshikapo nokuli’ (o rapaz é trabalhador, inclusive já derrubou o arbusto). Depois passa-se pelo curral com eholo e diz-se: ‘omumati okweya okukanda, okwamana nokuli’ (o rapaz veio ordenhar, já concluiu)141.

Depois destas particularidades distintivas entre rapariga e rapaz, em ambos os casos se passa de quarto a quarto, a apresentar a criança aos membros da família: ‘okakadona okapitamo’ (a rapariga já saiu do quarto) ou ‘omumati okwapitamo’ (o

136 Oshikundu é uma bebida, não alcoólica, que dá força pelas propriedades alimentares que tem. 137 Cfr. E1, E8.

138 Oshini é um recipiente de madeira onde se põe o cereal para ser pisado com o pilão. 139 Cfr. E1, E3, E4, E7, E8.

140 Eholo é espécie de caneca grande, feita de madeira, serve de recipiente de ordenhar. Eholo

olahada omashini: eholo encheu de leite.

rapaz já saiu do quarto). Quem tiver alguma prenda para dar pode fazê-lo neste momento. Passa-se pela cozinha (epata) e regressa-se ao quarto142.

Então as pessoas levantam-se, saem dos quartos e cozinham. Fazem oifima, para se comer os chamados omanghako (pedaços grandes de oifima). Uma pessoa pega em

omanghako, molha-os em evanda e oferece-os à parturiente, com o sentido de transmitir as forças e energias despendidas durante o parto e fazer profecias e votos de mais filhos, podendo estes serem gémeos ou até trigémeos143.

Importa referir que Onghowa (cordão umbilical) é algo muitíssimo especial e importante. Depois de ter caído, tem de ser guardado no eyayi144. Mete-se no omukhwu (singular de oikhwu), colocado num cesto pequeno (okambale).

Oikhwu são coisas, espécie de líquenes, que surgem da árvore (haitutuma momuti

iyayiima yaendyelela), ficam agarradas ao caule da planta, que pode ser omunghama ou

omufyaati145. São esses líquenes (oikhwu) que são tirados, mas apenas os que estão ao nível do umbigo (shili pombada tashilovelelwa). Onghowa é misturado com omukhwu, pisando-os, o que dá origem a um produto que se põe no eyayi (pasta própria de uma mãe) e que toma o nome de onghata. Por isso, diz-se que uma mãe (omudalakadi) não pode ficar sem eyayi, onde fica onghata. Eyayi passa a ser assim um relicário de cordões umbilicais da família. Por isso, onde estiver uma mãe com o seu eyayi, aí estarão todos os seus filhos. Nesse caso, eyayi passa à categoria do sagrado, de algo respeitável e intocável por mãos estranhas. Os ladrões, ou seja, ovakwanyama gatunos, podem roubar tudo, inclusive podem arriscar apropriar-se indevidamente de um cabrito ou galinha, que, por tradição, não devem ser roubados, mas raramente se apropriam ilícita e conscientemente de um eyayi146.

142 Cfr. E1, E4, E5. 143 Cfr. E1, E4, E6, E8.

144 Eyayi é uma pasta própria para levar a roupa da criança. É uma pasta sagrada, pelas

características e sensibilidade das coisas nela transportadas.

145 Omufyaati é uma árvore abundante, resistente, de boa lenha e tem significado singular a partir

da compreensão do próprio nome: Omufyaati, isto é, omufi ati, quer dizer ‘o morto disse’. Existe um mito na simbologia da nomenclatura das diversas árvores e arbustos existentes na região, nomeadamente na Província do Kunene. Segundo este mito, um antepassado estava a dar nomes às árvores. Dizia ele: omuti ou omwandi, omuti ou omutaku (esta árvore é omwandi, esta árvore é omutaku). Entretanto, na altura que a mesma pessoa ia dar o nome a esta árvore, ela expirou, morreu e assim a árvore ficou sem nome. E por isso ficou com o nome de omufyaati, isto é, ‘o morto disse’. Sublinhar que quando se leva a flor para a camba tem sido desta árvore e faz-se em referência não só ao morto dessa camba, mas também em lembrança de todos os mortos.

De notar que não se tira omukhwu que está acima da direcção do umbigo, porque se pretende desejar a estabilidade ao filho (omutumba twahalela okaana), para que não venha a ser ladrão147.

Quando a criança sai do quarto tem de ser vestida com cordas feitas de

omunghama donde se tira epumba de omukhwu. As cordas da árvore de omunghama (omifuwa domunghama dahodilwa eengodi), que se põe ao pescoço, à cintura e nos pulsos, são o primeiro vestuário da criança. Durante os dias que está no quarto principal, a criança não usa roupa, apenas no dia de sair, é que começa a usá-la148.

Para além da roupa, omifuwa domunghama, no caso do rapaz acrescentam-lhe

odibo e outa, com os respectivos oikuti (purrinho, zagaia e flechas). A rapariga não recebe praticamente nada, à excepção de ongalo.