• Nenhum resultado encontrado

PARTE I: PERCURSOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

CAPÍTULO 1 – GÊNERO DE LINGUAGEM

1.2 Estudos precursores bakhtinianos

Contemporaneamente, os estudos discursivos preconizados por Bakhtin consideram não mais a classificação das espécies, como nos estudos das tradições literárias, mas o dialogismo enquanto constitutivo da produção da língua. Dessa forma, relações interativas produzem língua/linguagem, identidades, saberes e ideologias (RAMALHO, 2008).

No início do século XX, Mikhail Bakhtin, filósofo18 russo da linguagem, propõe um novo olhar sobre as identidades específicas adquiridas pelos textos, considerando os fatores da interação e as condições socio-históricas de produção da linguagem. Ao criticar as correntes filosóficas que reduzem a essência da linguagem à criação espiritual do indivíduo e propõem o esquema falante-ativo- discurso e ouvinte-passivo-recepção, ele defende a concretude e a dialogia da linguagem.

O ouvinte, ao perceber e compreender o significado (linguístico) do discurso, ocupa simultaneamente em relação a ele uma ativa posição responsiva: concorda ou discorda dele (...) Cedo ou tarde, o que foi ouvido

18

Em Os gêneros do discurso ([1953]/2003), Bakhtin denomina sua análise como filosófica, e não linguística ou filológica. .

e ativamente entendido responde nos discursos subsequentes ou no comportamento do ouvinte (BAKHTIN, ([1953]/2003, p. 271-272).

Para Bakhtin ([1953]/2003), o emprego da língua se dá em forma de enunciados produzidos pelos locutores-falantes dos vastos campos da atividade humana. O conceito de enunciado é fundamental para compreendermos o conceito de gênero, já que o gênero é uma forma típica, relativamente estável, de enunciado. Para explicar a noção de enunciado, Bakhtin ([1953]/2003) o denomina como unidade discursiva, de modo a diferenciá-lo das noções de unidades morfológica (léxico) e sintática (oração). Essa diferenciação, segundo o autor, é imprescindível para elucidar o desconhecimento - causado pela indefinição terminológica e confusão metodológica - da real unidade da comunicação discursiva no pensamento linguístico19,

porque o discurso só pode existir de fato na forma de enunciações concretas de determinados falantes, sujeitos do discurso. O discurso sempre está fundido em forma de enunciado pertencente a um determinado sujeito do discurso, e fora dessa forma não pode existir (BAKHTIN, ([1953]/2003, p. 274).

Portanto, só há discurso onde há enunciado. Bakhtin ([1953]/2003) ainda destaca que, oral e escrito, concreto e único, expresso por integrantes de qualquer campo da atividade humana, o enunciado é a efetivação do emprego da língua. Cada condição e finalidade de cada campo específico da atividade humana são refletidas pelo conteúdo temático, estilo de linguagem e construção composicional do enunciado: “cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso” (BAKHTIN, ([1953]/2003, p. 262). A relativa estabilidade acontece, a nosso ver, pelo caráter heterogêneo, dinâmico e dialógico da língua, e pelo conceito de cronotopo. Como explica Rodrigues (2004), cada enunciado se constitui em um novo acontecimento, um evento único, um elo que não se repete na cadeia da comunicação discursiva e mantém relações dialógicas com enunciados não só antecedentes como também posteriores.

19

Para Bakhtin, esse desconhecimento é causado pela ausência de uma teoria do enunciado como unidade discursiva.

Nosso discurso, isto é, todos os nossos enunciados (inclusive as obras criadas) é pleno de palavras dos outros, de um grau vário de alteridade ou assimilabilidade, de um grau vário de aperceptibilidade e de relevância. Essas palavras dos outros trazem consigo a sua expressão, o seu tom valorativo que assimilamos, reelaboramos, e reacentuamos (BAKHTIN, [1953]/2003, p. 294-295).

Ora, se os gêneros são (re)construídos socialmente ao longo da história, a fim de atender às necessidades básicas de comunicação da sociedade, eles são, por conseguinte, relativamente “os mesmos” (considerando a relatividade cronotópica) e sempre outros. Como afirma Bakhtin ([1953]/2003), são plenos de tonalidades dialógicas. Daí a sua estabilidade relativa.

Por mais monológico que seja o enunciado (por exemplo, uma obra científica ou filosófica), por mais concentrado que esteja no seu objeto, não pode deixar de ser em certa medida também uma resposta àquilo que já foi dito sobre dado objeto, sobre dada questão, ainda que essa responsividade não tenha adquirido uma nítida expressão externa: ela irá manifestar-se na tonalidade do sentido, na tonalidade da expressão, na tonalidade do estilo, nos matrizes mais sutis da composição (BAKHTIN, [1953]/2003, p. 298).

Para o filósofo russo, as características e formas do uso da linguagem são tão multiformes quanto à variedade dos campos da atividade humana e cada campo elabora seus tipos de enunciados, aos quais ele denomina gêneros do discurso. Diante da heterogeneidade dos gêneros discursivos, o que causa a dificuldade em definir a natureza geral do enunciado, Bakhtin ([1953]/2003) recomenda a diferenciação - embora não se trate da diferença funcional - atenta entre os gêneros discursivos primários (simples) e secundários (complexos).

Os gêneros primários se formam em “circunstâncias de comunicação verbal espontânea”, em situações imediatas. A partir da reelaboração e da incorporação de gêneros primários, surgem os gêneros complexos ou secundários. Nesse processo, o gênero primário perde “o vínculo imediato com a realidade concreta e os enunciados alheios” (BAKHTIN, [1953]/2003, p. 263). Ambos os gêneros são enunciados verbais, o que os difere é a complexidade com que se apresentam.

A partir dessa diferenciação bakhtiniana, podemos inferir que o fotojornalismo, por exemplo, é um ato básico e primário do jornalismo, logo, gênero primário. A partir do momento em que ele participa da elaboração da Fotopotoca, deixa de ser simples e cotidiano, torna-se distante da sua realidade concreta e se complexifica

em outro acontecimento. Em termos bakhtinianos, consideramos nosso corpus, portanto, um tipo de gênero secundário.

Diante disso, definir a natureza do enunciado é um processo profundo, complexo que deve ser empreendido de forma bilateral.

A própria relação mútua dos gêneros primários e secundários e o processo de formação histórica dos últimos lançam luz sobre a natureza do enunciado (e antes de tudo sobre o complexo problema da relação de reciprocidade entre linguagem e ideologia) (BAKHTIN, [1953]/2003, p. 264).

Ao problematizar a noção de gênero em grande parte da sua obra, Bakhtin amplia o conceito a todas as esferas sociais, para além dos limites da literatura e da arte, defendendo sua constituição sociodiscursiva (histórica e ideológica).

Para Motta-Roth (2008), o foco na noção de gênero nos estudos do discurso escrito tem sido enriquecido pelos conceitos da perspectiva sociológica ou socio- histórica bakhtiniana, com destaque para: a) a heterogeneidade que se relaciona à instabilidade/fluidez dos usos da linguagem; b) o dialogismo que diz sobre a interação entre leitor e autor; c) a polifonia que trata da capacidade do texto de evocar diferentes pontos de vista ou vozes sociais; e d) a intertextualidade que se relaciona à capacidade de um texto evocar outros.

De acordo com Askehave e Swales (2009), a visão bakhtiniana tem sido um dos elementos-chave no conjunto de “nós” multidisciplinares de conexões estabelecidas pelas abordagens contemporâneas de gêneros não literários. Segundo esses autores, os maiores avanços dos últimos anos não surgem da categorização ou da filiação de gêneros, mas de estudos variados que têm ampliado a compreensão do funcionamento do discurso na sociedade.