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A fotorreportagem e o humor na revista O Cruzeiro

PARTE I: PERCURSOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

CAPÍTULO 2 – GÊNERO MIDIÁTICO

2.2 A fotorreportagem e o humor na revista O Cruzeiro

A partir de 1928, a revista O Cruzeiro, uma das responsáveis por implantar a mentalidade do fotojornalismo que privilegia a fotografia, e a constuir o imaginário

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Observamos que, embora polêmico, o conceito foi assim mencionado pelo autor e não nos cabe aqui tal discussão.

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Cunhado pelo fotógrafo Henri Cartier-Bresson, em seu livro homônimo, de 1952. Muitos fotógrafos estudaram e ampliaram o conceito de momento decisivo. Martins (2019), por exemplo, define-o como a construção, a espera esteticamente elaborada, portanto, o contrário do acaso do flagrante. Entendemos como a soma da concentração, técnica e intuição. O instantâneo no momento certo.

visual brasileiro.

A publicação construiu formatos inovadores em termos de jornalismo visual: a narrativa era conduzida pelas fotos e o texto – basicamente legendas – tinha importância secundária. Nesses casos, o texto servia de complemento às fotos e não o contrário (BUITONI, 2011, p. 51).

Aberta a novos tipos de leitura, diversificando a forma e o conteúdo da imprensa diária e semanal, a revista O Cruzeiro inaugura modos de divulgação e relação com leitores e publicidade. A profusão de cores, a abrangência na distribuição, correspondentes em Lisboa, Paris, Roma, Madrid, Londres, Berlim e Nova York, o tom nacionalista, as seções especiais para o público feminino, as estratégias para conquista e fidelização de leitores fazem da revista ilustrada a grande revista nacional, meses após o seu lançamento. Desde o seu início, todos os artigos, reportagens, crônicas e seções variadas são acompanhadas por fotografias e, em meados da década de 30, as edições trazem páginas gráficas inteiramente ocupadas por fotografias. Na década de 40, lança o que viria a ser sua marca registrada: o novo estilo de reportagem, a grande reportagem de caráter investigativo, a reportagem fotográfica (BARBOSA, 2002).

Pródiga em imagens, a revista abarcou com naturalidade as propostas do fotojornalismo, as quais podiam ser sintetizadas, primeiro, por um outro tipo de relacionamento entre texto e imagem e, segundo, pelo fato de que ambos, repórter e fotógrafo100 passariam a atuar em regime de coautoria, igualando-se na profissão de repórter, apesar de empregarem linguagens distintas. No bojo dessas mudanças, a fotografia adquiriu novo estatuto, assumindo, a mesma importância e autoridade do texto (GAVA, 2006, p. 43).

O destaque das fotos nas fotorreportagens é valorizado pela qualidade dos profissionais contratados pela revista.

Flávio Damm, Badaró Braga, Ed Keffel, Edgard Medina, Eugênio Silva, Henri Ballot, Indalécio Wanderley, Jean Manzon, José Medeiros, Luciano Carneiro, Luiz Carlos Barreto, Marcel Gautherot, Pierre Verger e outros formavam o maior e melhor time de fotógrafos de imprensa a serviço de um único veículo de comunicação no Brasil durante os anos de 1940 e 1950 (BONI, 2015, p. 87).

Justamente pelo modelo de fotojornalismo e pelas constantes inovações

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Em 1943, a revista contava com dois fotógrafos. Em 1952, havia 20 profissionais no departamento fotográfico (COSTA, 1992 apud GAVA, 2006).

visuais, a revista O Cruzeiro entra na década de 50 reafirmando seu posto de um dos veículos de comunicação mais importantes da época. Junto às fotorreportagens da edição, a revista apresenta seções fixas dedicadas à literatura, aos acontecimentos da semana e ao humor que, de forma regular, faz-se presente com até sete itens num mesmo número da revista. Desenhistas - como Millôr Fernandes (Pif-Paf), Péricles Maranhão (o Amigo da Onça), Alceu Penna (As Garotas), Carlos Estêvão, Borjalo, Appe e Ziraldo (Fotofofocas) - formam o quadro de profissionais responsáveis pela criação de charges, cartuns, caricaturas de costumes e seções de sucesso. Entre 1945 e 1963101, o jornalista e ilustrador Millôr Fernandes cria, com o pseudônimo de Emmanuel Vão Gôgo, a seção Pif-Paf (FIG. 17): ilustrações, fábulas, notas, aforismos, piadas, citações, etc. que, em 1964, torna-se uma revista independente.

FIGURA 17 - Pif-paf, 17/10/1959

Fonte: https://oglobo.globo.com/cultura/as-charges-de-millor-fernandes-4434298

Durante 19 anos, o jornalista João Condé coordena a coluna Arquivos Implacáveis (FIG. 18), ligada à literatura. Em uma página, a coluna abriga seções, tais como Flash (biografias divertidas de escritores) e Confissões (declarações de escritores sobre o processo de escrita de determinado livro). Rachel de Queiróz também escreve crônicas e comentários para uma coluna literária na revista O Cruzeiro, intitulada Última página.

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FIGURA 18 – Arquivos implacáveis

Fonte: http://www.levyleiloeiro.com.br/peca.asp?ID=413948

A seção O amigo da onça (FIG. 19), com piadas sarcásticas e politicamente incorretas é, dentre as seções de humor, o grande sucesso da revista O Cruzeiro. “Inspirado nos cartoons Enemies of Man da revista americana Esquire e El enemigo del Hombre, da revista argentina Patoruzú” o cartunista Péricles de Andrade Maranhão cria o personagem “o Amigo da Onça que aparece em diversas ocasiões desmascarando seus interlocutores ou colocando-os nas mais embaraçosas situações” (O AMIGO DA ONÇA, 2019, n.p.). A seção se mantém de 1942 a 1963.

FIGURA 19 - O amigo da onça, 29/09/1959

Inspiradas nas Gibson Girls, do jornal estadunidense The Saturday Evening Post, as Garotas (FIG. 20), desenhadas por Alceu Penna, eram as pinups102 da revista O Cruzeiro. Para Campos (2016, p. 304), “a ilustração consiste na imagem de uma mulher jovem, fresca, simpática e sedutora. Era uma beleza quase simples, popular e universal”. As bonecas que, por 26 anos, traziam um humor fresco e um apelo sexual inocente, representam cenas cotidianas de jovens mulheres de classe média e alta na cidade do Rio de Janeiro.

FIGURA 20 - As garotas do Alceu

Fonte: http://www.nasentrelinhas.com.br/noticias/costurando-ideias/307/as-garotas-do-alceu-ilustram- a-moda-nacional/

O trabalho do ilustrador - e também figurinista - Alceu Penna é reconhecido por profissionais da moda e colegas. “(...) estou seguro de que, nem um nem outro, conseguiu com seu desenho agir sobre o modo de ser do brasileiro, determinar maneiras de comportamento, de sentir, de escolher, de vestir” (PINTO, 1983)103

. As garotas do Alceu ditavam a moda.

Do ponto de vista fotográfico, a revista O Cruzeiro se aproveita “do aspecto lúdico e até cômico proporcionado por certos efeitos fotográficos especiais (distorções, ilusões de ótica, montagens, tomadas sequenciais, micro e macro foto, etc.)” (GAVA, 2006, p. 40), explorando-os em matérias e se mantendo fiel ao ecletismo e à variedade. Desse modo, utiliza-se de formas de apresentação visual que implicam em rupturas ou inovações. Os jornalistas da revista, com liberdade para propor pautas e conduzir reportagens, ajudam a elevar a revista ao papel de

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As bonecas, ora ilustradas, ora fotografadas, mostraram-se onipresentes na imprensa do século XX. Sobretudo, durante a Segunda Guerra, a produção de imagens de pin-ups se transformou em uma indústria crescente e consolidada (CAMPOS, 2016, p. 304).

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articuladora e disseminadora de cenários e personagens da visualidade cultural brasileira. A forma de conduzir a narrativa pela imagem influencia outras revistas, tais como A Cigarra (desde 1917), Manchete (1952), Realidade (1966) e a Veja (1968) que, inspirada no modelo da Times americana, adota, por um tempo, a fotorreportagem e o ensaio fotográfico. O Jornal da Tarde (1966) da Folha de São Paulo também se torna adepto de novas linguagens verbais e visuais (BUITONI, 2011). O fortalecimento da linguagem fotográfica no jornalismo brasileiro conduz à formação e à valorização do gênero fotojornalismo, que se divide em fotos jornalísticas e fotos-ilustrações.