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3 A FORMAÇÃO DOCENTE EM QUESTÃO

3.2 De que saberes necessita o professor para a realização de suas práticas

3.2.1 A formação do professor de Matemática e os saberes necessários à atuação

A formação do professor, independentemente da sua área de atuação, configura-se como eixo central e norteador das suas práticas pedagógicas, considerando-se o fato de elas serem alicerçadas nas formas de pensar, isto é, nas concepções que cada professor tem sobre o nível de abrangência de sua ação docente, dos elementos norteadores de tais práticas e principalmente dos inúmeros fatores que permeiam a sua ação pedagógica.

Conforme já exposto anteriormente, reconhecer que o fazer docente é constituído por um misto de fatores que vão desde as oportunidades de formação às quais o professor teve/tem acesso até as articulações que se estabelecem no cotidiano de suas práticas requer um olhar diferenciado sobre a importância e abrangência da formação docente. Essa preocupação se dá especialmente pela necessidade de se estabelecer ligações entre as abordagens teóricas, viabilizadas na licenciatura, e as práticas futuras, em que os saberes construídos serão postos em prática e sobretudo serão refletidos nas ações pedagógicas realizadas nas diversas situações do cotidiano, a despeito da área de atuação do professor.

Com a Matemática não é diferente! É preciso articular uma variedade de saberes que vão do saber específico da Matemática, dos conteúdos matemáticos, às formas de abordagem de cada conteúdo no espaço de sala de aula. Nesse contexto, entram em cena muitos outros conceitos que extrapolam o saber específico da área de conhecimento. Nessa direção, convém destacar o fato de que as práticas docentes vão se constituindo desde as situações vivenciadas como alunos (seja na educação básica ou na formação inicial – licenciatura) e seguem nesse processo contínuo de construção durante o exercício da docência. Pesquisas como a de Fiorentini, Nacarato e Pinto (1999) refletem sobre as formas como os saberes dos professores são constituídos, os quais estão interligados de formas distintas, formando um saber plural, articulado à ação pedagógica como um todo. Dentre eles, destacam-se os saberes:

– Das ciências da educação (saberes que resultam de pesquisas). – Das disciplinas (as matérias escolares e acadêmicas).

– Do currículo (dos programas propostos e realizados).

– Da experiência (saberes adquiridos e produzidos na ação docente).

– Da tradição pedagógica (saberes transmitidos de uma geração para a outra e adquiridos implicitamente na própria atividade profissional e internalizados pelas práticas discursivas, as quais expressam um modo de conceber e realizar o trabalho docente).

A articulação desses saberes exige uma postura de compartilhamento entre os pares, ou seja, ao compartilhar uma experiência vivenciada em sala de aula com outros professores, esta poderá ganhar novos sentidos na interação e na interlocução com outras práticas, oportunidades de ressignificação da ação docente e excelente estratégia de formação contínua.

Num estudo realizado sobre as questões curriculares do Programa de Mestrado Profissional em Matemática em Rede Nacional (Profmat), Caldatto, Pavanello e Fiorentini (2016), ao abordarem o conhecimento matemático do professor de Matemática, destacam a importância da teorização proposta por Shulman (1986) com relação à formação de professores. O referido autor apresenta uma categorização dos conhecimentos essenciais para o exercício da atividade docente, a saber: a) subject matter content knowledge; b) curricular knowledge; e c) pedagogical content knowledge.

O subject matter content knowledge pode ser entendido como o conhecimento da matéria que o professor ministra. No caso da formação de professores de Matemática, essa categoria pode ser interpretada como o conhecimento da Matemática, particularmente como o conhecimento dos conteúdos da Matemática a serem ensinados, que desdobra-se [sic] em conhecimento conceitual e procedimental da Matemática, em conhecimentos filosófico, epistemológico e histórico da Matemática. Já o curricular knowledge está relacionado ao conhecimento apresentado nos programas de ensino (organização e divisão do conteúdo de ensino) e abarca também o conhecimento das ferramentas disseminadoras das propostas dos programas de ensino (currículos, livros didáticos, etc.). O pedagogical content knowledge, por sua vez, consiste nas diferentes maneiras para se formular e apresentar os tópicos de uma área de modo a torná-los mais compreensíveis para os alunos. Ele abarca a compreensão do que facilita ou dificulta a aprendizagem de um tópico, bem como a de que alunos de diferentes faixas etárias e/ou com diferentes experiências de vida trazem conceitos que podem interferir na aprendizagem desse tópico. Abarca também as relações que podem ser estabelecidas entre a Matemática e os outros conhecimentos. (CALDATTO; PAVANELLO; FIORENTINI, 2016, p. 909).

Entende-se que os conhecimentos pedagógicos são aqueles que vão suscitar uma relação mais dialógica com cada tipo de conteúdo, a ponto de identificar a abordagem necessária para a devida assimilação destes por parte dos alunos, bem como a identificação da melhor forma de acompanhamento desse processo, a avaliação da aprendizagem. E essa não é uma tarefa simples, máxime quando os saberes pedagógicos não são bem articulados na matriz curricular da formação inicial nas licenciaturas.

Reconhecendo essa complexidade, Gatti e Nunes (2009) realizaram um importante estudo, que tinha como objetivo analisar as formas como as disciplinas e os conteúdos são propostos nos cursos de licenciatura em Pedagogia, Língua Portuguesa, Matemática e Ciências Biológicas. O referido estudo foi motivado principalmente pelos

resultados dos desempenhos obtidos pelos estudantes dos ensinos fundamental e médio nas avaliações nacionais e internacionais sobre a qualidade do ensino básico no Brasil e a forma como são atribuídos tais resultados ao processo de formação dos professores. Como subsídio/ contribuição a esta pesquisa, serão considerados os fatores relacionados aos cursos de licenciatura em Matemática e as respectivas ponderações feitas pelas autoras.

De início, é traçado um panorama dos cursos de formação de professores na área de Matemática no Brasil em paralelo com a situação em números desses cursos, tendo como referência o ano de 2006. Dessa maneira, convém destacar as seguintes constatações:

Um total de 631 cursos que formavam licenciados em Matemática envolviam cerca de 73,5 mil estudantes matriculados; - As instituições públicas eram responsáveis por 53,4% dos cursos oferecidos e as privadas 46,6%; - Dentre as instituições públicas, verificou-se que as instituições estaduais oferecem nesta área mais cursos (27,1%) do que as instituições federais (22,7%); - No setor privado, observou-se praticamente o mesmo percentual de cursos oferecidos pelas instituições particulares e pelas comunitárias/confessionais/filantrópicas: 23,5% e 23,1%, respectivamente. (GATTI; NUNES, 2009, p. 93).

Se comparados esses dados aos números relativos à formação de professores de Matemática no ano de 2016, percebe-se que as instituições públicas continuam liderando esse ranking em quantitativo de cursos e, por conseguinte, número de matrículas. De acordo com os dados do Inep (2017), dos 617 cursos de formação de professores de Matemática, 414 são de instituições públicas, o que corresponde a aproximadamente 67% dos cursos. Entretanto, mesmo tendo ocorrido um aumento no quantitativo de ofertas de cursos e de matrículas nas instituições públicas como política de governo na última década, ainda é extremamente pequena a proporção de concluintes, tendo em vista que, consoante a sinopse estatística da educação superior, no ano de 2016 foram registradas 85.402 matrículas, das quais o número de concluintes não chega a 11.000 alunos.

Ainda com relação ao estudo de Gatti e Nunes (2009), vale ressaltar que foram contempladas também as análises dos aspectos concernentes à composição das matrizes curriculares de alguns cursos de Matemática num conjunto de 31 cursos. Dessa análise, resulta que:

[...] a maioria das disciplinas obrigatórias oferecidas pelas IES concentra-se em duas categorias: ‘Conhecimentos específicos da área’ e ‘Conhecimentos específicos para a docência’, 32,1% e 30%, respectivamente. Das demais categorias de análise propostas, 14,7% dizem respeito a: ‘Outros saberes’ – [...] (9,2%), ‘Fundamentos teóricos’ (13,3%), subdividido em ‘Sistemas educacionais’ (3,6%), ‘Pesquisa e TCC’ (4,6%) e ‘Atividades complementares’ (5,1%). [...] Observa-se também que apenas 0,7% das disciplinas nesta licenciatura são destinados às ‘Modalidades e nível de ensino específicos’. (GATTI; NUNES, 2009, p. 98-99).

Um fato curioso em destaque na análise das autoras está diretamente relacionado com a avaliação educacional como componente do currículo dos cursos de formação de professores analisados. Apesar de a avaliação educacional, de modo especial a avaliação externa, exercer forte pressão sobre o corpo docente, direcionando ou influenciando as práticas cotidianas, assim como a definição do currículo, esta não tem lugar garantido nas matrizes curriculares dos cursos de licenciatura.

No caso da avaliação educacional, por exemplo, que é problema enfrentado no dia a dia das escolas e que é um tema discutido pelos resultados das avaliações externas relativas a essa disciplina (SAEB, SARESP, ENEM, PISA) e aos baixos índices apresentados nessas avaliações, ela não consta nas matrizes curriculares dos cursos de licenciatura em Matemática. Avaliar alunos não é questão trivial para educadores. Exige formação e discussão. Porém, os licenciandos em Matemática não recebem esta formação, pelo que se constatou neste estudo. (GATTI; NUNES, 2009, p. 101). Nos contextos analisados, os cursos de licenciatura em Matemática não ofereciam uma preparação específica voltada para as práticas da avaliação, nem para as avaliações em larga escala nem para as realizadas nas práticas cotidianas da sala de aula – a avaliação da aprendizagem. Os conhecimentos abordados numa relação direta com a avaliação são direcionados através das disciplinas relativas aos métodos de ensino, não estando, na maioria das vezes, descritas de forma explícita nas matrizes curriculares das licenciaturas. Lamentavelmente essa realidade não se modificou muito em relação aos dias atuais.

É evidente, na visão das autoras mencionadas, que os cursos de licenciatura analisados estão formando profissionais com perfis diferentes e que infelizmente, em algumas situações, a formação matemática mais aprofundada não oferece os subsídios necessários para as diversas situações de sala de aula. Além disso, a formação pedagógica se dá de modo desarticulado e desconexo da formação específica. Poucos cursos oferecem experiências mais contextualizadas e significativas para a construção de uma identidade e prática docentes conscientes, seguras e atentas às reais necessidades que se configuram nos espaços escolares.

Diante desses olhares distantes e desconexos da formação pedagógica, outro fator que se observa com muita frequência é que muitos dos estudantes que ingressam no universo da formação de professores ou migram para outros cursos, outras áreas, ou simplesmente desistem do curso, deixando uma lacuna na demanda de professores com a devida formação para atuar nas áreas específicas, especialmente na área de Matemática. E essa não é uma realidade específica somente de um estado ou região, é muito mais abrangente, conforme já foi constatado em pesquisas que tinham como objeto de estudo a evasão nos cursos de

licenciatura, especificamente os de Matemática (RAFAEL et al., 2015; SALES JUNIOR et al., 2016; SANTANA, 2016).

A situação descrita traz consigo o grande desafio que, em sua essência, é direcionado ao professor, tendo este como principal agente de transformação dessa realidade. Nesse sentido, estabelece-se a grande questão: quais os caminhos a serem percorridos pela formação de professores de Matemática que sejam capazes de dar conta das diversas demandas postas pelo sistema educacional como um todo?

As Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Matemática (BRASIL, 2002) destacam que a formação dos professores licenciados em Matemática deverá contemplar um conjunto de competências e habilidades necessárias ao exercício da profissão. Essas, por sua vez, são descritas considerando que o professor, ao final do seu processo de formação, deverá ser capaz de:

a) elaborar propostas de ensino-aprendizagem de Matemática para a educação básica; b) analisar, selecionar e produzir materiais didáticos; c) analisar criticamente propostas curriculares de Matemática para a educação básica; d) desenvolver estratégias de ensino que favoreçam a criatividade, a autonomia e a flexibilidade do pensamento matemático dos educandos, buscando trabalhar com mais ênfase nos conceitos do que nas técnicas, fórmulas e algoritmos; e) perceber a prática docente de Matemática como um processo dinâmico, carregado de incertezas e conflitos, um espaço de criação e reflexão, onde novos conhecimentos são gerados e modificados continuamente; f) contribuir para a realização de projetos coletivos dentro da escola básica. (BRASIL, 2002).

Percebe-se, através das competências e habilidades propostas no documento em questão, que a formação deverá contemplar fatores mais complexos que vão muito além do saber específico da área da Matemática. Ela abrange – ou pelo menos direciona – uma formação voltada para as competências didáticas e pedagógicas. São consideradas também as habilidades que envolvem a formação contínua assentada nos contextos diversos nos quais o professor de Matemática poderá estar inserido.

A formação inicial do professor de Matemática deverá ainda contemplar os primeiros contatos com as realidades nas quais realizará suas práticas futuras, ou seja, no espaço escolar. Essa aproximação se dá mediante os estágios supervisionados, essenciais no processo de formação docente. Por intermédio dessas práticas, os futuros docentes têm a possibilidade de desenvolver:

– Uma sequência de ações em que o aprendiz vai se tornando responsável por tarefas em ordem crescente de complexidade, tomando ciência dos processos formadores.

Apesar de considerada a complexidade que envolve as práticas docentes, em nenhuma hipótese é dado nenhum direcionamento voltado para as práticas da avaliação da aprendizagem, deixando lacunas no que se refere a esse aspecto da ação didática e pedagógica. Ainda na seara da reflexão sobre a prática docente e sua relação com a formação inicial do professor de Matemática, Ortigão (2017) afirma ter havido, nas últimas décadas, grandes avanços pertinentes às teorias do currículo e da aprendizagem. Todavia, ressalta a importância de se repensar e implementar práticas de avaliação da aprendizagem em Matemática, de modo que estas possam “[...] abranger processos complexos de pensamento, contribuir para motivar os estudantes a resolverem problemas, valorizar os processos de comunicação para que eles explicitem os procedimentos usados” (ORTIGÃO, 2017, p. 76).

Nessa direção, Fiorentini (2008) enfatiza a importância de os estágios priorizarem e desenvolverem de forma sistemática as práticas de mediação da reflexão e da investigação sobre a prática. Esses aspectos contribuem para o desenvolvimento profissional dos futuros professores, visto que instigam uma postura questionadora, problematizadora e investigativa, tendo a prática como objeto de estudo. Assim, para garantir que os futuros professores estejam de fato preparados para as exigências da prática docente:

[...] é preciso que adquiram uma formação que lhes proporcione uma sólida base teórico-científica relativa ao seu campo de atuação e que a mesma [sic] seja desenvolvida apoiada na reflexão e na investigação sobre a prática. Isso requer tempo relativamente longo de estudo e desenvolvimento de uma prática de socialização profissional e iniciação à docência acompanhada de muita reflexão e investigação, tendo orientação ou supervisão de formadores-pesquisadores qualificados. (FIORENTINI, 2008, p. 49).

O referido autor, ao mencionar suas pesquisas realizadas anteriormente sobre o assunto, destaca o fato de tais práticas sinalizarem um grande descompasso nos cursos de formação de professores nos aspectos ligados à teoria e à prática, entre os conhecimentos específicos e os de base pedagógica, entre a formação e a realidade escolar, bem como a falta de formação teórico-prática dos professores formadores, dentre outros empecilhos para uma prática docente contextualizada e atenta às demandas relativas à aprendizagem.

Ante o exposto, faz-se mister conhecer, de forma mais aprofundada, qual o espaço ocupado pela avaliação da aprendizagem no contexto da licenciatura em Matemática. Essa abordagem será feita mais adiante, quando, a partir da análise dos documentos de base legal dos cursos pesquisados, esses dados serão relatados em paralelo às falas coletadas no campo empírico de investigação nos cursos de licenciatura em Matemática dos Institutos Federais da Paraíba e do Ceará.

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