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2. O DIREITO DE PROPRIEDADE: do individualismo ao interesse

2.4. A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E A TUTELA AMBIENTAL

A função social é expressão do direito de propriedade no tempo e no espaço e se modifica com ele ao acompanhar as mudanças na relação das pessoas em torno de bens naturais, de consumo, de produção. Por isso, a função social da propriedade é compreendida como norma jurídica geral que garante a inserção na ordem jurídica de opções ideológicas de paradigmas sociais determinados ao longo da história da humanidade. Assim, pode se dizer que sua função social deriva de característica intrínseca ao direito de propriedade ou que a propriedade sempre teve uma função social a cumprir (SILVA, 2005). Mesmo no liberalismo.

A propriedade, como se salientou, sempre se apresentou como a instituição jurídica, primeira ou principal, a ser adequada pelas alternâncias dos paradigmas de organização político-econômica da sociedade. Nesse contexto, a função social da propriedade vai se colocar como instituto jurídico que permite a análise do direito positivado a partir de prevalências axiológicas de realização e existência da pessoa humana, ou seja, de conformação do instituto de assenhoramento dos bens naturais, de consumo e de produção, aos ditames econômicos, políticos e humanísticos da sociedade. É dispositivo legal que permite a conformação das exigências utilitaristas de produtividade econômica da sociedade capitalista aos valores humanistas de afirmação emancipatória da pessoa humana. (FARIAS e ROSENVALD, 2010).

Como a função social, a ser cumprida pela propriedade, modifica-se com as mudanças na relação de consumo e produção dos bens, sempre que isto ocorre, também, há transformação na estrutura do conceito de propriedade, pela nova concepção. Concepção conformadora de seu conteúdo essencialmente econômico, de um direito de primeira dimensão tido como garantidor da liberdade e do mínimo existencial da pessoa humana.

sobrepor à pessoa, a propriedade se apresenta na linha de frente das instituições jurídicas a sofrerem interferência dos paradigmas que se instauram, principalmente quando os valores sociais iminentes indicam no sentido de uma reestruturação da relação das pessoas em torno dos bens. É o que se verifica com o paradigma do desenvolvimento sustentável. Com ele a função social vai servir-se de norma geral que permitirá a inserção da dimensão ambiental no conteúdo e extensão da propriedade, enquanto uma das finalidades a ser cumprida por ela, ao lado das finalidades econômica e social propriamente dita. Por isso a função social da propriedade também pode ser compreendida como princípio informador da promoção da tutela do meio ambiente ecologicamente equilibrado.

A função social da propriedade, a partir da inclusão da finalidade ambiental, vai servir à adequação dos institutos jurídicos de apropriação das coisas, de criação, produção e de circulação de riquezas, ao viés da sustentabilidade socioeconômica-ambiental.

Ainda que forte e saliente seja o discurso do meio ambiente que deve ser protegido a qualquer custo, a finalidade ambiental visa à promoção da realização e existência da pessoa humana, à continuidade da organização social, à função social que o direito de propriedade tem a cumprir, fundamento finalístico que justifica a sua existência como direito. A inserção da dimensão ambiental justifica-se pela necessidade de controle dos anseios egoísticos das pessoas, conjunto de viventes de uma sociedade, sobre os recursos naturais, para a existência delas mesmas.

Sobre esse entendimento é que a finalidade ambiental se apresenta como elemento da função social a ser cumprida no exercício do direito de propriedade. Todavia, não pressupõe uma propriedade-dever, apesar de ser positivada, principalmente, através de normas limitativas do exercício do direito (SASS, 2008). Senão, ter-se-ia por comprometida a própria função social da propriedade que inclui, também, as finalidades econômicas e sociais, esta estritamente considerada.

A propriedade cumpre, no capitalismo, precipuamente, uma função social impulsiva, destinada à realização econômica da pessoa e da sociedade, para seu desenvolvimento. Mas não parece ser este o conteúdo e extensão da positivação da finalidade ambiental da propriedade, já que sua realização se perfaz por meio de intervenções administrativas de caráter ambiental que resultam numa extensa limitação do exercício do direito de propriedade. No que diz respeito à positivação da

dimensão ambiental da propriedade, percebe-se que o sistema jurídico tem sido construído com normas, essencialmente, proibitivas de condutas, segundo uma função socioambiental limitativa. Normas, que pela vinculação a atos autorizativos do governo, são efetivadas de modo discricionário pela autoridade governamental, sem qualquer adequação entre as normas regulatórias e a sociedade para a qual elas se destinam (SASS, 2008). Atos autorizativos de caráter ambiental tidos como derivados do poder de polícia do Estado (MEIRELLES, 2000).

A literatura jurídica (MEIRELLES, 2000; SILVA, 2005; GOMES, 2012), geralmente, diferencia a função social das limitações ao direito de propriedade, informando que elas têm fundamento no poder de polícia do Estado. Para Campos Júnior (2011), apesar de o poder de polícia de caráter ambiental também atingir o direito de propriedade não pode ele ser confundido com a função social da propriedade. Todavia, ainda que tecnicamente, assim sejam entendidas, “é certo que o princípio da função social da propriedade assegura a legitimidade das intervenções administrativas de caráter ambiental que resultam na limitação do exercício pleno da propriedade” (FIGUEIREDO, 2010, p. 103). Como salienta Figueiredo (2010), é árdua a distinção jurídica entre aquilo que integra o direito de propriedade e aquilo que, legitimado pela função social, constitui limitação administrativa de caráter ambiental.

Questão que se coloca é que ainda que se encerre o poder de polícia em limitação da liberdade e da propriedade, não deveria importar em sacrifício ao direito (MELLO, 2006). Nesse contexto, que se inserem os questionamentos de legitimidade das normas de conteúdo ambiental, meramente, restritivas. Pela própria função econômico-social que a propriedade tem a cumprir deveria a legislação ambiental primar pela disciplina de uso racional dos recursos ambientais (ALVARENGA, 1997) e não, essencialmente, restringir a utilização desses recursos, vinculando a disposição dos bens naturais a ato de conteúdo meramente governamental, como tem se verificado.

Parece que a dificuldade de positivação da finalidade ambiental da propriedade está em saber até onde a utilização dos recursos da natureza será racional. Então, até que este limite seja encontrado, melhor adotar a tecnologia jurídica das normas restritivas e proibitivas. Certo, entretanto, é que as implicações do desenvolvimento sustentável exigem que o Estado discipline a utilização racional

dos recursos ambientais, sob pena de a norma meramente restritiva, impeditiva do uso, determinar a perda, a exclusão, o esquecimento do conhecimento de um uso racional.

O que se perceber, a partir de então, é uma dificuldade de interpretação da finalidade ambiental da função social da propriedade. Ao invés de se preocupar em disciplinar o uso racional dos recursos ambientais enquanto função social a ser cumprida pela propriedade, o sistema de direito ambiental parece tentar disciplinar a tensão entre a necessidade de apropriação e a de conservação dos recursos naturais. A prevalência desta última variável, a ambiental, tem levado à exasperação de normas de conteúdo restritivo, que acaba por ignorar a dimensão democrática, incluindo muitas vezes valores e pensamentos estereotipados. Tratam-se de normas ambientais vazias de legitimidade e de conteúdo, como salienta Liz Beatriz Sass (2008).

De tudo isso, impõe-se questionar se todo esse complexo de normas limitativas do direito de propriedade, fundado nos preceitos da dimensão ambiental da função social que tem a cumprir, resume-se em disciplina jurídica da racionalização do uso dos recursos naturais, ou se presta a outro fim? A resposta pode estar na obra de Michel Foucault.

3. BIOPOLÍTICA E GOVERNAMENTALIDADE EM MICHEL FOUCAULT: a