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PARTE I: PERCURSOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

CAPÍTULO 1 – GÊNERO DE LINGUAGEM

1.3 Estudos contemporâneos

Para alguns autores, como, por exemplo, Mari e Silveira (2004), a constituição de gênero começa pelas estruturas textuais; já para outros se inicia pela análise do contexto (MOTTA-ROTH, 2005; ASKEHAVE; SWALES, 2009; FAIRCLOUGH, 1989) ou pelo propósito comunicativo (BHATIA, 2009; MOTTA-ROTH; HENDGES, 2010, entre outros). No entanto, a partir da nossa concordância com Bezerra (2017) acerca de uma abordagem brasileira dos estudos de gênero, conforme já mencionado no

item 1.1 desta tese, tomaremos algumas abordagens teóricas de forma dialógica e não separadas. Como afirma o autor, atualmente, o campo da análise de gêneros dispõe de uma variedade de conceitos que dão conta dos vários aspectos das inter- relações dos gêneros. Independentemente do conceito teórico adotado, é fundamental entender os gêneros como se encontram no mundo real: complexos, dinâmicos e inter-relacionados.

Desde os anos 80, quando os estudos de gêneros floresceram, conforme Askehave e Swales (2009, p. 221) asseveram, tem havido um consenso de que eles “são mais bem definidos como entidades orientadas para objetivos ou propósitos”, portanto, a partir de uma abordagem funcional. “A função, neste caso, diz respeito ao propósito comunicativo” (LIMA-NETO; ARAÚJO, 2012, p. 276). Vista assim, a noção de propósito comunicativo se aproxima da noção de função do gênero, segundo Van Leeuwen (2005), no sentido do que fazem os textos. Para Bhatia (2009), o propósito comunicativo é um dos aspectos do conhecimento convencionado, apontado como uma das três características em comum entre as teorias de gênero, junto à versatilidade e à inovação.

O conhecimento convencionado, como nos explica Bhatia (2009), é o que confere integridade a cada gênero. Esse tipo de conhecimento se inter-relaciona, destacadamente, em três aspectos convencionais: propósitos comunicativos compartilhados, recorrência de situações retóricas e regularidades de organização estrutural.

A fim de identificar situações retóricas típicas, pode ser necessário caracterizar os aspectos relevantes do contexto sócio retórico em que um dado evento comunicativo acontece. Uma boa e adequada compreensão da situação retórica típica leva à identificação do (s) propósito (s) comunicativo (s) mutuamente compartilhado (s) por participantes tipicamente associados a uma comunidade discursiva em particular (BHATIA, 2009, p. 161).

Entendemos, então, que o contexto retórico carrega propósito(s) comunicativo(s) compartilhado(s). Percebemos, dessa forma, a importância da noção de propósito comunicativo, pelo fato de ele se inserir em contextos retóricos específicos e determinar formas estruturais e léxico-gramaticais.

O conceito de propósito comunicativo, advertem Askehave e Swales (2009), assume um status de certeza absoluta, um ponto de partida - entretanto, subestimado pelos analistas -, por ser um critério indescritível, menos evidente,

discutível e, por isso, complexo. Dito de outro modo, o propósito comunicativo pode não ser sempre o mesmo para uma mesma comunidade, portanto, não podemos tomá-lo como critério principal para observar o funcionamento dos gêneros. Sua operacionalização como instrumento de categorização do gênero apresenta dificuldades.

Askehave e Swales (2009) ainda sugerem que o conceito pode ser porta de entrada para a compreensão de certos corpora de discursos, pois mostra a multifuncionalidade desses e desqualifica o status de gênero atribuído a certos agrupamentos mais amplos de discurso: “o propósito comunicativo não pode, por si mesmo, ajudar os analistas a decidirem rápida, tranquila e indiscutivelmente quais os textos A, B, C e D pertencem aos gêneros X ou Y” (ASKEHAVE; SWALES, 2009, p. 228). Para os autores, o conceito deve ser tomado no estágio final da análise de gêneros, ou seja, eles assumem que não podemos analisar gêneros tomando o propósito comunicativo como ponto de partida, nem pensar que existe apenas um propósito comunicativo para cada gênero.

Compactuamos com Bhatia (2009) a visão de que o propósito comunicativo faz parte da caracterização essencial do gênero. “É o propósito comunicativo que realmente faz surgir o gênero, „moldando a estrutura esquemática‟ ou „começo-meio- fim‟ do discurso e influenciando nas escolhas de conteúdo e estilo” (KAY; DUDLEY- EVANS, 1988, p. 208 apud BIASI-RODRIGUES; BEZERRA, 2012, p. 233). De acordo com Van Leeuwen (2005), são os propósitos comunicativos, segundo os interesses - “o espectro de manipulação estratégica e intenções particulares” (ASKEHAVE; SWALES, 2009) - dos participantes discursivos, que (re)contextualizam os gêneros em práticas sociais. Para Biasi-Rodrigues e Bezerra (2012), é possível reconhecer, à primeira vista, um propósito geral que reúna um conjunto de práticas do gênero em uma mesma classe, para depois surgirem reclassificações a partir de outros propósitos que vão sendo identificados.

O gênero pode conter mais de um propósito comunicativo e a identificação desse(s) propósito(s) não é uma ação isolada. À luz da LSF, essa identificação acontece concomitantemente à análise do contexto. É no “contexto em que o texto é utilizado” (ASKEHAVE; SWALES, 2009, p. 233) que estão as pistas e os sentidos dos propósitos do texto. Para Bhatia (2009, p. 162), propósitos comunicativos podem ser localizados dentro de situações retóricas, “nos usos mais ou menos tópicos de formas léxico-gramaticais e discursivas”.

A versatilidade é a segunda característica compartilhada pelas teorias de gênero. Operando em vários níveis,

trata-se de um modelo teórico para detalhar o relacionamento entre (a) texto e contexto em sentido estrito; (b) o uso que as pessoas fazem da linguagem e o que torna isso possível, especialmente no contexto de culturas disciplinares específicas; e (c) língua e cultura, em sentido amplo (BHATIA, 2009, p. 163).

Essa característica abrange também o conceito de propósito comunicativo que tanto pode ser único como um conjunto de propósitos e pode ser caracterizado em diferentes níveis de generalização.

Relacionada ao caráter dinâmico do gênero, a inovação - terceira característica compartilhada pelas teorias de gênero - parece ser contraditória frente ao aspecto convencional do gênero. De um lado, a integridade genérica20, isto é, “a tendência de ver o gênero como um evento textual retoricamente situado, altamente institucionalizado” (BHATIA, 2009, p. 167); de outro, a tendência natural à mudança. “Os gêneros situam-se tipicamente em contextos sociorretóricos específicos e, dessa forma, modelam futuras respostas retóricas a situações similares” (BHATIA, 2009, p.168). Dito de outro jeito, os processos retóricos constituem os propósitos comunicativos e dão forma aos gêneros.

Diferentes significados são produzidos verbal, visual e digitalmente, criados por uma retórica multimodal que “emprega os recursos variados, de maneira independente ou interativa” (UNSWORTH, 2001, p. 8 apud MOTTA-ROTH; HENDGES 2010, p. 45) na construção de textos multimodais. À luz de Meurer (2002) e Motta-Roth; Hendges (2010), consideramos modalidade retórica a argumentação, a descrição e a exposição nos gêneros discursivos. Segundo Meurer (2002), os gêneros, que são práticas discursivas reconhecidas culturalmente, produzem os enunciados pelas modalidades retóricas.

A cada momento em que interagimos, essas modalidades retóricas nos possibilitam construir uma versão da experiência humana, seja, por exemplo, como algo que acontece, seja como um objeto que tem características, ou ainda como um ponto de vista a ser defendido (MOTTA- ROTH; HENDGES, 2010, p. 46-47).

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Gêneros discursivos e modalidades retóricas não são sinônimos. Gêneros são práticas semióticas constituídas por modalidades retóricas - tais como narração, descrição, exposição, argumentação - que se articulam de forma interdependente.

O conceito de modalidade retórica está limitado às características da textualização, à forma, enquanto o conceito de gênero discursivo está relacionado à função de determinada prática social mediada pela linguagem (MOTTA-ROTH; HENDGES, 2010, p. 47).

É possível encontrarmos mais de uma modalidade retórica no mesmo gênero e o predomínio de algumas delas se relaciona ao propósito comunicativo principal21 (BROOKS; WARREN, 1950 apud MOTTA-ROTH; HENDGES, 2010).

Os trabalhos que consideram a linguagem como prática social têm aprofundado cada vez mais a relação entre gênero e contexto. Segundo Fairclough (1989), por exemplo, analisar gêneros discursivos passa por situar a linguagem em contextos específicos. A afirmação do autor atende a um dos princípios fundamentais da LSF, em que a abordagem teórica (SS) da nossa pesquisa se baseia. Para a LSF, “o contexto cultural e situacional acrescenta sentido e propósito ao texto” (ASKEHAVE; SWALES, 2009, p. 233). É preciso, portanto, relacionar linguagem a contexto de situação, esses dois ao contexto de cultura mais amplo, relacionando, ainda, os processos de interação linguística aos processos sociais.

Como afirma Motta-Rooth (2005), o analista de gênero conta com a situação recorrente (o contexto) na qual o gênero se constitui em uma dada cultura. A autora compreende o gênero como atividade cultural mediada pela linguagem em um dado contexto de situação, atravessado por discursos diversos. “O conhecimento humano é construído através de gêneros – linguagem usada em contextos, recorrentes da experiência humana – socialmente compartilhados” (MOTTA-ROTH, 2005, p. 181). A autora propõe a análise (e o ensino) de gênero pela observação da relação estreita entre contexto e texto (funções, formas e conteúdos dos enunciados específicos). Em vista disso, assim como Motta-Roth (2005), entendemos gênero como fenômeno estruturador da cultura.

Na abordagem contemporânea de gêneros textuais-discursivos, tomamos o

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conceito de gênero como uma categoria mediadora entre o texto e o discurso. Vemos, assim como Marcuschi (2008), um contínuo entre texto e discurso. Para ele, o gênero se materializa no texto e “tanto o texto quanto o discurso podem ser relacionados produtivamente com o seu contexto cognitivo e social” (BEZERRA, 2017, p. 12). Além disso, no que tange à questão dos estudos brasileiros sobre se o gênero é textual ou discursivo, a qual insiste na dicotomia entre ambos, compactuamos com Paiva (2019, p. 72), para quem “texto, manifestação do gênero, e discurso, enunciador dos gêneros são partes de um todo complexo”. Dessa forma, contemporizamos, tal como Bezerra (2017), que o gênero é indissociável tanto do discurso quanto do texto, dimensões que o constituem.

No que concerne à terminologia, pactuamos com Bezerra (2017) e Paiva (2019) que os termos são formas distintas de se abordar teoricamente o mesmo objeto e que a precisão terminológica busca a delimitação de territórios teóricos. Segundo Bezerra (2017), na abordagem anglófona, por exemplo, há ocorrências dos termos, mas a forma recorrente é apenas o uso de gênero (genre). Em inglês, a expressão gênero textual é usada para distinguir gêneros escritos de gêneros orais ou de outros semióticos. No Brasil, entretanto, pode ser necessário utilizar gênero textual em distinção a gênero social. Os usuários do termo gênero textual são flexíveis e o alternam com gênero discursivo. Marcuschi (2008) opina que, exceto quando é necessário identificar algum fenômeno específico, o uso de ambos os termos é facultativo. Embora o autor tenha preferido usar “gênero textual” (mesmo sendo adepto às ideias de Bakhtin, que usava o termo gênero discursivo), ao longo da sua obra, ele propôs a utilização de um termo que eliminasse as querelas teóricas: textos comunicativos, mas que nunca foi usado (BEZERRA, 2017).

Por mais que a dicotomia de termos marque filiações e pontos de vista teóricos, compactuamos com Bezerra (2017) e Paiva (2019) que o gênero não deve ser reduzido nem a texto nem a discurso. Embora nossa filiação à perspectiva bakhtiniana aponte para a denominação gêneros de discurso, concordamos com a inseparabilidade das dimensões texto, discurso e gênero. E, mesmo simpatizando com a terminologia gêneros textuais-discursivos22, optamos, neste trabalho, pelo

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termo guarda-chuva23 gênero da linguagem, proposto por Paiva (2019), a qual vem sugerindo o conceito desde 201724, a partir de uma perspectiva da linguagem como um sistema adaptativo complexo. Segundo a autora, “agir na sociedade por meio da linguagem é agir com gêneros materializados não apenas no texto linguístico, mas também em outros sistemas semióticos” (PAIVA, 2019, p.70). Essa abordagem embasada na complexidade da linguagem implica em ver a linguística como uma ciência que estuda as várias linguagens humanas, e não somente a linguagem verbal. Consequentemente, essas várias linguagens produzem gêneros variados.

Por algum tempo, a cultura ocidental produzia uma variedade de gêneros a partir de uma abordagem monomodal da linguagem. Dessa forma, os romances literários, assim como os tratados acadêmicos, relatórios e documentos, entre outros, eram graficamente “uniformes”; as pinturas usavam o mesmo suporte; os músicos em concerto se vestiam de forma idêntica (e ainda se vestem) e até as disciplinas teóricas e críticas falavam sobre essas artes de forma monomodal. Cada uma com seu método, vocabulário técnico, entre outras características. Esse domínio da monomodalidade, entretanto, vem se revertendo. Não somente os meios de massa, as revistas, os quadrinhos, mas também os documentos institucionais têm aumentado o uso de variados materiais, atravessando as fronteiras entre o design e a arte, em direção à multimodalidade, eventos de multimídia etc.

Em suma, adotamos a perspectiva multimodal da linguagem, compreendendo-a como uma prática social, produtora de variados gêneros cuja caracterização leva em conta sua função social e propósito comunicativo. Apesar de nos filiarmos à abordagem socio-histórica, que considera o gênero sob os conceitos bakhtinianos de dialogismo, polifonia e intertextualidade, optamos pelo termo teórico gênero da linguagem, ao concordarmos com a inseparabilidade das dimensões texto, discurso e gênero.

Por adotarmos a Fotopotoca como um gênero de linguagem multimodal, cuja linguagem se realiza por diferentes modos/recursos semióticos, nossa tese parte de uma perspectiva multimodal da comunicação e se insere, por conseguinte, no

23 A autora inclui no “guarda-chuva” texto, discurso e outros modos semióticos. Não exclui gêneros textuais, do discurso ou discursivos e acolhe gêneros não verbais que, para ela, também são ações de linguagem.

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Especificamente no IX Simpósio Internacional de Gêneros Textuais/Discursivos (SIGET), ocorrido em Campo Grande.

quadro teórico da SS da comunicação visual - abordagem fundamentada na LSF25 - que concebe a linguagem como um sistema social baseado em semiótica (HALLIDAY, MATTHIESSEN 2014), a qual abarca os textos sob um viés multimodal, ao incluir, para além do modo semiótico verbal, os diferentes recursos semióticos por meio dos quais a linguagem é realizada (CARVALHO, 2012). Dessa forma, julgamos importante tratar das abordagens semióticas na perspectiva dos estudos linguísticos, em especial a SS, à qual esse trabalho se filia.