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O gênero de linguagem multimodal Fotopotocas de Ziraldo

PARTE I: PERCURSOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

CAPÍTULO 1 – GÊNERO DE LINGUAGEM

1.6 O gênero de linguagem multimodal Fotopotocas de Ziraldo

A multimodalidade é um fenômeno da contemporaneidade, em que a linguagem visual, incentivada pela globalização econômica, pelo multiculturalismo e por avanços tecnológicos, ganha destaque na composição de gêneros híbridos, multimodais. Entretanto, Jewitt (2011) defende que o modo visual e a multimodalidade não têm uma origem moderna. Para ela, o uso atual de imagens é uma „volta‟ ao passado, quando a modalidade visual tinha uma grande relevância para a vida humana, e viver em qualquer cultura é viver em uma cultura multimodal. Portanto, há uma conexão entre o contemporâneo e o passado - em que o turno visual ou multimodal é compreendido como uma narrativa conectada com a

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Chamamos Teoria da Multimodalidade a abordagem desenvolvida por Kress e Van Leeuwen, para tratar da linguagem como entidade multissemiótica (LEMOS, 2016).

tecnologia da nova mídia, a qual desempenha um papel central em como os modos estão disponíveis, configurados e acessados - e com a prática cultural. Dessa forma, a autora rompe com a construção binária „letramento e a era do visual‟ dos modelos da história.

Essa afirmativa de Jewitt (2011) pode ser confirmada pelo nosso corpus, que surgiu há mais de 50 anos (1963) e se constitui pela coexistência de diferentes modos/recursos semióticos: textos verbais, balões de HQ e fotografias. No gênero de linguagem multimodal Fotopotocas de Ziraldo, exemplificado na FIG. 579, coexistem sistemas de signos imagéticos e recursos linguísticos gráficos que integram um mesmo espaço de texto.

FIGURA 5 - Fotopotoca 01-39

O senhor já tentou o Pitangui, Marechal?

Temos, assim, que considerar, junto à palavra escrita, outras formas de semiose, reconhecendo, tal como Garcia da Silva e Ramalho (2012), que, do mesmo modo como ocorre no modo verbal, as imagens atuam como forma de representação, troca de experiência e mensagem. Nesses termos, de acordo com Carvalho (2013), a partir da multimodalidade, vamos observar os modos de representação em função dos quais o gênero fotopotocas foi produzido, além de compreendermos o potencial de origem histórica e cultural na construção do seu significado.

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Nas figuras das Fotopotocas, indicamos sua fonte bibliográfica na referência da imagem. Assim, a fotopotoca 01-9 se refere à da página 39 da edição 1. No local recomendado pela ABNT para indicação da fonte, optamos por informar o conteúdo verbal dos balões, para facilitar a visualização do texto pelo(a) leitor (a).

A prática social midiática revista ilustrada produz o gênero fotopotoca, que se constitui no imbricamento entre os campos do fotojornalismo, do humor e da política, em uma relação entre atores sociais que a produzem, a distribuem e a consomem. Nesse sentido, se os gêneros específicos são definidos pelas maneiras como as práticas sociais se articulam, e se essa articulação influi na mudança genérica (RESENDE; RAMALHO, 2006), a fotopotoca é o resultado das mudanças e da recombinação de gêneros midiáticos preexistentes - fotografia de imprensa e piada visual (ou charge fotográfica). Logo, se os pré-gêneros são categorias abstratas transcendentes às redes particulares de práticas sociais que contribuem para a composição de diversos gêneros situados (RESENDE; RAMALHO, 2006), e se um gênero situado é “um tipo de linguagem usada na performance de uma prática social particular80” (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, [1999]/2001, p. 56, tradução nossa), propomos que a fotopotoca é um gênero situado - porque é específico da rede de práticas de humor no (foto)jornalismo - a partir dos pré-gêneros narrativa e argumentação. A fotopotoca se constitui, portanto, a partir de uma narrativa multimodal argumentativa (FAIRCLOUGH, [1992]/2001, MOTTA-ROTH; HENDGES, 2010, KRESS; VAN LEEUWEN, 2001, VIEIRA; SILVESTRE, 2015).

Essa recombinação e mistura de gêneros, segundo Bhatia (2009), é uma tendência natural dos gêneros. O fenômeno da intergenericidade (ou intertextualidade intergêneros) ocorre, segundo Marcuschi [2002?], quando gêneros com determinadas características funcionais se utilizam de características formais de outros gêneros, ou seja, a forma de um gênero mais a função de outro (a mistura de gêneros) geram um terceiro gênero híbrido, como é o caso, por exemplo, da FIG. 6 (p. 77), que mostra a forma do gênero fotografia de imprensa com a função (propósito) do gênero HQ (ou piada/charge fotográfica), constituindo a fotopotoca. O teor da foto de imprensa poderia ser compreendido como uma HQ (ou fotonovela). O lugar da publicação e o arranjo do texto multimodal fazem da fotopotoca um gênero. Por isso, o hibridismo não dificulta a interpretação (MARCUSCHI, 2008, FIX; WIESER, 2006), já que o gênero pode ser identificado, à primeira vista, por um propósito comunicativo geral que pode ser reconfigurado após análise mais apurada A priori, a fotopotoca, publicada em uma revista de humor, propõe o fazer rir.

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A genre is a type of language used in the performance of a particular social practice (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, [1999]/2001, p. 56).

O fenômeno das combinações genéricas tem reconfigurado o pensamento social e sido o reflexo das misturas ocorridas na sociedade (LIMA-NETO; ARAÚJO, 2012). Refletida nos textos cada vez com mais frequência, em especial nos que “não podem prescindir de chamar, antes de tudo, a atenção do público” (FIX; WIESER, 2006, p. 263), a mistura é denominada intergenerecidade (LIMA-NETO; ARAÚJO, 2012), intertextualidade intergenérica (KOCH; BENTES; CAVALCANTE, 2007) e intertextualidade tipológica (FIX; WIESER, 2006), ocorrida em variações e montagem de textos, transgressões de padrões de textos, misturas textuais e estilísticas, quando um gênero se relaciona a outro, na sua composição, conteúdo temático ou estilo. Considerada a área de estudos das misturas de gêneros (LIMA- NETO; ARAÚJO, 2012).

FIGURA 6 - Fotopotoca 04-80

Estou me sentindo tão só...

O gênero fotopotoca possui processos particulares de produção, distribuição e consumo de textos. No contexto de uma prática social midiática impressa, o gênero fotopotoca foi produzido por jornalistas visuais81, todos homens, liderados pelo jornalista e cartunista Ziraldo, um agente social branco heterossexual, de elite, posicionado politicamente à esquerda e de forma machista em seus textos piadísticos.

A fotopotoca é um elemento híbrido suporte-revista-hipergênero82 e mídia. Do ponto de vista material, produzida no suporte convencionado revista papel jornal, em formato horizontal (a orientação paisagem no layout de página do programa Word),

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Entendendo o chargista como um jornalista que, por elementos verbo-visuais, informa e opina. 82

De acordo com Bonini (2011), conforme já discutido às páginas 64-65 desta tese, especificamente na discussão sobre gênero e suporte.

tipo caderno, medindo 13,5 X 20,5 cm, o gênero fotopotoca é também mídia. Sua capa traz um fundo vermelho com os textos em destaque na cor preta: Ziraldo83 apresenta, seguido pelo título da revista, Fotopotocas, que pode ser repetido, conforme nos mostra a FIG. 7. Outras informações são trazidas na capa, também na cor preta: o preço e o número da edição.

O miolo de 80 páginas apresenta as fotopotocas em preto e branco (p&b), de acordo com os recursos tecnológicos de produção gráfica jornalística preferencial da época, quando os jornais eram impressos nessas cores.

FIGURA 7 - Capa da revista Fotopotoca, ed. 3

Sinceramente. Não entendo por que esse pessoal vive me gozando...

As revistas eram produzidas e distribuídas pela Editora Brasileira de Livros e Revistas Edibrás Ltda., situada à Rua Souza Franco, 425, Rio de Janeiro. Disponíveis em bancas de revistas por todo o território nacional, eram consumidas por um público generalizado: homens e mulheres adeptos do jornalismo atravessado pelo humor. Pessoas que, possivelmente, acompanhavam a trajetória do cartunista Ziraldo e/ou já haviam conhecido o gênero, desde seu surgimento, nas Fotofofocas (FIG. 8) da revista O Cruzeiro e também leitores do jornal Última hora que viam os anúncios (FIG. 9 e 10). Segundo o Ziraldo (PINTO, 2015), as revistas faziam sucesso e vendiam rapidamente84. Por isso, após a 11ª edição, ele lançou duas

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Mesmo que Pinto [Ziraldo] (2015) tenha contado com colaboradores, citados internamente, na capa, somente seu nome aparecia.

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Conforme a coluna Noite e Dia, de Thor Carvalho, do jornal Última Hora, de 10 de dezembro de 1963, as edições 1 e 2 foram reimpressas.

edições especiais, as seleções, que reuniam as melhores das publicadas anteriormente.

FIGURA 8 - Origem da Fotopotoca

Fonte: O Cruzeiro, n. 2,17 out. 1964, p.3.

FIGURA 9 – A maior risada do ano - Anúncio das FZ

Fonte: Jornal Última Hora, 15 nov. 1963, p. 5.

FIGURA 10 – Edição 2 - Anúncio das FZ

Neste momento, paramos para pensar no porquê desse sucesso naquele contexto... E a causa talvez esteja relacionada diretamente ao seu processo estrutural. Qual discurso as revistas Fotopotocas carregam? De que falam e por que falam? Quais eram os objetivos do Ziraldo ao compor o gênero fotopotoca? Criticar situações, debochar de personalidades, levar os leitores a refletirem sobre o mundo da época? Pensamos que todos esses objetivos específicos eram conduzidos por um propósito comunicativo85 geral, desenvolvido pelo autor, que se ajustava às expectativas de quem consumia as revistas.

Vimos neste capítulo o caráter social do gênero, que ele é constituído a partir de relações e contextos sociais. Vimos também que, caracterizado pela forma, conteúdo e função, o gênero deve ser analisado considerando as três características que se relacionam dinamicamente, produzindo significados a partir dos processos discursivos de produção /interpretação, distribuição e consumo. O gênero é, então, construído em um processo social e dinâmico, possui modos/recursos semióticos que objetivam a realização de propósitos comunicativos (institucionais e/ou particulares) dentro de contextos específicos.

Após discutirmos nosso corpus - as revistas Fotopotocas de Ziraldo - à luz das teorias de gênero, da SS e, em especial, da teoria da Multimodalidade, trataremos, a seguir, da sua contextualização dentro da Comunicação. Por compreendermos que as revistas se situam em um contexto midiático, abordaremos os grandes campos teóricos nos quais as fotopotocas se desenvolvem diretamente - fotografia, jornalismo e fotojornalismo - no próximo capítulo, intitulado Gênero midiático.

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O propósito comunicativo, assim como as outras caraterísticas da categoria Conhecimento convencionado, será tratado no capítulo 2 da parte II deste trabalho.