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PARTE I: PERCURSOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

CAPÍTULO 1 – GÊNERO DE LINGUAGEM

1.1 Abordagens teóricas

A concepção de gênero de linguagem adotada nesta pesquisa resulta de abordagens que se baseiam nos estudos precursores bakhtinianos. As teorias de gênero, quaisquer que sejam suas vertentes, passam, impreterivelmente, por Mikhail Bakhtin, especificamente pela obra Estética da Criação verbal ([1953]/2003). Dessa forma, além de tratarmos de alguns conceitos fundadores bakhtinianos, apresentamos, brevemente, as escolas tradicionais sobre gêneros e destacamos as abordagens contemporâneas que compreendem o gênero como prática discursiva e social, produzido, distribuído e consumido através de recursos semióticos que visam a propósito(s) comunicativo(s) e, por isso, afins a esta pesquisa.

Desde a antiguidade até o século XX, o gênero era estudado pela sua especificidade artístico-literária, no âmbito da literatura, sem levar em conta seu aspecto linguístico. Estudavam-se os gêneros retóricos e os gêneros discursivos do cotidiano. A classificação aristotélica nos campos da poética e da retórica foi a base de campo da literatura até o surgimento da prosa comunicativa “que passou a

reivindicar outros parâmetros de análise das formas interativas que se realizam pelo discurso” (MACHADO, 2005, p. 152). Hoje os gêneros da linguagem se diferenciam dos literários15 tradicionais. Em diversas áreas de pesquisa, o gênero deixou de significar tipos de textos e sistema de classificação e passou a ser definido como um “poderoso formador de textos, sentidos e ações sociais, ideologicamente ativo e historicamente cambiante” (BAWARSHI; REIFF, 2013, p. 16). Assim, em substituição à concepção classificatória, surge essa abordagem dinâmica que entende os gêneros como “formas de conhecimento cultural que emolduram e medeiam conceitualmente a maneira como entendemos e agimos tipicamente em diversas situações” (BAWARSHI; REIFF, 2013, p. 16). Por isso, conceber dinamicamente o gênero exige estudos para além de sua formalidade. Essa perspectiva tem partido de abordagens fundamentadas em diferentes tradições.

Segundo Marcuschi (2008, p. 149), “da Escola de Sidney à de Genebra, da nova retórica à abordagem sistêmico-funcional, da linguística de corpus à reflexão bakhtiniana”, os gêneros têm sido estudados sob um ponto de vista diferente do aristotélico, como objeto de reflexão de numerosas escolas e vertentes teóricas. Atualmente, são três as escolas que se debruçam sobre a noção de gênero tradicionalmente reconhecida e conduzida por pesquisadores da Austrália, Suíça e Estados Unidos/Canadá.

A escola de Sidney, em meados da década de 1970, baseava-se na perspectiva sistêmico-funcional da linguagem que compreende as escolhas linguísticas como determinadas socialmente pela interação entre os contextos de cultura e situação (visão sociossemiótica).

A escola de Genebra, desde os anos 80, inspira-se no interacionismo sociodiscursivo (uma vertente da Psicologia da Linguagem) para propor uma abordagem centrada na diversificação dos textos e nas relações que esses mantêm com seu contexto de produção, enfatizando os aspectos históricos e sociais.

Tanto a escola de Sidney quanto a de Genebra consideram os textos como unidades de análise em uma acepção sociointeracionista, ou seja, os textos realizam semioticamente uma ação de linguagem efetuada em um modelo de gênero. Nessa concepção, os gêneros medeiam, dão forma e materializam semioticamente as

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Para conhecimento das abordagens literárias, recomendamos a leitura de Gênero: história, teoria, pesquisa, ensino (BAWARSHI; JEFF, 2013), especificamente o capítulo 2.

ações discursivas entre os sujeitos.

A terceira escola, a Nova Retórica ou Escola norte-americana, que se fundamenta em uma abordagem sociorretórica, cultural e sociológica, surge para contrapor à retórica clássica, propondo uma reconceituação do gênero baseada em quatro perspectivas do conhecimento humano e da linguagem: a Virada Retórica (Rhetorcial Turn) – a noção de língua (gem) como ação simbólica; o Construcionismo Social – a noção do conhecimento como algo construído socialmente e da linguagem como uma forma de agir e construir representações sobre o mundo; as Versões Retóricas da Racionalidade – o foco no conceito de contexto nas interações sociais mediadas pelo discurso; a Teoria dos Atos de Fala – a percepção de que as palavras vão além do que simplesmente fazer afirmações sobre o mundo. Nessa escola, influenciada pela antropologia, pela sociologia e pela etnografia, além de preocupada com a organização social e sua relação com a cultura e o poder, o gênero é uma forma de ação social.

As três escolas apresentadas se ocupam de questões do ensino de língua/gênero (BUNZEN, 2004; RAMALHO, 2008). Entretanto, alguns autores, tais como Motta-Roth (2008) e Ramalho (2008), identificam não três, mas quatro vertentes de estudos do gênero. Além da escola sistêmico-funcional de Sidney, da escola do Interacionismo Sociodiscursivo (ISD) e da escola americana da Nova Retórica, incluem a escola britânica de Linguística Aplicada - English for Specific Purposes (ESP) -, também de abordagem sociorretórica, dedicada ao ensino do inglês cujo foco é a organização dos tipos de textos em contextos sociais – suas propriedades formais e objetivos comunicativos.

No QUADRO 1, apresentamos uma síntese das perspectivas teóricas acerca de gênero, reunindo as informações de Bezerra (2017), Motta-Roth (2008) e Ramalho (2008) sobre as escolas, suas origens, abordagens, equivalência/associação/base, autores precursores e definição de gênero. Assim, abarcamos um olhar geral a propósito das principais vertentes teóricas que tratam exclusivamente do tema. Esclarecemos a ausência, no quadro, da vertente bakhtiniana porque ela está presente em todas as quatro, como influência central (MOTTA-ROTH, 2008) e princípio fundador (RAMALHO, 2008).

Quadro 1 - Perspectivas teóricas sobre gênero segundo Bunzen (2004), Motta-Roth (2008) e Ramalho (2008)

Escola Origem/época Abordagem Equivalência /associação /base Autores Conceito de gênero Sidney Austrália Anos 70/80 Sociossemiótica LSF Linguagem Sistêmica Funcional Halliday, Hasan, Matthiessen, Martin,Chirstie, Eggins Funções semióticas específicas à cultura; Conformação recorrente e progressiva de significados para realizar práticas sociais Genebra França, Suíça

Anos 80 Sociodiscursiva ISD Interacionismo sociodiscursivo Bronckart, Schneuwly, Dolz Textos com características relativamente estáveis Nova Retórica EUA Canadá Anos 90 Sociorretórica ESR Estudos retóricos de gênero Miller, Bazerman, Ações retóricas típicas

Britânica Ing Sociorretórica LA (ESP) Linguística aplicada (Ensino do Inglês)

Swales, Bhatia Evento comunicativo

Fonte: Adaptado de Bunzen (2004), Motta-Roth (2008) e Ramalho (2008).

Apesar de diferentes, as quatro escolas compartilham de dois pontos relacionados ao conceito de gênero, quais sejam: a) usado pela linguagem em atividades sociais; b) ação discursiva recorrente e, por isso, com algum grau de estabilidade na forma, conteúdo e estilo (MOTTA-ROTH, 2008). A partir dessa afinidade, entendemos que, dentre as escolas, o mais apropriado para a finalidade dessa pesquisa – que objetiva descrever o funcionamento do gênero de linguagem Fotopotoca – é considerar as quatro perspectivas apresentadas: a da escola australiana, por tratar da “estabilidade” da composição dos gêneros; a da escola suíça, que se preocupa com a questão interacional na produção e contexto do gênero; a da escola inglesa, que se interessa pela organização retórica dos textos; e a da escola norte-americana, que se interessa pela dinamicidade e mutabilidade dos gêneros, compreendendo-os como ações sociais recorrentes, constituídas culturalmente, ou seja, pretendemos observar como a Fotopotoca funciona a partir de sua composição „estrutural‟ - aspectos linguísticos, textuais e multimodais de sua relativa estabilidade - e também como seu funcionamento acontece a partir de sua ação social e de sua interação - aspectos sociológicos de sua mobilidade. Dito de

outro modo, pretendemos analisar o gênero de linguagem Fotopotoca a partir das abordagens sociossemiótica, sociorretórica e sociodiscursiva.

Sem entrar na discussão da “visão um tanto generalizante”, artificialmente harmoniosa criticada por Bezerra (2017, p. 88), podemos considerar nossa abordagem como brasileira, pois “combina pressupostos que abrangem desde as tradições linguísticas até as tradições sociológicas e retóricas de estudos de gênero” (BEZERRA, 2017, p. 88), denominada, também, de mestiça16, “cuja qualidade mais notável”, segundo Motta-Roth (2008, p. 368), é sua intertextualidade entre as várias escolas.

De acordo com Bawarshi e Reiff (2013), a abordagem brasileira permite perceber compatibilidade entre as tradições e oferecer ferramentas teórico-analíticas para a compreensão do funcionamento linguístico, retórico e sociológico dos gêneros.

Os estudos brasileiros de gênero se iniciam na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), no começo da década de 1990, coordenados pelos professores José Luís Meurer e Carmen Rosa Caldas Coulthard. Durante essa década, surgem trabalhos voltados ao ensino e à pesquisa da língua escrita baseada em gêneros. O conceito se fortalece ao ser integrado ao conhecimento normalizado pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) que, em 1997, estabelecem o conceito de gênero como base da elaboração da proposta pedagógica de ensino de linguagem. Ao longo da década de 2000, núcleos de pesquisas espalhados pelas regiões do país produzem muitos estudos sobre gêneros17. Em 2006, o conceito de gênero como recurso pedagógico para o ensino do funcionamento da linguagem é reafirmado com a publicação dos PCNs. Ao longo do tempo, o conceito de gênero (discursivo, textual ou de linguagem) vai se ampliando diante das possibilidades de análise, desde a instância imediata do uso da linguagem até o discurso (MOTTA-ROTH, 2008).

Na última década, destaca-se a abordagem teórica Análise Crítica de Gêneros (ACG) de José Luiz Meurer, pesquisador da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). A ACG, que adiciona à análise de gêneros a Análise Crítica de

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Termo usado pelo autor, no sentido de misturado. 17

Nesse ano, Bernadete Biasi-Rodrigues inicia um projeto de produção coletiva para sintetizar tematicamente os estudos de gêneros no Brasil. Em 2011, a pesquisadora falece e, em 2012, o periódico Linguagem em (Dis)curso publica o Dossiê Biasi-Rodrigues, com metade dos trabalhos desenvolvidos no projeto inicial.

Discurso (ACD), conforme aponta Motta-Roth (2008), vem incorporar o componente crítico à pesquisa (e ensino) de gêneros. De acordo com Bezerra (2017), a ACG é uma das muitas sínteses possíveis no contexto brasileiro de pesquisa de gêneros. O autor assevera que, apesar de preconizada por Meurer, o pesquisador indiano Vijay K. Bhatia vem trabalhando com tal abordagem sem citar o pesquisador brasileiro. Bezerra informa, ainda, que a concepção tem sido utilizada também pelo estudioso Adair Bonini, que atribui suas raízes tanto a Meurer como Bhatia. Para Bezerra (2017), enquanto a perspectiva de Bonini, mais alinhada à de Bhatia, trata da incorporação da ADC faircloughiana, a perspectiva de Meurer vai ao encontro da síntese, no sentido de tentar delinear uma abordagem teórica mestiça.

Brasileiras e/ou internacionais, as escolas e abordagens sobre gêneros partem de uma perspectiva enunciativa, portanto, os estudos bakhtinianos ocupam um lugar central nos estudos sobre gêneros (RAMALHO, 2008). Segundo Marcuschi (2008), por fornecer subsídios teóricos mais amplos, os estudos bakhtinianos são assimilados proveitosamente por todos.